A imperial cidade de S. Petersburgo é uma das mais belas do mundo. As
suas ruas espaçosas, torres douradas e numerosos palácios, impressionam
fortemente aos estrangeiros. A sua população excede a mais de trezentas mil
almas. Vivi nela treze anos e durante todo este tempo nada mais recebi senão
favores de todas as classes da sociedade. Muitas são as pessoas que de todas as
cinco partes do mundo ali afluem – algumas para divertir-se e outras para
negociar; e é muito agradável observar, em um dia de primavera, os passeios
cheios de gente de todas as cores e nacionalidades, vestida segundo os costumes
de seus países respectivos.
Quase todas as famílias têm
uma multidão de servos, aqui e ali se vê um cocheiro tártaro, ou um cozinheiro
de Flandres, porém a maior parte dos criados são camponeses russos, que afluem
à metrópole de toda a parte do império, na esperança de ganhar maiores salários
que os que ganham em seus países.
Dentre estes camponeses afluentes tomamos uma criada de nome Irene, moça
muito inteligente que veio para nossa casa em 1827.
Tudo foi bem a respeito de
nossa nova criada até quarta-feira de cinza. Este é o primeiro dia da quaresma,
em que principia um rigoroso jejum, que muitos dos membros da igreja grega
observam com tal rigidez, como se isto lhes assegurasse a salvação de suas
almas. Além da observância deste restrito jejum vão à igreja duas ou três
vezes por dia, e na semana da paixão, muitos chegam a ir quatro vezes.
Irene era muito aferrada às
cerimônias gregas, e estava determinada a observá-las. Sua ama lhe falou da inconveniência de ir tantas vezes à igreja, porém ela lhe respondeu: – A senhora
quer que eu perca a minha alma? – Não, lhe respondeu sua senhora, longe disso.
Desejo que a vossa alma seja salva; porém os vossos jejuns, orações, e idas à igreja
não pode de modo algum salvá-la. Deve haver alguma coisa acima de tudo isso. O
Senhor Jesus Cristo é o Salvador dos pecadores, e é só mediante a fé Nele que
os pecadores podem ser salvos. – Ah, disse Irene, isso é segundo a vossa
religião, porém eu fui ensinada diferentemente, e devo observar a minha.
Tiveram lugar muitas conversas
entre minha mulher e Irene sobre este mesmo assunto, mas tão sem efeito que ela
me disse um dia: – Parece-me que teremos de despedir Irene por causa de sua
superstição. – Eu respondi-lhe, acho que a pobre rapariga é muito ignorante;
vede se podeis instrui-la, e vereis a sua superstição cair por terra como as
folhas no outono, porque não haverá nada que a possa suster.
No dia seguinte minha mulher
disse-lhe – Irene, desejo ensinar-vos a ler, consentis nisso? – Oh! Sim,
senhora, lhe respondeu ela, terei muito gosto em aprender. Assim foi
principiada a obra da educação de Irene, que em poucas semanas já podia ler
sofrivelmente uma lição fácil. Demos-lhe então um Novo Testamento russo, em que
ela estudava diligentemente, quando tinha vagar. Ela nos disse um dia, que
desde que tinha vindo para nossa casa, tinha observado a nossa religião, e que
estava muito tocada pelo nosso culto de família.
Ela tinha notado a sua propriedade,
e muitas vezes se sentia profundamente comovida apesar de não entender palavra
alguma das que dizíamos. Estas coisas eram todas novas para ela, que nunca
tinha vivido em uma casa onde houvesse o costume de orar em família. Deus foi
servido de assim preparar o coração de Irene para a grande mudança que em breve
tempo havia de experimentar.
Esta mudança teve lugar um Domingo, do seguinte modo: Quando saíamos para a igreja, minha mulher a deixou em casa para cuidar de nossos filhos e lhe disse: – Recomendo-vos, Irene, que leiais o décimo capítulo dos Atos dos Apóstolos. – Sim, minha senhora, respondeu ela. Esta recomendação excitou a curiosidade de Irene. – O que poderá conter o décimo capítulo dos Atos dos Apóstolos, disse ela consigo e principiou a lê-lo. Prosseguindo na leitura e vendo como Cornélio jejuava, orava e dava esmolas, disse comigo. – Ah! Isto é belo, este homem era da nossa religião e observava o jejum. Porém desanimou quando leu que Deus enviou um anjo para dizer-lhe o que devia fazer.
Ela ficou admirada com isto, e quando voltamos para casa, veio dizer a
sua senhora, que desejava lhe explicasse isto, porque, disse ela, eu não
entendo, como é que um homem bom como este, que observava o jejum, orava a Deus
e dava esmolas, não fazia ainda bastante. Dizei-me, pois, qual a razão disto?
Nunca me ensinaram que fizesse coisa alguma além destas. Para que que pois, lhe
foi o anjo enviado? Sua senhora evitou cautelosamente dizer qualquer coisa que
parecesse atacar a sua religião e respondeu-lhe: – Julgais que Deus enviara a
vós, ou a qualquer outra pessoa, um anjo, a menos que lhe quisesse comunicar
alguma coisa muito importante? – Não penso tal, disse ela. – Pois bem, lede
outra vez o mesmo capítulo, e examinando verso por verso, achareis qual o
motivo porque Deus lhe enviou um anjo.
Ela voltou para o seu
aposento e de novo leu o décimo capítulo dos Atos com muita atenção até ao
lugar onde S. Pedro diz, falando de Cristo, – “A este dão testemunho todos os
profetas, de que todos os que creem Nele,
recebem perdão de seus pecados por meio do seu nome” (v. 43). Era bastante.
“Deus, que disse que das trevas resplandecesse a luz, Ele mesmo resplandeceu em
seu coração, e lhe deu a luz do conhecimento da glória de Deus, na face de
Jesus Cristo.” (II Coríntios 4:6) caíram de seus olhos as escamas que a cegavam
e ela viu em um momento o caminho da salvação. Não pude ler mais. Levantou-se,
foi ter com sua senhora e exclamou beijando-lhe as mãos; – Oh! Agora eu vejo,
sim vejo que não foi por jejuns, nem por orações, nem por esmolas, mas sim por crer no Filho de Deus que Cornélio foi salvo;
sim, compreendo agora! Daquele momento em diante operava-se nela de dia em dia
uma mudança progressiva e maravilhosa. Daí em diante ela tornou-se muita ativa
e dedicada, e talvez a cristã mais útil que tenho conhecido.
Cerca de um ano depois da
conversão de Irene, ocorreu uma circunstância que lhe forneceu contínuas oportunidades de explicar a pessoas que ela nunca tinha visto, o modo porque
Deus salva os pecadores. Eu andava então empregado em promover a circulação das
Escrituras, e de livros e tratados religiosos.
Este meu novo emprego atraia
a minha casa uma multidão de povo, e muitas raras vezes viria a ela uma pessoa,
a quem Irene não dissesse, em sua linguagem simples e maravilhosa, alguma
coisa, mostrando como Deus pode “ser justo”, e, contudo “justificar aqueles que
têm a fé de Jesus.” (Romanos 3:26)
Ela falava as línguas alemã e
russa, portanto tinha amplo alvo para satisfazer os desejos de seu coração, e
nada lhe dava mais prazer do que o conseguir que um pecador desse atenção às
palavras da vida eterna.
Não deve aqui passar por alto
um exemplo maravilhoso da utilidade desta cristã, que espero, animará o leitor
a empreender grandes coisas.
Um dia chamamos um mascate
para lhe comprar alguma coisa; então achando-se Irene presente, perguntou-lhe:
– Meu irmão, tendes o Novo Testamento?
– Não, lhe respondeu o homem, e ainda que o tivesse de nada me serviria.
– Por quê?
– Porque não sei ler.
– Penso, lhe tornou Irene, que apesar disso o Novo Testamento vos seria
de grande utilidade.
– Como? Perguntou ele por seu turno.
– Talvez que alguma pessoa da vossa família saiba ler, lhe disse Irene.
– Sim, disse ele; meu mano tem dois filhos na escola, que já leem
sofrivelmente. Nem de tal me lembrava!
– Muito bem, disse ela, comprai então um Novo Testamento, para que
vossos sobrinhos o leiam a vosso velho pai, e este ouça alguma coisa a respeito
do Senhor Jesus Cristo antes de morrer.
O homem comprou, com efeito, o
Novo Testamento, e quando ia saindo Irene lhe perguntou ainda:
– Onde morais?
– Há quase duzentas léguas daqui, lhe replicou ele, mas presentemente
moro na hospedaria.
– Há muita gente lá hospedada?
– Sim, muita.
– Talvez que alguém lá sabia ler, disse Irene ainda.
– Não sei, replicou o mascate, nunca vi livro algum nas mãos deles. Ele
saiu então, e não o vimos mais senão quando principiou o inverno, tempo em que
milhares de trabalhadores de todas as classes vão para o interior passar algum
tempo em companhia de suas famílias. Entrando então o mascate em nossa casa
disse a minha mulher: – Tenha a bondade de me dar uma cópia de cada um dos
livros que tem à venda.
– Isto é uma encomenda muito grande, meu amigo: o que ides fazer com tantos
livros?
– Não me fareis tal observação, senhora se soubésseis o bem que tem
feito o Novo Testamento que na primavera comprei por conselho de Irene.
– Desejaria que me referísseis esse bem.
– Antes de ter comprado aquele livro, disse ele, era costume da maior
parte dos meus companheiros de hospedaria, irem para a cidade depois da ceia e
voltarem bêbados pela meia-noite, entretanto que os outros ficavam na
hospedaria jogando as cartas; porém, assim que eu lhes mostrei no Novo
Testamento, começaram um e outro a dizer – eu sei ler; de sorte que tomaram o
livro cada um por sua vez e leram-o capítulo por capítulo, até que o acabaram.
Esta leitura excitou um tão profundo interesse, que os bêbados esqueceram-se
dos copos e os jogadores das cartas; de sorte que, minha senhora, não há mais
bêbados na hospedaria. Agora a coisa é inteiramente diferente. Depois da ceia
eles ouvem a leitura de dois ou três capítulos do Novo Testamento e vão-se
então deitar. Como estes homens vão para suas casas, desejam levar cada um, uma
cópia do livro que lhes tem sido tão proveitoso.
Quem pode deixar de exclamar
ouvindo isto: “O Senhor fez grandes coisas por nós, e nós estamos cheios de
júbilo.” (Salmo 126:3)
Eis aí vícios esquecidos;
pecadores reformados; Escrituras Sagradas espalhadas, e muitas cópias deste
livro santo indo para vilas e aldeias onde nunca tinha sido visto. Oh, que
prazer será maior do que o de fazer bem às almas!
Mas talvez que alguns digam: “Não está em meu poder imitar um tal
exemplo, porque não tenho oportunidade para fazê-lo.” Pode ser que isto seja
verdade; mas há muitas coisas em que podemos imitar Irene.
1º. Ela esforçava-se por fazer bem daqueles que ocupavam na vida
a mesma posição que ela. As maneiras benignas e atrativos de Irene exerciam
uma forte influência sobre seus semelhantes. Eram irresistíveis. Elas
ajudavam-na consideravelmente quando falava com alguma pessoa acerca da sua
alma. O que se segue é um exemplo disto.
Uma família nossa vizinha
tinha muitas criadas. Uma delas veio a minha porta um domingo à tarde, quando
Irene estava no alpendre lendo o Evangelho de S. João.– Entrai, disse a devota
leitora. Sentai-vos. Gostaríeis de ouvir ler um pouco a palavra de Deus?
– Oh, sim. Continuai. O lugar da Escritura que ela estava lendo era a
conversa do Senhor com a mulher samaritana, em que ocorre a seguinte passagem:
– “A hora vem, e agora é, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade; porque tais quer
o Pai que sejam aqueles que O adoram. Deus é espírito; e em espírito e verdade
é que O devem adorar, os que O adoram.” (S. João 4:23-24).
– Muito bem, disse a visitante. Peço-vos que espereis um momento,
enquanto chamo minhas companheiras. Suponho que hão de gostar muito e ouvir
isso, porque, seguramente, desde que são nascidas nunca ouviram coisas tão
boas. Ela então correndo a chamar suas companheiras, conseguir trazer três
delas; e Irene repetiu o mesmo capítulo que tinha lido, acompanhando a leitura
de observações sobre o estado dos pecadores impenitentes, e sobre a
conveniência e completa suficiência de Jesus para salvar todo aquele que se
chega a Deus por meio Dele. Irene acompanhou tudo isto com a demonstração da
necessidade de imediatamente recorrer a Cristo, e da inutilidade de qualquer
outro esforço para alcançar o céu. Todas estas considerações eram feitas com
uma emoção toda particular, e com lágrimas; e as ouvintes participavam dos
mesmos sentimentos. Acabada a leitura do capítulo as ouvintes retiraram-se,
lembrando-se com gratidão do prazer que tinham gozado em ouvir palavras que até
ali lhes foram desconhecidas.
A senhora de Irene escutou
com deleite uma parte desta explicação, e não pode conter as lágrimas ao ver as
das visitantes. Devo notar aqui que nenhuma das ouvintes de Irene sabia ler, e
é muito provável que até ali nunca tivessem ouvido a leitura de um capítulo da
Bíblia, feita em linguagem inteligível.
Naquele momento, porém, o
selo foi quebrado, o livro aberto, e parecia que o mesmo Salvador lhes falava.
Uma das ouvintes veio depois comprar um Novo Testamento, e alguns outros livros
mais, para mandar a um irmão seu que sabia ler, e morava a algumas milhas de
distância. Recebendo estes preciosos tesouros, parecia não caber em si de
contente. Apertou os livros contra o peito e beijou a mão daquele de quem os
recebia. Se alguma pessoa das que sabem apreciar a Bíblia tivesse testemunhado
isto, sentiria uma alegria semelhante a que os anjos sentem quando um pecador é
levado a arrepender-se.
2º. Tivemos constantes provas da fidelidade de Irene, especialmente no cuidado que tomava de nossos
queridos filhos. Estávamos completamente
sossegados a seu respeito quando Irene ficava com eles. Quando o
terrível flagelo do cólera visitou São Petersburgo, foi Deus servido envia-la
sobre nossa casa, e levar dois de nossos filhos. Minha mulher estava também em
um estado perigoso, e eu fui igualmente acometido. Nesta ocasião foi que a
religião da nossa criada brilhou mais em sua ternura, vigilância, orações,
diligências e esforços para salvar-nos. Ela parecia mais irmã do que criada.
Recebíamos então uma rica recompensa de tudo quanto tínhamos feito para
encaminhá-la ao Salvador. Tínhamos também um criado, porém este era muito
medroso e deixou-nos por medo do contágio. Tínhamos uma cozinheira, porém esta
também nos deixou com medo de morrer. O nosso principal arrimo então era a
nossa criada Irene. Muitos de nossos bons amigos vinham por seu turno
ajudar-nos, porém Irene esteve sempre perto de nós até serem enterrados nossos
filhos e começarmos nós a restabelecer-nos! Então ela também foi acometida;
porém parecia esquecer-se de si mesma em seu cuidado por nós. Tenho pensado
muitas vezes que se os donos e donas de casa soubessem que boa coisa é ter na
família uma moça tal como esta, mais diligência faziam para promover a piedade
dos servos do que tem feito até aqui.
3º. Vós podeis imitar o seu
amor para com os seus parentes. Ela
não somente se esforçava em bem dos estranhos, mas também trabalhava pelos seus
parentes. Nossos parentes devem ter sempre o primeiro lugar. Sabemos que Irene
por muitas vezes se privava de um vestido para mandar alguns socorros a sua
velha mãe; e estes eram sempre acompanhados de alguns livros bons e de uma
carta afetuosa sobre a importância da salvação. O seu trabalho não foi em vão.
Temos razões para crer que Deus abençoou a sua pia solicitude, levando sua mãe
a aceitar Jesus por seu Salvador. Pouco antes de deixarmos a Rússia, veio ela
visitar sua filha; e para que Irene tivesse mais oportunidade de estar com sua
mãe e conversar com ela, pedimo-lhes que ficasse conosco algumas semanas.
Enquanto esteve em nossa casa a pobre velha caía doente e morreu. Foi-nos então
muito grato testemunhar a solicitude de Irene tanto para com o corpo como para
com a alma de sua mãe doente. Um dia, em que pensávamos que a pobre velha
estava prestes a morrer, um de meus filhos disse:
– Irene, julgo que será de grande consolo para vossa mãe a leitura do
décimo quarto capítulo do Evangelho de S. João. Irene tomou o Novo Testamento e
leu a sua mãe o capítulo que o menino tinha dito. Esta leitura reanimou a mãe
de Irene. Ela levantou-se na cama, e agradeceu a Deus por ter inspirado a um
menino o remédio consolador de que necessitava o seu coração, e enquanto
invocava a bênção de Deus sobre sua filha rendeu o espírito.
Irene foi maravilhosamente
consolada da morte de sua mãe, e esforçou-se por torná-la proveitosa aos
outros. É costume na Rússia quando morre alguém, chamar duas ou três pessoas
que se empregam por estas ocasiões na leitura de certos livros, ao lado da éça.
É este um trabalho medonho. A alegria é geralmente muito monótona, e quando
entendida, de nenhum proveito para os ouvintes. Portanto, Irene deu a estes
homens o livro de Salmos, dizendo: lede isto, – esperando que por este meio a
morte de sua mãe se lhes tornasse em bênção.
Pouco depois da morte da mãe
de Irene, esta excelente moça nos acompanhou até ao vapor que nos tinha de
levar da Rússia, para nos dizer o último “adeus”. Quando o vapor já se
afastava, Irene enxugou com uma das mãos as lágrimas e levantando a outra para
o ar, parecia dizer-nos: “Encontra-nos-emos outra vez no céu”.
Imprensa Evangelica, nº 23, 07 de Dezembro de 1867, p. 182-183
Imprensa Evangelica, nº 24, 200 de Dezembro de 1867, p. 186-188
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