CAPÍTULO XI
NATAL
Era a véspera do Natal. Elisabeth, como
de costume, havia se retirado para o
seu quarto. Na sua frente via-se um livro aberto, porém a moça não lia, mas abandonava-se a seus
tristes pensamentos nesta noite que, mais que qualquer outra, lhe trazia à memória
tantas recordações. Pela tarde o padre Charmes tinha vindo visitá-la. Ele aparecia
frequentemente. Vendo a moça tão
só, tão desanimada, esforçava-se por consolá-la.
Ela sentia que havia muita retidão e uma
grande bondade no dominicano, porém as circunstâncias eram adversas. Entre
os dois levantava-se a lembrança de
seu pai, de seu irmão, de todos aqueles cativos que ganiam em cadeias, de todos aqueles mártires a quem indignos representantes da Igreja
dele tinham trucidado. As exortações do padre não
surtiam efeito; seus argumentos não a
convenciam. Pesarosa, ela entregava-se sua dor quando vieram dizer-lhe
que um moço desconhecido lhe
desejava falar. Era Daniel Paysae, que,
misteriosamente, tirou do seu capote e lhe entregou uma carta.
–
De Marselha, acrescentou ele à meia-voz. Chegou uma também para nós. Minha mãe
e Joana lhe desejam “Boas Festas”.
Percebendo a Sra. des Condrets, no fundo
do corredor, dissimulada no vão de uma porta, Elisabeth apressou-se em esconder a carta no seu corpinho. Sentira um choque magnético. O coração batia-lhe com força levado repentinamente por uma onda de
amor e de alegria. Correu para o seu quarto, mas, temendo despertar
suspeitas na governante, não fechou a porta à chave. Contentou-se em pôr diante
de si o seu bordado e entreabrir a gaveta onde, em caso de alerta,
desapareceria rapidamente a carta.
Ela teve-a
por uns instantes nas mãos contemplando o
endereço, bem conhecida lhe era esta caligrafia tão firme e direita. Depois,
imprimindo sobre ela os seus lábios, rompeu os selos: Cláudio começava
desculpando-se respeitosamente da liberdade que tomava de escrever-lhe.
Assim rezava a carta: “Eu soube pelos
Paysac a nova provação que lhe sobreveio: a morte da Sra. des Ponts-Marceaux.
Quero por estas linhas exprimir-lhe minha viva, minha profunda simpatia. Aquela
nobre senhora era uma santa, um anjo de bondade e de caridade. Nosso vale
guardará por muito tempo a sua memória. Compreendo a grande lacuna que este luto
abriu na sua vida. Quisera que a senhora sentisse como meus pensamentos
a rodeiam no ardente
desejo de abrandar algo da sua pungente dor. Será uma ilusão? Quando nossos
pensamentos se transformam em orações, não poderão elas cair em consolações
divinas, comunicar
forças, cobrir com a sua égide os que amamos!”
Dava-lhe em seguida alguns pormenores da
vida diária na galera. Em
termos jocosos contava-lhe o ataque do navio mercante repentinamente
transformado em vaso de guerra. Ainda que não se queixasse, Elisabeth
adivinhou, pressentiu todo o horror da sua vida de condenado.
“É uma honra e um privilégio, acrescentava ele, ser chamado a sofrer pela
verdade. Somos várias centenas de condenados huguenotes atualmente nas galeras
de Marselha. Num século de despotismo, o nosso papel é proclamar a
inviolabilidade da consciência, este domínio sagrado que só a Deus pertence.
Pobres seres prontos de espírito, porém todo feitos de fraquezas, quem somos
nós para esta alta missão? Ah! ore a Deus para que Ele nos revista de sua força
e impeça a nossa fé de fraquear. A Igreja romana sufocou a voz de nossos pastores:
quiçá será ouvido o ruído das nossas cadeias,
“Na galera é difícil escrever e mais difícil
ainda despachar as cartas, porque os capelães fazem uma guarda cerrada em torno
de nós a fim de impedir toda comunicação com os de fora. Porém não conseguiram
impedir que o ruído da insurreição chegasse até nós. Sabemos que as Cevenas se
levantaram em arma para fazer ouvir na corte e na Europa nossas justas reivindicações.
Mas sabemos também que o marechal de Montrevel marcha à frente de um formidável
exército contra nossos irmãos para esmagá-los. Nossos inimigos têm por si o número,
mas, como diz nosso salmo de batalhas: “Como ao fogo se derrete a cera, assim à
presença de Deus perecerão os iníquos”. Se Deus é por nós, quem será contra nós? É, pois, Nele só
que poremos nossa confiança”. “Estou longe de ser o que eu quisera ser. Maravilha-me
e enche-me de admiração um de meus companheiros que está na galera havia vinte
anos, pelo perfeito domínio de si próprio. Ele disse-me uma vez, que a verdadeira
liberdade consiste em ser liberto do pecado.
“Seu nome é Elias Neau. Como estou ainda
longe disso, eu que tenho um gênio irascível, um coração que tão frequentemente
ferve de cólera ou de revolta. Por vezes, à noite, contemplo a brilhante estrela
de Véga na constelação da Lyra.
Então penso na senhora e oro a seu favor. Minha irmãzinha bem-amada, não quer fazer
o mesmo por mim? Enquanto os nossos olhares unidos se elevarem para a estrela,
nossos corações e nossos pensamentos se encontrarão em Deus”.
A leitura desta carta comoveu Elisabeth
até o mais profundo da alma. Movida por uma irresistível necessidade de
expansão, tomou da pena no mesmo instante e respondeu. Da sua pena corriam,
ainda que velados sob a reserva dos termos, pensamentos de profunda e infinita
ternura. Escrevia rapidamente quando lhe bateram à porta. Depressa ela escondeu
a carta. Era a Sra. des Coudrets que vinha convidá-la para irem juntas à missa
de meia-noite.
–
Obrigada, disse Elisabeth. Eu prefiro festejar o Natal aqui, na companhia dos
meus queridos que se foram. Eu os sinto assim mais perto de mim do que numa
igreja – entre estranhos e indiferentes.
–
A senhora não faz bem. Não é bom viver sozinha na sua idade. Ande, faça um
esforço c venha comigo!
–
Obrigada. Assevero-lhe que esta noite não me sinto absolutamente como se
estivesse só. A senhora vá e não se incomode mais comigo!
A Sra. des Condrets fechou a porta sem
barulho. Elisabeth terminou a sua carta. Depois, não sabendo como a despachar,
fechou-a na gaveta. De novo, lentamente, parando em cada linha, leu ela a carta
de Cláudio. Não, ela não se sentia só. Uma porção invisível de amigos, de
irmãos, de espíritos tutelares a rodeavam. Como uma criança que sorri entre as lágrimas, ela adormeceu acalmada e
deliciosamente consolada pela doce alegria de Natal.
Que poderei fazer para ele? Perguntava
Elisabeth a si mesma; nos dias consecutivos. Logo veio-lhe uma resposta. Uma
tarde ela tomou um pedaço de veludo azul escuro, um pouco de seda clara,
preparou o dedal e a agulha e pôs-se a pensar. Que mote iria ela bordar nesse
veludo? Desejando que o texto fosse uma mensagem dos céus, orou antes de principiar
o trabalho. Foi-lhe dada esta palavra: “Vencerás”! Terminado o bordado, ela tomou alguns
fios de seus longos cabelos, enfiou-os na agulha fina e fez passar em torno de
cada letra um delicado fio de ouro. Fez também uma carteirazinha. Velando
muitas vezes até tarde, copiou com letra muito miúda os últimos capítulos do
Evangelho de S. João que Cláudio amava. Acrescentou-lhes algumas das admiráveis
passagens do Apocalipse. Depois escondeu tudo isso numa gaveta e tirou a chave
da mesma, esperando que se apresentasse uma ocasião favorável para mandar o seu presente.
Jornal O Estandarte. Ano XXXVI, Nº 12, São Paulo,
22 de Março de 1928, p. 12-13.
CAPÍTULO
XII
À BEIRA MAR
Corriam
os meses com sortes várias, de derrotas ou vitórias
para os Osards, apelidados logo Camisards. Elisabeth, em
conformidade de sentimento com os rudes
montanheses, passava alternadamente da alegria para o tremor.
Da sua janela frequentemente ela se punha
a contemplar a cadeia do Espéron cujo cimo, encoberto por alguns contrafortes,
a atraiu misteriosamente Agostinho o escalára. Ela sabia que desse pico a vista
se estende vasta e esplendida para o Sul e que, até, no horizonte se pode ver o
mar. Como um polo magnético, o invisível cimo fascinava o seu pensamento.
Durante o verão ela encontrou-se uma ocasião
com Joanna Paysac. Esta contou-lhe que Cláudio fora gravemente ferido num
encontro com uma fragata espanhola e se achava, já havia alguns dias; em tratamento
no hospital da Marinha. A mãe de um dos seus companheiros de quarto, nova
convertida, mas ainda huguenote de coração, o tinha visitado. Esta mulher, que
morava em Marselha, sabia escrever e havia consentido em traçar algumas linhas,
ditadas por Cláudio, a seus amigos da herdade da Butte.
Uma viva apreensão encheu o coração de Elisabeth.
Ele não pudera segurar
a pena! Estaria então bem mal. E talvez
morresse sem que ela o soubesse! Ah! Que provação era a ausência, a distância, a falta de notícia regular, quando a
gente daria tudo para saber!
O visconde e a viscondessa de Ormancy,
fugindo do calor, deixaram no mês de
agosto o seu castelo nos arredores de Montpellier e se instalaram numa
chácara fresca e rodeada de arvoredos que eles possuíam
não longe
de Atais. Elisabeth via-os frequentemente e esses encontros
a distraíam algo dos pensamentos que a atormentavam. Laura contou-lhe que
pretendiam no outono ir aos banhos de mar.
Do
coração da moça escapou este grito:
– Oh! Como eu gostaria de ver o mar!
–
Pois está convidada! Disse Laura rindo. O solar é um convento. Você verá como a
gente se diverte ali. Iremos à praia ajuntar conchas. Levá-la-emos a passear de
carro por Marselha e seus arredores. É interessante.
Foi deliciosíssima a nossa estada ali no
ano passado.
Foi com a sensação de quem foge da cadeia
que
Elisabeth
desceu da diligencia à porta da casa de sua prima, onde Laura
e o seu marido a receberam
com vivas demonstrações de amizade. Não
se esquecera da carteirazinha. Talvez fosse mais fácil fazê-la chegar ao seu destino
no hospital que na galera. Ela não ousava confiá-la ao serviço de mensageiro.
Os capelães funcionavam igualmente no hospital da Marinha e a correspondência
dos hugnenotes seria certamente vigiada.
Ela fazia
com sua prima longos passeios na praia; ouvindo sem se cansar o ruído
ensurdecedor das grandes vagas rolando os seixos na praia. O visconde sabia do seu
lado.
– Ele prefere jogar, divertir-se com amigos!
Dizia a jovem esposa com amargura. Não tem
prazer algum em nossa companhia!
Era evidente que uma grande desinteligência
reinava entre o casa d’Ormancy. Não era
a primeira vez que Elisabeth o constatava. A pedido dela, entretanto, um dia ele decidiu acompanhá-las.
Nesse passeio de carro ela pediu
que lhe mostrassem o hospital da Marinha.
–
Seria uma volta muito grande passarmos ao lado dele? Perguntou ela ao visconde.
Achou-se ali atualmente um amigo de meu irmão condenado por causa de religião é
ferido em combate. Eu gostaria de ter notícia dele.
Interessado, o visconde fez-lhe varias
perguntas.
Em
poucas palavras ela contou-lhe a história do moço
hugnenote
e a promessa feita a Agostinho na hora da morte deste.
O carro parou em frente ao hospital.
–
Nilo desça, minha prima, eu mesmo vou!
Exclamou o visconde descendo do carro com uma agilidade de que ninguém o imaginaria capaz visto
a sua grande corpulência. Eu lhe
trarei notícia.
Elisabeth teve uma grande decepção e deixou
que ele se afastasse, não tendo coragem de lhe confiar o seu embrulho. Ela
calculara algum encontro fortuito: alguma irmã bem disposta; algum enfermeiro
de boa cara para fazê-lo chegar com segurança. Era um revés.
Daí
a poucos minutos voltava o visconde.
–
Cláudio Noguier não está mais aí, disse ele. Já foi transferido para a sua
galera. A irmã disse que ele estava completamente curado.
Elisabeth respirou. O visconde, de novo
instalado em frente dela, continuou a
conversa:
–
Por essa conta ele deve ter estado três meses no hospital. Quer dizer que o seu
ferimento era de certa gravidade.
Como é que ele não foi solto? Se bem me lembro, um
edito do rei concede a liberdade a todo o condenado
ferido em batalha naval. E, que eu saiba, o fato de ser calvinista não o exclui
desse privilegio.
Um clarão de esperança acendeu-se nos
olhos de Elisabeth. Ela deixara o solar sob a impressão de uma má notícia: duas
derrotas dos Camisards que seu tio, à ceia; proclamara triunfante.
A
esperança, esmorecendo por um lado, renascia sob
outra forma.
O visconde se pôs a indagar das
principais acusações e a moça com animação explicou-lhe o curso iníquo do
processo, as afirmações do conselheiro de Lassaux e o papel nefasto do padre
Crespy. O Sr. de Ormancy detestava os jesuítas.
–
Eu creio, disse ele, que este homem,
assim como muitos outros, foi vítima das tramas desta ordem maligna.
Talvez fosse um caso de revisão de
processo. Em todo caso, minha gentil prima, se isso lhe agrada, ofereço-lhe os
meus préstimos. Tenho algumas relações na corte. Um pedido ao rei talvez não
seja fora de propósito.
Com um ímpeto de infinita gratidão
Elisabeth agradeceu ao visconde. Ela olhou para aquele rosto vermelho, balofo na
sua frente e achou-o belo. Até de bom grado o beijaria!
–
Eis-nos na Cannebiére. A senhora gostaria de ver o porto? As galeras devem
estar se preparando para invernar. É possível que avisemos algumas.
–
Há de ser bem divertido! Exclamou a viscondessa. O carro se pôs a seguir o cais
e logo avistaram-se os sinistros navios de guerra cujos nomes Laura ia lendo: a
Comandante; a Vitoriosa, a Real,a Grande-Real, a Favorita.
–
A Favorita? Repetiu o visconde, não é essa a galera do seu protegido? O
capitão, o Sr. de Ribeauville, é meu amigo. Esperem-me aqui uns dez minutos.
Vou dar-lhe um aperto de mão e ao mesmo tempo perguntar-lhe-ei sobre o ponto em
litígio. Ninguém melhor do que ele pode esclarecê-lo.
Elisabeth seguiu-o com o olhar.
Das
galeras avistavam-se os remos enormes, os altos mastros, as galerias a
bolir cheias de oficiais e soldados. Embaixo na
penumbra distinguiam-se algumas centenas
de cabeças cobertas de bonés vermelhos.
Os galés descansavam.
O visconde voltou daí a pouco.
–
O Sr. de Ribeauville, disse ele, estava conferenciando com o major a propósito
da invernada. Só pude estar com ele um instante.
Porém ele, convidou-nos para virmos amanhã às duas horas; quer fazer-nos ele mesmo as honras da sua galera.
A viscondessa rejubilava. Visitar uma galera armada: seria uma coisa nova,
estranha, interessante! Elisabeth, empalidecida, virou-se a examinar uma
flotilha de barcos de pesca que
abeiravam o cais. Exercitava- se no domínio
de si mesma.
–
Alegre-se, Elisabeth, você terá uma surpresa ao jantar! Disse-lhe Laura ao
chegarem em casa. Adivinhe!
A moça sabia que o Sr. d’Ormancy, apaixonado
caçador, e muito amigo da mesa, dava às
vezes ordens ao cozinheiro.
Ela enumerou, pois; vários pontos de conhecedor: trufas ao
champanha, cabeça de salmão, caldeirada de enguia, torta de línguas de carpas...
Laura
riu.
Enfim, quando tocavam a sineta para o
jantar, ouviu-se de repente o galopar de um cavalo no pátio.
Chegaram-se à janela.
–
Olhe! Aí está a surpresa! Um elegante cavaleiro saltava da sua montaria e entendia
a mão ao visconde.
–
O Sr. de Gartel! Exclamou Elisabeth;
arrastada por sua prima num aceso de riso irresistível. Mas esse riso era maia nervoso que de
contentamento. Súbito ela se acalmou.
–
Certamente que você nos perdoará tê-lo convidado, coitado! Longe de ti ele se
aborrecia tanto!
–
Eu teria preferido que ele não viesse! Disse Elisabeth, com ar muito sério.
Estávamos tão bem nós três. Para que romper
o encanto?
O jantar foi muito alegre. Ao saírem da mesa o visconde, voltando-se para Elisabeth, lhe disse:
–
Para escrever à corte, será conveniente
que eu pessoalmente interrogue o seu protegido. Pediremos, pois, ao capitão que no-lo apresente.
O cavaleiro informou-se do que se tratava.
Contaram-lhe com toda naturalidade os passos projetados. Elisabeth essa noite
recolheu-se cedo. Aspirava estar só, e entregar-se as suas reflexões. Uma
grande excitação se apoderara dela. Seria possível que daí a poucas horas ela se
achasse na galera Favorita e que tornasse a ver o rosto de Cláudio? O capitão
no-lo apresentará! Havia dito o
visconde. Ela em imaginação vivia esse momento. Via o nobre condenado
huguenote vestido da casaca vermelha, da desprezível libré. Ele avançava sob os
olhares curiosos de Laura e do cavaleiro de Gartel. Eles permaneciam sentados, enquanto que Cláudio,
de pé como um réu, respeitosamente respondia às perguntas do visconde. Porém ela,
Elisabeth, não se envergonharia do seu
miserável vestuário, levantar-se-ia a sua entrada
e lhe estenderia a mão.
E durante o interrogatório se poria de pé
ao seu lado, solidarizando-se com ele; e se algum dieta desprezível lhe fosse
atirado, ela saberia fazer lembrar perante todos que ela também vinha da
família huguenote, era igualmente atingida!
Febrilmente ela abriu a sua pasta e fez
correr a pena sobre o papel. Nesta nova folha juntada à carta escrita meses antes, ela narrava-lhe os últimos acontecimentos,a visita ao hospital, e o espontâneo oferecimento
do visconde. Depois como mais alguém
iria com eles, ela o mencionou em poucas palavras.
“O cavaleiro de Gartel, dizia ela, é o
“oficial do
Rei” previsto no seu diário. Mas ainda que algum dia ele venha em busca da
jovem huguenote – não tenha medo – ele não a levará! Ela ficará esperando a hora da libertação, e,
se for preciso, saberá seguir os seus irmãos para a terra do exílio e da liberdade”.
Fechou
então a carteira. Oh! Quão ansiosamente esperava a madrugada do dia seguinte.
Jornal O Estandarte. Ano XXXVI, Nº 13, São Paulo,
29 de Março de 1928, p. 12-13.
CAPÍTULO
XIII
A RECEPÇÃO DO SR. DE RIBEAUVILLE
Pelas
duas horas da tarde, a chusma da Favorita acolhia com um han! (*) rouco
e prolongado, sua saudação habitual a cada um dos visitantes que eram o visconde, o cavaleiro de Gartel e suas companheiras, ao atravessarem o passadiço.
Durante
a recepção, os tambores rufavam, os soldados de pé nas galerias, armas ao ombro,
saudavam militarmente. Os remos
alçados, formavam em torno da galera um imenso
leque. Nas enxárcias, nos mastros flutuavam
pavilhões e bandeirolas de cores vivas, grandes auriflamas semeadas de flores-de-lis
tremulavam ao vento. O camarote da popa que de ordinário só tinha um oleado
para protegê-lo, estava coberto, para a circunstância, de uma armação de veludo
escarlate com longas franjas de ouro.
As esculturas e os ornamentos dourados da
popa brilhavam sob os ardores do sol.
O
visconde e o cavaleiro felicitaram ao Sr. de Ribeauville pelo esplendor das
decorações e pela perfeita ordem da sua galera. Pela manhã ele havia ordenado a
“borrasca” e tudo reluzia de limpeza.
Quanto a Elisabeth, das auriflamas deslumbrantes,
depressa, seu olhar se tinha abaixado sobre os infelizes que ela via acorrentados
a seus bancos, magros, queimados do sol, com as costas sulcadas pelos
golpes das cordas. Na linha dos vogas-avantes, entre todas aquelas faces ignóbeis,
devastadas pelo vício, ela avistou prontamente o rosto altivo e belo, que tão
frequentemente
lhe
aparecia em sonhos. Ele também a tinha visto e de longe; protegendo os olhos com a mão, a mirava.
______________________
(*)
Os generais e os duques eram saudados com dois han e três han eram saudações
para o rei. (Nota da Autora)
O
capitão fez entrar os seus hóspedes no camarote da popa ou sala de visitas da
galera. Como o dia estivesse quente, as senhoras ali deixaram suas capas. O cavaleiro esbelto e escorreito aparentava grandeza no seu brilhante
uniforme. O visconde sob a sua cota de malha, tendo a mão no copo incrustado de
ouro da sua espada, parecia querer
ostentar, em face daqueles miseráveis, destroços da humanidade, todo o
orgulho da velha nobreza provençal.
Elisabeth dissimulava o seu pacotinho
nas dobras do seu corpete. Deveria ela confiá-lo ao capitão? Ela hesitava, temendo uma indiscrição.
Toda a companhia se pôs a caminhar sobre a
coxia atravessando o navio. A dois passos dela Cláudio, cujo olhar intenso, atento, não a deixava, buscava
os seus olhos.
Emocionada, corando, Elisabeth por um
instante mergulhou os seus nos dele. Súbito
um pensamento atravessou-lhe a mente. Ao passar rente dele, ela deixou
cair o lenço. Com um gesto vivo
ele se pôs de pé e lho entregou. No instante em que os dedos se tocavam alguma
coisa passou da mão da moça para a do galé, que imediatamente se fechou sobre ele. Um obrigado, murmurado e
trêmulo, lhe foi dirigido e a moça passou.
Isto
foi feito tão depressa que nem o visconde nem o cavaleiro que a seguiam nada viram.
Escutavam as explicações que caminhando
lhes dava o capitão. Chegando à extremidade da coxia o cavaleiro de Gartel com
gesto garboso ofereceu a mão à moça, porém ela sem parecer vê-lo voltou-se para
o mar
e leve como
uma gaivota galgou a escada empinada. Atrás dela, na chusma, um par de olhos não perdeu nenhum de seus movimentos.
O capitão, gesticulando e falando alto,
contava seu encontro com a fragata espanhola que havia custado a vida a bom número dos seus homens.
Elisabeth falou baixinho ao ouvido do
visconde que, dirigindo-se ao capitão, perguntou-lhe:
–
Não existe por ventura um edito do rei pelo qual recebe imediatamente sua
libertação todo condenado ferido em batalha naval?
–
Certamente, disse o Sr. de Ribeauville. E foi justamente em virtude desse edito
que há alguns meses vários dos meus homens foram soltos.
–
O Senhor não tem aí na sua chusma,
continuou o visconde, um Cevenol de
nome Noguier, que foi ferido nesse mesmo combate? Como então ele não foi
solto depois de seus três meses de hospital da Marinha?
–
Simplesmente porque, a menos que eles abjurem, os heréticos não são contemplados nessa real mercê. É a expressa ordem de Sua
Majestade.
–
O moço em questão, prosseguiu o Sr. d’Ormancy, é vítima do ódio dos jesuítas. Houve várias irregularidades no seu
processo e um tal capelão de Alais representou nele um papel muito sujo. O que
pensa o Senhor: haveria alguma esperança de revisão do processo e de se obter
na corte a libertação dele?
O capitão levantou os ombros. – Creio
que um tal passo seria perfeitamente inútil. Escreva para a corte. A resposta será que vão examinar a causa dele,
porém para ser libertado é preciso que antes de tudo ele abjure. Esta
resposta foi dada no tom de um homem convencido e que se sente capaz de dar inúmeras
provas em apoio de suas afirmações.
– Se a
coisa é assim, sinto muitíssimo, disse o visconde olhando para
Elisabeth. Porém, eu tinha o rosto
voltado. Ele não lhe pôde ver a
expressão do mesmo.
Outros ouvidos haviam tomado nota desta
conversa.
Cláudio e Capuchinho, acorrentados não
longe dali, não tinham podido ouvir as perguntas do visconde, porém a voz clara
e vibrante do comandante, habituada a dominar o ruído do mar, lhes havia chegado.
Cláudio estava profundamente preocupado. Ele
havia escondido o pacotezinho sob a sua casaca e o estreitava ao coração. Não o abriria senão quando não tivesse receio de que algum olhar indiscreto o espreitasse. As palavras do capitão
nada de novo lhe revelaram sobre sua vida de galé, mas ele viu que se haviam
lembrado dele.
Virando-se a meio, ele dirigia seus
olhares para a proa. Elisabeth, de pé, apoiando-se no bordo do navio, aparecia-lhe
em plena luz. Sua bela cabeleira loura que cintilava ao sol, sua fronte alva,
seu vestido claro de contornos luzentes sobressaiam em belo relevo sobre o azul
pálido do céu de outono. Ele a contemplava desejando no coração que o tempo
parasse e que para todo o sempre esta visão angélica se lhe imprimisse na visão e na alma.
O capitão fez voltar os seus hóspedes
pela galeria, afim de que eles pudessem melhor admirar o prodigioso leque dos
remos.
–
É um espetáculo fora do comum, dizia ele, quando a um assobio esses cento e
cinquenta remos descem e conjuntamente caem no mar.
– Como eu desejaria ver isso! Exclamou a condessa.
–
Pois não! Vossa Excelência será obedecida! Respondeu o Sr. de Ribeauville. Com
as damas, o rude capitão sabia ser gentil e gracioso.
Duas palavras ao comitre, em seguida um assobio. Num abrir e fechar de olhos todas as casacas caíram, as manilhas foram empolgadas
e logo a
galera à cadência majestosa de seus remos vogava em pleno mar.
–
Este exercício deve causar um cansaço terrível para os remadores, disse Elisabeth, com o coração apertado.
–
Certamente. Mas é incrível o que se obtém de uma chusma bem exercitada. Imagine
o senhor, acrescentou ele voltando-se para o visconde, que em Dunkerque
experimentaram manobrar as galeras com remadores livres. Não aguentaram. Enquanto
que com os nossos
escravos, chega-se a vogas de quinze, vinte horas
e até mais. Quer ver como é que se faz
para lutar em velocidade com qualquer fragata ou navio corsário?
Nova
ordem, novo assobio. Desta vez era a voga-arrancada, na sua violência de tempestade, sob o chicote e as
imprecações dos sub-comitres. As costas dos galés tingiam-se de sangue.
–
Pare! Eu não posso ver isto! Exclamou Elisabeth apavorada. Que horror! Oh! Sr.
Capitão, piedade! Piedade para esta pobre gente!
-
Às suas ordens, minha bela menina.
Na galera eu comando aos comitres e sub-comotres, porém obedeço sempre às belas
damas.
Os remos imobilizados formaram de novo o leque. Alguns condenados desceram
as vergas e
içaram as velas. Um vento favorável conduzia
de novo a galera no porto.
Restava-lhes ver o porão da Favorita, o
beliche do capitão, a despensa, a tasec, cuja provisão de vinho
pertence ao comitre que o vende por sua conta, o paiol de pólvora cuja chave
está em mão do canhoneira-mestre.
Enfim
o quarto de operações.
–
É para aqui que trazem os feridos, disse o Sr. de Ribeauville, e onde a gente
larga os velhacos que foram açoitados.
Nesse quarto, não havia sinal de cama nem
de colchão; só se viam cabos, aparelhos, grossos rolos de corda. Que leito para
os corpos partidos pela metralha ou sulcados pelos golpes de corda!
Assentados
em frente do quarto de popa os hóspedes assistiram à ceia da chusma.
A passagem dos baldes, Laura levou ao
nariz o seu fino lenço.
– Que mau cheiro! Exclamou ela.
–
Concordo que o cheiro não é bom! Declarou o capitão. Mas eu não posso sustentar da minha mesa todos estes cães piolhentos e sarnentos.
Elisabeth voltou-se para o capitão e o
encarou. E esse olhar da moça de tal modo exprimiu espanto e censura que o Sr.
de Ribeauville se envergonhou das suas palavras.
–
É verdade que todos não merecem este agravo. O Senhor desiste do seu intento
acrescentou ele virando-se para o visconde. Enfim, nunca se sabe... Se o Senhor deseja ver este
homem, eu o mando vir.
Acabavam de pôr a mesa no quarto de
popa. Num grande prato um pato recheado de trufas, dourado, com a pele
quebradiça, exalando um aroma delicioso ostentava a sua gordura. O visconde, com as narinas dilatadas, o amimava com os olhos. Ele teve um gesto vago:
–
Se as coisas são
como o Senhor diz, seria simplesmente açoitar o ar. Mas vá convencer essas
cabeças de burro! O melhor seria fazê-lo assinar uma profissão de fé.
–
Isso é o que os nossos capelães cansam de lhes dizer. Mas vá convencer essas cabeças de burro! Tanto vale querer meter um prego no granito! Enfim,
isso é lá com eles! Ataquemos!
Puseram à mesa. Durante a ceia, uma dúzia
de museus com librés escarlate e bonés de veludo com galões dourados vieram
postar-se ante o quarto de popa. Pífaros, rebecas, guitarras e címbalos uniram suas harmonias. Era a sinfonia do “Comandante” que o Sr.
de Ribeauville havia requisitado essa tarde para a sua recepção.
–
Não é boazinha a minha orquestra? Perguntou ele todo sorridente. O chefe é um antigo músico do rei. Ele foi condenado por desertor. Todos
os outros também são galés.
Elisabeth escutava em silêncio esta música
estranha, atraente, que a emocionava fora de conta. As lágrimas que ela se
esforçava por não derramar a sufocavam. A garganta de lhe estreitara a ponto de nada poder engolir. O capitão que por vezes
fora convidado pelo Sr. d’Ormancy para as suas caçadas seguidas de banquetes copiosos havia querido dar um festim a
seus hóspedes. As
porções eram enormes. Elisabeth, sentada ao lado do visconde, fez-lhe um sinal,
que ele
compreendeu. Aproveitando um momento em que o capitão tinha as costas voltadas,
ele fez rapidamente passar para o seu prato a porção da sua vizinha e em poucos
bocados a engoliu.
Sobre a mesa coberta de baixela de prata,
os pratos seguiam-se e o vinho alambreado enchia as taças.
Iguarias suculentas jamais haviam despertado na moça uma tal aversão. Ela desejaria descer aos bancos dos condenados, partilhar o seu pão preto
e umedecer os lábios com aquele abominável caldo.
Quando os hóspedes se levantaram pensando na volta, o capitão os reteve.
–
Esperem ainda dois minutos! Quero mostrar-lhes uma coisa. Uma vasta tenda
havia sido entendida sobre a galera. A um assobio,
grande reboliço nos bancos dos galés. Instalavam-se mesas sobre travessas de
ferro ou de madeira a três pés mais ou menos acima dos bancos. Em um abrir e
fechar de olhos bons colchões, almofadas, lições e cobertores foram trazidos do
porão. Cercou-se cada leito com um pavilhão de pano azul e branco suspenso por
cordas. À luz das grandes lanternas que agora iluminavam a abóbada todos
esses pavilhões formavam uma vista imponente.
–
Esses leitos são para os galés? Perguntou inconsideradamente a
viscondessa aconchegando a capa, que a brisa marinha começava a esfriar.
O capitão se pôs a rir.
–
Ora esta! Esses leitos
são para os nossos oficiais.
Os marujos armam os dele sob a proa.
–
E os galés onde
se deitam?
–
Sobre seus bancos.
–
Sobre os bancos! Mas no inverno eles devem gelar! Quando faz muito frio, quando sopra o mistral, como
é?
–
Ora! Eles têm os seus capotes! Certamente que não sentirão calor! Mas eu nunca soube que algum tivesse
gelado
durante a noite.
Com os sentidos do ouvido e da vista, dolorosamente aguçados, Elisabeth ouvia e via tudo. Seus dedos apertavam nervosamente o espaldar da
cadeira. Entretanto ela
esforçava-se por adquirir uma aparência de calma, pois urgia falar. Enquanto os seus companheiros preparavam-se para partir, ela
abeirou-se do Sr. de
Ribeauville.
–
Aceite, Sr. Capitão, os meus agradecimentos pelo seu convite. A visita à galera
interessou-me vivamente. E eu aproveito a ocasião para recomendar-lhe calorosamente o meu
compatriota, o Sr. Noguier, o melhor amigo de meu irmão: Confio no Senhor. Eu sei que o Senhor será bondoso para com um
homem cujo único crime foi
querer servir a Deus segundo a sua consciência.
O Capitão inclinou-se profundamente.
–
A Senhora não pede, ordena, nobre dama! Eu abrandarei o zelo dos meus comitres
e, cuidarei do seu protegido. Esta noite mesma enviar-lhe-ei um pixel de vinho
para que ele beba a sua saúde.
Elisabeth agradeceu. Gentilmente, sem trair
a menor repugnância, ela estende-lhe a mão que ele pedia para beijar.
Partiam.
Pela última vez Elisabeth voltou-se para o banco do Cevenol. Ela avistou
Cláudio encostado à coxia, apoiada a cabeça na mão; seus grandes olhos negros a envolviam num triste e terno olhar. Ela inclinou-se
levemente. Ele respondeu por um gesto da mão. Neste momento a orquestra tocava
uma velha balada que ela bem conhecia. – “A noiva do trovador”.
Era uma história simples. O trovador amava a castelã e a castelã
amava o trovador. Ela era rica, ele pobre. Querendo tornar-se digno dela, ele passa para o estrangeiro para ali adquirir riquezas. Mas na praia distante, em vez da
fortuna, ele encontra a morte.
Esta balada reproduzida pelos instrumentos
da orquestra, que marcava as passagens mais tristes por notas breves dos címbalos,
era duma tristeza pungente.
Elisabeth
se pôs a repetir o estribilho:
No seu solar a castelã
Sonha e modula um cântico de amor.
Entretanto na praia longínqua
Dorme, dorme o pobre trovador.
Caíra a noite. Ninguém viu as lágrimas que lhe corriam pela face e que ela
nem enxugava temendo despertar a atenção. A carruagem esperava no cais.
–
Então! Perguntou-lhe o cavaleiro com o seu mais gracioso sorriso divertiu-se bastante?
O Estandarte. Ano XXXVI, Nº 14, São Paulo,
05 de Abril de 1928, p. 11-13.
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