Flores do Deserto de Cornélie Duval (Capítulo III-IV)


 CAPÍTULO III
AGOSTINHO

    Elisabeth e seu irmão eram filhos de um gentil homem huguenote, o Sr. d’Arville.

     Sua esposa, irmã da Sra. des Ponts-Marceaux, ainda que educada no catolicismo, não tardara em partilhar das convicções de seu marido.

    Na época das dragonadas a benevolência do governador de Alais havia protegido a família, porém pela morte deste os bens do gentil homem foram confiscados e ele mesmo lançado na prisão. Em vão foi-lhe oferecida a restituição de seus bens e até um lugar de procurador geral se ele consentisse em abjurar ; ele foi, porém, inabalável.  Morreu na prisão e sua jovem esposa o seguiu de perto na sepultura. O Snr. des Ponts-Marceaux obteve a tutela dos dois órfãos e o levantamento pela corte do ato de confiscação, sob a condição de que os meninos seriam instruídos na religião católica. Elisabeth foi colocada num convento de meninas nobres. Agostinho, que completara seus quinze anos, segundo os cursos do colégio. Ele se viu então, contra a sua vontade votado pelo seu tio à carreira de oficial.

    Este belo rapaz de cabeça loira, com uma fronte de sonhador, e de olhar por vezes tão triste, conquistara logo o coração da Sra. des Ponts-Mareeaux. Ela o queria tanto mais porque o seu tato feminino pressentia ali uma dor secreta, uma alma comprimida.

      Amando o estudo, amando sobre tudo a natureza, Agostinho tinha horror da escola militar. O seu gosto estava no campo, nas florestas cujos segredos ele se esforçava por desvendar. Com que prazer, nas férias, ele partia a visitar a montanha pela madrugada! Os minérios raros, as rochas cobertas de musgo, as torrentes cavando a pederneira, tudo o interessava. Ele podia ficar horas a observar a estrutura de uma flor, o trabalho d’uma aranha; as idas e vindas de um inseto no musgo. De volta ele jamais deixava de classificar suas descobertas e de pôr por escrito suas observações. Seu sonho teria sido obter um lugar de guarda florestal; ele tinha suplicado ao seu tio que lhe permitisse entrar nessa carreira. Mas suas solicitações tinham esbarrado com uma recusa formal.

      Para o velho soldado só existia uma profissão; a das armas. Ele votava a qualquer outra carreira um profundo desprezo. Agostinho viu-se, pois, forçado a desistir dos seus gostos e de seus planos pessoais para adaptar-se de qualquer jeito aos de seu tio.

     Porém existia ainda outro domínio mais íntimo, mais sagrado e sobre o qual a autoridade do comandante tornava-se mais insuportável. Era o da consciência. Agostinho tinha guardado intacto no fundo de seu coração juvenil, os princípios recebidos de seus pais, mas no Solar ele foi obrigado a todas às práticas do catolicismo. Teve de assistir à missa, confessar-se, comungar, apesar dos protestos da voz interna. Seu tio o aterrorizava.

Porém ele tinha continuado secretamente em relações com os seus amigos de outrora. Era um desses que ele havia escondido na torrinha. Cláudio Noguier, por quem ele nutria uma viva amizade unida a mais alta estima, exerceu sobre o nobre moço uma influência decisiva. Foi seguindo esse exemplo que Agostinho nestes últimos dias tinha achado coragem para resistir ao comandante e dizer-lhe em face: “Faça comigo o que quiser: como meus pais, eu sou huguenote!”

    Elisabeth, cinco anos mais moça que seu irmão, tinha sofrido mais do que ele o influxo do catolicismo.

    Ensinaram-lhe no convento a temer a heresia de Calvino, a dar graças a Deus por tê-la preservado da mesma.

    Aliás, a sua natureza de artista guardava com as pompas do culto romano, secretas afinidades. Ela amava as ricas decorações das igrejas, a luz rósea ou dourada que descia dos vitrais, o perfume do incenso e, sobretudo, a música dos instrumentos onde mãos exercitadas tiravam penetrantes e suaves acordes. Assistir à missa era-lhe sempre um gozo.

     Depois da partida de Agostinho ela acompanhou sua tia à capela. Mas todo o seu prazer havia desaparecido. Sentia-se inquieta, ansiosa, desorientada. O diário do prisioneiro huguenote não só lhe perturbara o coração como lhe alterara a alma. Até aí ela pouco tinha ouvido dos acontecimentos do momento. O ruído da perseguição chegava abafado aos muros calafetados do convento. E para não alarmar a moça inocente, seu irmão não lhe tinha dito senão uma pequenina parte da verdade. Bruscamente o véu se rompera e ela se sentia aterrada. Este clero sem piedade, era este o clero católico. Eram assim então o padre Charmes, sempre tão correto e bondoso, e seus irmãos dominicanos de costumes severos e de palavra eloquente. Esta religião perseguidora então era a professada pela Sra. des Ponts-Marceaux, esta nobre senhora sempre ocupada com os outros, que acudia aos deserdados e visitava os pobres nos seus casebres.

     Elisabeth observou que o rosário tinha escapado dos dedos de sua tia. A Sra. des Ponts-Marceaux juntava as mãos com fervor e sua alma toda subia numa ardente prece. Quando ela se ergueu a expressão de seu rosto havia mudado. Via-se ali o sinal de uma profunda paz.

– Deus respondeu-me! Disse ela a sua sobrinha. Eu sei agora que ele nos trará de novo nosso filho pródigo.
Quando? Como? Não sei dizê-lo. Porém tenho a certeza de que cedo ou tarde. Ele no-lo dará de novo!

     Mais do que nunca Elisabeth teve a sensação de andar errante por um labirinto. Onde então estava a verdade? Ela também orava, pedia a verdadeira luz para si e para Agostinho. Porém das profundezas do mundo invisível, nenhuma resposta lhe vinha.

Jornal O Estandarte. Ano XXXVI, Nº 03, São Paulo, 19 de Janeiro de 1928, p. 9-10.
 
    Por uma bela manhã de sol, sentada no caramanchão, entretida num livro de versos, Elisabeth viu passar pelo caminho, o padre Charmes acompanhado da Sra. des Ponts Marceaux.

 – Esse sistema, dizia o padre, eu também o desaprovo. Estes meios são indignos d’ Aquele que servimos, do Mestre manso e humilde de coração. Não é assim que se faz tornar ao aprisco as ovelhas desgarradas. Perseguis e despertais neles o espírito de revolta; levantai forças, acendei fogueiras e fazeis deles heróis e mártires!

     Estas palavras aliviaram Elisabeth. Então o Padre Charmes condenava a perseguição! Ela se pôs a desejar que seu irmão se deixasse convencer, que ele acabasse por entregar-se aos argumentos do piedoso Dominicano. Soube-se nas vésperas do Natal que Agostinho estava gravemente doente. Ele se tinha resfriado na sua cela. Uma congestão pulmonar punha seus dias em perigo. A Sra. des Ponts-Marceaux suplicou seu marido para que o trouxessem de volta, ela queria tratar dele, envolvei- o no seu carinho maternal. Mas o comandante foi inflexível.

Jamais, disse ele acentuando a palavra com a sua voz dura, jamais ele porá os pés sob o meu telhado se não tiver abjurado seus erros. Eu o farei transportar para a enfermaria do Samaritano. E demais, nós vamos mudar de tática. Com suas tergiversações, suas homélias à água de rosa, o Padre Charmes não adiantou uma linha. Ele será visitado pelo capelão do bispo, o Padre Crespy. Eu sou pelo modo forte!

    Ante esta decisão, a Sra. des Ponts-Marceaux, desolada, mas sentindo a inutilidade de novas suplicas, teve mais uma vez de se inclinar.

    A única concessão que fez o comandante foi autorizar algumas visitas. Elisabeth e sua tia apressaram-se a aproveitar dela. Porém um choque rude as esperava ao pé do leito do jovem enfermo. Este rosto descarnado, estes olhos fundos e brilhantes de febre, eram mesmo de Agostinho?

   Passada a primeira emoção interrogaram-no, informaram-se da sua estada no convento.

– Não tenho queixa, disse ele, os frades foram bons para mim. O Padre Charmes emprestou-me toda espécie de livros: Pascal, Bossuet... Ele é muito forte em controvérsia. Por vezes eu não sabia o que responder a seus argumentos.

   Com calor a Sra. des Pons-Marceaux tomou a palavra. Ela invocou a autoridade dos bispos, dos doutores e dos concílios, a duração secular da Igreja.

    A discussão foi viva. Agostinho a concluía com estas palavras:

– Aflige-me de magoá-la, de responder a sua bondade por uma aparente ingratidão. Porém nasci numa Igreja oprimida, como poderia eu unir-me a seus perseguidores? Minha consciência está empenhada nela; não posso de outra forma! Ele calou-se exausto. A Sra. des Ponts-Marceaux, o rosto inundado de lágrimas fez um último apelo:

– Supliquei a Deus para que te abrisse os olhos, te conduzisse á luz. Se tu resistires, morrerei de dor.

    Quando ela levantava-se para sair, entrou um padre, alto, espadaúdo, forte.  A Sra. des Ponts-Marceaux falou com ele por alguns instantes. Ele escutava, respeitoso aparentemente, mas o traço orgulhoso do seu lábio traía o seu pensamento. Meu dever, eu o conheço! E não admito que ninguém me trace a conduta que devo seguir!

     Elisabeth veio vê-lo frequentemente. Grande era a alegria de Agostinho quando podia conversar com ela com toda intimidade.

– Durante a minha reclusão, lhe contou ele, pensei muito no nosso prisioneiro da torrinha. Graças ao Padre Charmes que me sustentou pude obter que, ele fosse julgado pelo tribunal de justiça e não sumariamente executado como se pratica diariamente. A acusação traz que ele serviu de guia a um predicante. O Padre Crespy afirmou-me que a menos de uma abjuração ele será condenado à morte.

    Elisabeth estremeceu. Seus olhos dilatados refletiram uma inexprimível agonia.

– Oh! Aquele baile infeliz! Murmurou ela, minha imprudência, minha vaidade! Se este homem morre, a culpa será toda minha!
– A culpa não é tua, é minha. Eu deveria ter maior cautela nas minhas idas e vindas. Porém deixemos os queixumes, é preciso agir. Um dos membros do tribunal, antigo huguenote, era amigo de nosso pai. Eu desejo expor-lhe o caso de Cláudio e insistir com ele a favor deste. Queres servir-me de secretária?

     A carta ditada por Agostinho foi escrita ao conselheiro de Lassaulx. Elisabeth lacrou-a e virando-se para seu irmão:

Eis aqui, disse ela, algumas páginas achadas na Bíblia de teu amigo. Elias levaram-me a fazer a mim mesma várias perguntas.

     Queres que as leia?

    A um sinal afirmativo de Agostinho ela se pôs a ler o diário do fugitivo, omitindo, porém o que lhe dizia respeito.

Queres saber maninha, a razão da perseguição? Pois bem: tenho refletido muito, e cheguei a esta conclusão: a política certamente não é estranha ao caso, porém a verdadeira causa, devemos ir buscar no espírito de dominação, no orgulho desmedido dos jesuítas. “A Igreja somos nós! Nós somos a verdade! Fora da nossa ordem e dos que nosso poder avassala, coisa nenhuma deve existir! A Reforma põe obstáculo a nossa autoridade: suprimamo-la! E como não podemos deitá-la por terra pela palavra ou pela pena deitemo-la pela espada dos dragões! Depois persuade-se ao rei que o único meio de resgatar as desordens de sua vida privada, é a extirpação da heresia. Convencem-no que sua glória suprema está na unificação do reino pelo ferro e pelo fogo. Ah! Que terrível responsabilidade perante Deus tomaram sobre si o Padre Lachaise e seus acólitos!

    Agostinho enfraquecia de dia em dia. Mas seu olhar conservava-se calmo, sua expressão serena.

– Não podes imaginar; disse ele um dia, o que sofri durante estes anos. Esta vida em parto dissimulada, esses exercícios religiosos forçados que faziam de mim um hipócrita, que suplício! Na minha cela eu sofri a solidão, o frio, e mais as saudades das belas caminhadas pela montanha. Porém tudo isso, nada é comparado com as torturas mornas sofridas, no Solar. Agora estou em paz!

    O que todavia o inquietava era a sorte de seu amigo.

– Permita Deus que ele seja libertado! Se eu não puder fazê-lo pessoalmente, tu pagarás a nossa dívida e farás tudo para libertá-lo, não é maninha?  Foi em nossa casa que ele foi preso, não o esqueçamos!  Ela fez um sinal afirmativo com a cabeça. Depois perguntou resolução:

– Onde que o levaram, no forte de Alais?

– Não, na torre de Santa Isaura. Parece que o Padre Crespy o visita.

–O que é que sabes da família do Sr. Noguier, do seu passado? Perguntou a moça. Seu irmão outrora lho contara, mas ela não lhe tinha prestado atenção. Enquanto que agora, tudo o que dizia respeito ao prisioneiro revestia-se para ela de extremo interesse.

– Cláudio é filho de um médico de Nimes. Privado do seu ganha-pão pela Revogação, seu pai retirou-se para o campo dispensando seus cuidados gratuitos aos camponeses dos quais era muito querido. Ambas suas filhas foram trancadas num convento, uma delas morreu, a mais nova, a outra casou-se com um católico. O filho mais moço desapareceu. A Sra. Noguier pertencia a uma antiga família do Languedor. Ela faleceu no verão passado.

  A resposta do Sr. Lassaulx foi para Elisabeth e seu irmão, um acontecimento. Ela era delicada e muito benévola.

    “Uma coisa é certa, afirmava o conselheiro, que a pena de morte não pode ser aplicada ao preso sem flagrante injustiça. É verdade que nos termos do edito toda assistência dispensada a um ministro é passível da pena capital; porém um predicante não é um pastor. Os editos do rei sofrem interpretação menos draconiana. Tenho me empenhado muito no ânimo de meus colegas: todos, à exceção de dois parecem inclinados à clemência. Estou preparando para a próxima sessão uma vigorosa defesa em favor de seu amigo. A pena talvez poder-se-à reduzir a um ou dois anos de detenção.

      A alegria deste recado pareceu reanimar Agostinho.

– Informa-te de Cláudio, suplicou ele, e se possível faz-lhe chegar esta carta em mão. Diz-lhe que eu resgatei meus anos de abandono, que fui fiel até o fim. Ainda um pedido. Falei-te de meus amigos os rendeiros da Butte. Gostaria que travasses relações com eles. A Sra. Paysac sob as suas vestes de camponesa, é uma mulher inteligente e de espírito distinto. Encontra raras vezes um juízo mais acertado e uma piedade mais esclarecida que a dela. Ela poderia fazer-te tanto bem! Joana que é de tua idade é tão simples quanto gentil. Uma amiga como ela é que eu te desejaria.

    Elisabeth fitou-o com surpresa. Ela, a sobrinha do comandante des Ponts-Marceaux, ligar-se de amizade a uma camponesa! Todo o seu orgulho de raça insurgiu-se a este pensamento. Porém ela amava demasiado a seu irmão para trair suas repugnâncias.

Febril, a respiração opressa, ele acrescentou, num sopro: Voltarás amanhã. Porém o dia de amanhã, para Agostinho d’Arville foi o dia da eternidade.

   Quando, pelas dez horas; chegou o padre Crespy, ele tinha perdido os sentidos. À noite expirou.

Jornal O Estandarte. Ano XXXVI, Nº 04, São Paulo, 26 de Janeiro de 1928, p. 11-12.

CAPÍTULO QUARTO
UM ENCONTRO

      Ante o gradil do solar, com os braços cruzados via-se um homem encostado ao muro. Seu olhar ia ao encontro de um grupo estranho que lentamente avançava. Os bosques profundos iam se submergindo na sombra da tarde enquanto que o poente banhava ainda o horizonte de rubros clarões. O homem de rosto sombrio olhava e cismava...

    À noite, o sangue – harmonizavam-se bem com seus pensamentos.

     Contra sua vontade o espírito do comandante voltava-se para tempos passados. Pensava nos dois meninos que anos antes lhe haviam trazido. Por vários meses no exílio em casa estranha, eles acharam-se felizes por encontrar uma família.

    O Sr. des Ponts-Marceaux via de novo o belo colegial, quando, ágil como um cabrito montês saltava nas alamedas sacudindo ao vento suas louras madeixas. Porém essa despreocupação pouco tempo durara. O riso, gradualmente, emudeceu, a alegria extinguiu-se, um selo de tristeza marcou a fronte do adolescente. O Sr. des Ponts-Marceaux pensava em tudo isto enquanto que silenciosos, a passos lentos; aproximavam-se os que lhe traziam o caixão de Agostinho.

     Por um momento o homem endurecido esteve prestes a desatar em soluços. Porém conteve-se. Por um violento esforço recalcou a emoção prestes a ganhá-lo. A boca fez-se dura e a ruga que lhe atravessava a fronte vincou-se ainda mais. Era preciso! Murmurou ele entre os dentes cerrados, a abjuração ou a morte! Não havia meio termo.

    O padre Crespy, de acordo com a família, tinha resolvido passar um véu sobre os últimos instantes de Agostinho. Aliás, havia ele colocado ao lado do leito o crucifixo, recitado orações e até mesmo administrado a extrema unção ao moribundo. Far-se-ia crer assim que ele havia partido munido dos sacramentos da Igreja, seria inhumado em terra santa e segundo todos os ritos da Igreja católica.
 
   Deste modo estaria salva a honra e lavado de toda mancha de heresia o brasão da nobre casa dos Ponts-Marceaux.

     No dia seguinte ao dos funerais, enquanto a Sra. des Ponts-Marceaux se isolava esmagada pela dor, Elisabeth, lembrando-se de sua promessa, escreveu ao major da torre Isaura.

    Grande foi a sua decepção daí a poucos dias recebendo de volta a carta do conselheiro acompanhada de algumas breves linhas: Ainda que exprimindo o seu pesar, o major, instigado sem dúvida pelo padre Crespy, opunha a seu pedido uma recusa formal.

   A dor pungente pela morte de Agostinho foi aumentada por esta carta inexorável.

    Elisabeth convenceu-se que era sua ignorância, sua total inexperiência da vida que lhe causava esse duro revés. Mas com quem aconselhar-se? Passaram-se os meses, tristes e frios. Em vão Laura se esforçava por distraí-la: a frívola tagarelice de sua prima, toda preocupada com visitas e toilettes, irritavam sua dor em vez de acalmá-la.

    Seu único alívio era unir suas lágrimas às da Sra.
des Ponts-Marceaux. Elisabeth cercava-a de muito carinho e frequentemente acompanhava-a à capela onde a pobre senhora permanecia horas e horas a orar ou a chorar.

    Muitas vezes Elisabeth voltava à torrinha às escondidas e tirava a Bíblia do seu esconderijo. Ajoelhava-se sobre as lages, diante da estreita janela, na mesma atitude que tivera o fugitivo ao escrever o seu diário.

    Abria o santo volume, mas quase sempre lia sem compreender. Seus pensamentos voavam além, amargos, inquietos. “Que pensará ele de nós, dizia ela consigo mesmo. Aquela surpresa durante a noite, o silêncio de Agostinho, seu aparente abandono?”. Uma irresistível necessidade de explicar, de desculpar a conduta deles, de manifestar ao preso sua imensa simpatia subia-lhe ao coração. Porém os muros intransponíveis de uma prisão erguiam-se entre ela e aquele que agora ocupava seus pensamentos dia e noite.

    Enfim rompeu-se o véu de névoa. Um sol quente derramou-se sobre os prados que se cobriram de violetas e de boninas brancas e róseas. Elisabeth um dia mandou atrelar o seu pônei e foi depositar um ramo de camélia sobre o túmulo de seu irmão. Ao passar por entre os campos, ela avistou uma moça e um rapaz, talvez irmãos, parados ante a cruz de mármore de Agostinho. A moça vestia o bonito traje provençal: saia escura, corpete justo, camisinha de tule e lenço de renda caindo em ponta sobre as costas. Uma touca de veludo encerrava seus abundantes cabelos castanhos. O rapaz trajava a blusa de camponês. Ele exprimiu-se com voz áspera, contida. Elisabeth ouviu algumas palavras:

– Eu sempre tenho dito: quando os nobres parecem ser dos nossos, é só por pouco tempo. Mais cedo ou mais tarde eles nos abandonam.

– Se o Sr. se refere a meu irmão, está enganado ... Quem dá a sua vida pelas suas convicções, não abjura!

    Os dois estrangeiros voltaram-se vivamente. Ao verem a “senhorita do solar”, as faces da jovem camponesa enrubesceram. Seu companheiro descobriu-se respeitosamente.

– Conheciam-no? Perguntou Elisabeth.

– Um pouco, o Sr. d’Arville honrava-nos  por vezes indo a nossa casa, e demais nós o vimos muitas vezes nas nossas reuniões.

   Seu irmão, acrescentou: Ele dava-se intimamente com Cláudio Noguier e os dois amigos encontraram-se mais de uma vez sob o nosso teto.

    Este nome fez estremecer Elisabeth.

– Sr. Noguier? Sabe o que é feito dele? Tem alguma notícia?

– Ele está na torre Santa Isaura; a dois passos de nossa casa, disse a moça camponesa. Porém, se ele estivesse no fundo de uma masmorra em Paris, não estaria mais afastado do que está. O padre Crespy que pretende convertê-lo, proibiu toda visita. Nossa mãe suplicou ao carcereiro que lhe permitisse uma entrevista, ou ao menos lhe levasse os nossos recados... Trabalho perdido! A ordem é inexorável.

    Por sua vez o moço falou: Tinham-no detido ao princípio com outros, na sala grande, sob as ameias. Mas o padre Crespy entendeu que essa prisão era confortável demais para um herético e fê-lo encerrar-se só em uma masmorra. Daqui a pouco os jesuítas teriam uma nova vítima: não abjurando, ele será inevitavelmente enforcado.

Elisabeth comunicou-lhes as declarações do conselheiro de Lassaulx. Eles alegraram-se com elas, porém, no fundo conservavam suas dúvidas.

– Nós temos visto muita coisa para ainda confiarmos na justiça!

    As camélias foram depositadas ao lado de um fresco ramo de flores do campo: prímulas; miosótis e violetas.

– Foi a Sra. que adornou o túmulo de meu irmão? Disse Elisabeth, vivamente comovida. Diz-se sem razão que os mortos são depressa esquecidos.

– Como jamais esquecê-lo! Nós tínhamos por ele tanta amizade, tanta estima!... Ele amava nossa mãe e dizia-nos que ela lhe fazia lembrar a dele. Elisabeth olhou com atenção para a jovem camponesa e viu-lhe os olhos mareados de lágrimas e os lábios a tremerem. Então por uma súbita intuição:

– A Sra. é Joanna Paysac! Disse ele este moço é seu irmão Marcos!

    Foi o bastante para dissipar toda reserva. Elisabeth contou-lhes suas visitas à Enfermaria, a paciência de Agostinho, sua invencível firmeza. Disse-lhes também quanto ele tinha desejado que ela os conhecesse.

       Assim discursado eles saíram do cemitério. Elisabeth fez sinal ao cocheiro que a esperava que os acompanhasse de longe. Juntos caminharam para o lado da quinta da Butte.

 – Vê aquela cabana no alto, na orla do bosque? Disse a jovem Paysae. É a choça de Guerraz, do miserável que por alguns florins vendeu Cláudio. Não é uma coisa inaudita? Com uma simples denúncia prende-se um homem. E isto é coisa de todo dia... O dinheiro do sangue não lhe aproveitou. Uma árvore que ele abatia caiu repentinamente quebrando-lhe a espinha dorsal.

     A família dele está na maior miséria. Como não ver aí o juízo de Deus! Nossos inimigos, prosseguiu ele com exaltação, não triunfarão sempre. Mazel e dois outros chefes receberam ordem de arvorar o estandarte!... É uma era nova: que se levanta sobre as Cevenas!

   Marcos ia prosseguir, porém um sinal de sua irmã impôs-lhe silêncio. Chegavam à quinta. Gentilmente eles convidaram a companheira a entrar.

     A Sra. Paysac recebeu-a muito afetuosamente.

    Era uma mulher pequena, de rosto enrugado, mas no fundo dos seus belos olhos pardos, brilhava uma luz dourada. Era como que o reflexo de uma vida intensa, de uma alma inabalável e em paz.

   Elisabeth sabia que os Paysac eram uma das raras famílias huguenotes para a qual nem promessa, nem tão pouco ameaça tinha válido. Ela indagou de que maneira eles tinham podido resistir na ocasião das dragonadas.

– Avisaram-nos da chegada dos soldados, disse a mãe. Na véspera levei minhas filhas em casa de parentes nos altos Cevenas. Os dragões roubaram nossas provisões, levaram o nosso gado. Tomaram-nos tudo, salvo nossa fé e nossa firme confiança em Deus.

     À despedida Joana apertou afetuosamente a mão de Elisabeth.  

– Apareça! Disse-lhe ela. Nós a veremos sempre com muito prazer!

     A Sra. Paysae, envolvendo-a com o seu olhar luminoso, lhe disse:

 – Que Deus a abençoe, minha filha!

     Havia na modulação de sua voz algo de tão terno e maternal que de improviso o coração de Elisabeth se lhe afeiçoou. Ela saiu prometendo voltar.

     A Sra. des Ponts-Mareeaux frequentemente doente e de cama não saia mais a visitar seus amigos humildes. Era agora Elisabeth que em nome dela os visitava, levando-lhes seus donativos e os testemunhos de sua simpatia. Frequentemente ele deixava na Butte seu carrinho leve e com passo ágil escalava as encostas para visitar as choupanas. Atrás do seu bosque de castanheiros, o velho castelo da Torre de Isaura, irresistivelmente lhe atraía os olhares. Era uma misteriosa fascinação. Um dia, deixando a estrada, ela subiu o trilho pedregoso a fim de ver de bem perto o sombrio torreão. Por longo tempo ali permaneceu a contemplar as torres maciças, as muralhas formidáveis... Quanta angústia, quanto pranto esses muros espessos sufocariam nas suas entranhas de pedra!  Quantas existências ali se arrastavam e pobres vidas ali se apagavam na noite e na solidão! Sufocava-a só o pensar naquelas portas de ferro, naqueles subterrâneos e naquelas grades inexoráveis. Foi com o coração grandemente confrangido que após esta silenciosa visita ela tomou de novo o caminho para o solar.

   Um dia, ao regressar de uma choupana isolada, ele de novo deteve-se ao pé da Torre.

     Duas crianças passaram por ela em corrida desabalada. De repente o mais novo caiu no caminho, e levantando a cabeça se pôs aos gritos. Ela acudiu. Molhando o seu lenço no riacho, lavou-lhe o joelho ensanguentado, os lábios feridos e a boca cheia de areia.

    Ele aceitava esses cuidados enquanto sua irmã, qual uma corça selvagem, olhava de longe. Elisabeth tomou pela mão o menino enfim consolado.

    Onde moras? Perguntou ela. Com o dedo ele apontou o sombrio castelo.

– Que! Serás porventura o filho do carcereiro? Disse ela estremecendo. Ele com a cabeça acenou que sim.

– Como te chamas?

  Eu me chamo Jorge. E aquela é Yvonne, minha irmã. Tenho mais outra, uma bem grande, acrescentou ele logo. Uma moça de quinze anos aproximadamente vinha ao encontro deles, tendo nos braços uma criança não muito nova.
– Olhe lá a grande! Prosseguiu o pequeno Jorge. É Gisele!

    Elisabeth tinha diante de si os quatro filhos do carcereiro. Era este um encontro que sobremodo lhe agradava e também a comovia.

    Ela logo descobriu que Gisela a conhecia. De longe a menina vira frequentemente a “senhorita do solar” passar no seu carro.

    Caminharam juntos a conversar até um grande castanheiro. Um carrinho de criança estacionava ao lado do banco tosco. Desejando prolongar a conversa, Elisabeth sentou-se, admirou o pequerrucho, acariciou os cabelos de Jorge. Para obter informações sobre as prisões, os hábitos do pessoal e sobre os presos não lhe foi preciso fazer muitas perguntas. Gisela, assim como o seu irmãozinho, era muito confiante e comunicativa.

– Não há na torre um preso com o nome de Noguier? Perguntou enfim Elisabeth.

– Não sei, nós vemos frequentemente os nossos presos, quer nas suas celas, quer no pátio à hora do passeio. Porém para nós eles não têm nome!

– Eles devem ser bem maus e perigosos, para estarem assim enclausurados, prosseguiu Elisabeth.

– Alguns, mas não todos. Há alguns que não nos metem medo nenhum: são os huguenotes.

– O que eu quero mais bem, interrompeu Jorge, é o preso do subterrâneo.  Ele me põe no colo. Foi ele que me fez meu cavalo de pau; · meu barco e minhas flechas.  Quer vê-los? Posso ir buscá-los?

– Vai buscá-los, quero muito ver teus brinquedos! Eu os acompanho até a grade. Certamente não será permitido a estranhos entrar além.

– Oh! Os colportores e os músicos ambulantes entram bem! As sentinelas guardam a porta, mas não é preciso ter receio. A Sra. gostaria de ver o pátio interno?

     Aí é que Jorge cavou o seu tanque, perto da fonte. A Sra. verá boiar o barquinho dele.

    Sob a mão de Gisela a pesada aldraba caiu por duas vezes, a porta de ferro abriu-se. Dois soldados estavam de guarda ante o pórtico. Gisela apresentou a “senhorita do solar.” Eles abaixaram as armas e deixaram passar.

    Elisabeth viu de relance o espaçoso pátio para onde convergiam várias alas do edifício. Os meninos mostraram-lhe o tanque em miniatura e o esquife à vela que eles faziam avançar assoprando. Yvonne, a esquiva menina se havia aproximado. Elisabeth tentou ganhá-la também.

– E tu, não tens brinquedos? Não postarias de ter uma bela boneca com cabelos de verdade? Se fores boazinha, eu te trarei uma qualquer dia.

    Os olhos da menina brilharam, porém ela calou-se.

     Fizeram sentar a visita. Jorge veio trazendo seus tesouros e os depositou sobre os joelhos dela. Ia ela examinando os objetos muito bem esculpidos e fazendo várias perguntas nos meninos.

– Faz tempo que está aqui esse seu amigo do subterrâneo?

 – Só desde o outono.

– Que aparência tem ele? É moço, ou velho?É alto?

     As respostas não tardaram, um pouco incoerentes, pois os três queriam explicar ao mesmo tempo. Ela escutava-os com atenção extrema. O rosto que eles lhe descreviam: moço, moreno, olhos e cabelos pretos, respondia traço por traço a uma descrição que seu irmão lhe fizera outrora.

    Ela beijou os dois pequenos, interpretou a mão de Jorge e prometeu a boneca para a semana seguinte.

O Estandarte. Ano XXXVI, Nº 05, São Paulo, 2 de Fevereiro de 1928, p. 8-10.

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