Flores do Deserto de Cornélie Duval (Capítulo XIX-XX)



CAPÍTULO XIX
OS CHEFES DO DESERTO

       Despontava a aurora no horizonte quando pelos íngremes trilhos das Cevenas um grupo avançava silencioso. Rompia a marcha o velho Isaac. Magdalena e seu irmãozinho não se afastavam de sua mãe; eles sabiam que o dia seria cheio de perigos e a sua alegria juntava-se um certo tremor. Elisabeth ia pela primeira vez assistir a uma assembleia no Deserto e uma certa emoção se apoderara dela. Lembrava-se de Agostinho que, mais de uma vez, assistira às mesmas. Pensava também em um outro que por ter servido de guia a um predicante se achava acorrentado há três anos. Baixinho ela conversava com Joana.

– Tomaram-se todas as medidas, dizia a jovem camponesa, há sentinelas postadas em vários lugares e se aparecerem as milícias nós seremos logo avisados por fogos nos cimos dos morros. Teremos, pois, tempo de nos esconder nas cavernas ou de fugir pelas barrocas.

       Depois de transporem vários desfiladeiros estreitos e contornarem rochas a pique, nossos amigos atingiram um planalto já coberto por numeroso povo. Durante a noite os hunguenotes tinham subido de todas as aldeias das altas e baixas Cevenns, de todas as herdades ainda existentes. Milhares de novos católicos, deixando a missa, se juntaram aos seus irmãos. Havia gente d’Assneck, de Solier, da Blaquiére e do Pompidon; vieram até do Oighan e de Florac. Homens já maduros, velhos, tinham caminhado mais de quarenta léguas com o bastão de peregrino na mão para assistir ao culto do Deserto.

        Seria o fervor religioso o único motivo que trazia de tão longe, com risco de vida a este povo imenso?

      Seria temerário afirmá-lo. Não haveria quiçá de permeio a emocionante volúpia de zombar do perigo e (o coração humano, quem lhe conhece os refolhos!) o prazer secreto de mofar dos padres, de vingar-se da violência exercida pelo clero católico? Anteviam a cara comprida do Sr. cura pela manhã vendo desaparecidas as suas ovelhas e a sua igreja completamente vazia!... Este pensamento não deixava de divertir o povo grave e ao mesmo tempo brincalhão das Cevennas. Além disso propalavam notícias fantásticas para que se desencaminhassem as milícias de Montrevel e as atraíssem exatamente do lado oposto àquele onde se reunia a assembleia. Porém, se alguns vinham por bravata, ou por curiosidade, grande número deles expunha-se ao perigo porque realmente tinham fome e sede de ouvir a palavra divina.

     Entoaram um salmo. Dos lábios daquela inumerável multidão, naquele círculo de rochedos, ele elevou-se ao céu da madrugada cujo clarão róseo abrasava o horizonte.

     “Livra-me de meus inimigos, Deus meu!
põe-me acima do alcance de meus adversários :
Livra-me dos que obram iniquidade,
e salva-me dos homens sanguinários.
Porquanto eis que eles estão de emboscada a minha vida;
reúnem-se contra mim os fortes,
não é por delito meu, nem por pecado meu,
Sem culpa minha ó Jeová! eles investem e se dispõem;
Tu, porém, Jeová! riste deles;
zombas de todos esses gentios.
Quanto à força dele, adversário, em Ti estou esperançado;
Pois Deus é minha torre de refúgio”.

     Havia algo de emocionante, de estranhamente solene no apelo que subia ao Todo-Poderoso desses milhares de corações cevenoes. Era a queixa de uma raça oprimida, perseguida, mas que sob o ferro do opressor se levantava e estendendo as mãos aos céus soltava este grito de triunfante:

“em Ti estou esperançado;
Pois Deus é minha torre de refúgio”.

    Daí a pouco produziu-se um remoinho na multidão. De um estreito desfiladeiro desciam longas colunas de guerreiros em armas, alguns deles, os chefes, a cavalo e vestidos de uniformes vistosos.

    Eram os camisards. De longe Joana reconheceu seus irmãos. Ela acenou-lhes e daí a pouco toda a família achava-se reunida.

       Uma rocha elevava-se à extremidade do planalto um dos camisards galgou-a.

– Olhe, disse Joana a sua amiga, este é Roland, nosso chefe supremo. Quando está ele presente, é sempre quem preside.

      Elisabeth viu um homem de estatura mediana, cujos olhos escuros, cheios de fogo, incontinente dominando a multidão a subjugou. Com a cabeleira flutuante, seu magnífico gibão e uma das mãos sobre a guarda da espada, tinha ares de grandeza, o antigo zagal cevenol...

    Em uma alocação enérgica e breve ele recomendou a paciência ao povo do campo, prometendo-lhes em nome dos seus guerreiros que os haviam de defender, que antes de abandoná-los todos os camisards até o último pereceriam sob as armas. Em seguida exortou seus irmãos à humilhação e ao arrependimento:

Se não guardais interdito algum em vossos corações, dizia-lhes ele, se toda a iniquidade é banida, então o Senhor, o Deus de vossos pais, vos livrará e vos salvará.

      Levantou os olhos e todas as cabeças se curvaram, em fervente prece, pedindo ele a bênção do Todo-Poderoso sobre aquele dia.

      Um outro profeta apareceu na tribuna; trazia um casacão de púrpura, uma rica espada; seu chapéu de pluma e com cordão de ouro foi depositado sobre a rocha.

– Abrahão Mazel, murmurou Joana.

    Mazel tirou o seu texto do Apocalipse. Em discurso de ardente eloquência ele predisse a queda da Igreja católica, a grande Babilônia, como lhe chamava. Majestoso qual um vidente da antiga aliança ele comentou os livros proféticos e contou as visões que ele mesmo tivera. Com o rosto radiante ele proclamou os juízos de Deus sobre os perseguidores e a próxima vitória decisiva sobre todas as forças do inimigo.

     As orações alternavam com o cântico de salmos. Uma onda de entusiasmo passou sobre a multidão ao aparecer sobre a rocha um moço louro, gracioso, ainda imberbe.

É Cavalier, nosso jovem chefe, disse Marcos ao ouvido de Elisabeth.

Cavalier! Não é possível! Se é tão moço, parece uma criança...

– Ele tem dezenove anos. Ao meio-dia hei de lhe contar alguma coisa dessa criança como a Senhora lhe chama...

       Cavalier falou sobre o jovem pastor de Belém que, com o auxílio de uma funda e de alguns seixos, abateu o gigante.

Assim, se nós, disse ele, pusermos nossa confiança no Senhor, ele nos comunicará a sua força e nos tornará invencíveis.

    Chegou a hora do ágape sem que ninguém se apercebesse de quão rápido o tempo havia corrido. Puseram- se em comum as provisões. Enquanto restauravam as forças, Marcos contou a história prometida.

– Cavalier havia determinado que se destruísse o castelo de Servas, cuja guarnição nos espiava, seguindo todas as nossas idas e vindas. E sabe que fez?

      Um dia caímos sobre um destacamento real entre Uzès e a ponte do Espírito Santo. Foram todos passados ao fio da espada. Cavalier fez que vários dos nossos se disfarçassem em milícias do rei com as roupas dos mortos, e apoderou-se dos papéis que trazia o comandante. Alguns carmisards de cara feroz foram acorrentados para simular prisioneiros e ei-los a caminho de Servas! Munido da folha de serviço militar, Cavalier apresentou-se ao major da fortaleza como o sobrinho do duque de Broglie que lhe levava prisioneiros. Ao ouvirem esse grande nome já se vê que todas a portas se abrem e somos introduzidos no pátio. Põem-se mesas, o major quer dar um jantar ao seu ilustre hóspede... De repente Cavalier levanta-se, faz um sinal... No mesmo instante nós nos atiramos sobre o major. A guarnição é trucidada em poucos minutos. Soltamos nossos irmãos, apoderamo-nos das armas e das munições e partimos pondo fogo ao castelo. Não se passaram vinte minutos quando uma formidável explosão fazia tremer o solo: era o castelo que ia pelos ares; o fogo havia alcançado o paiol de pólvora. Estávamos livres dos nossos espiões!

    Marcos e Daniel com os olhos brilhantes de orgulho contaram ainda outras proezas do seu jovem chefe. Elisabeth, virando-se para a Sra. Paysac, notou o seu olhar triste, a contração dolorosa dos lábios. Não lhe custou muito adivinhar-lhe as reflexões: Esses dois meninos ! Tinham manchado suas mãos de sangue! Eles tinham enfiado a espada em peitos humanos... Era este o pensamento que a fazia estremecer.

    Abaixando-se para Elisabeth:

–Tudo isto me perturba! Murmurou ela. Nosso Senhor recomendou que amássemos os inimigos, e não que os matássemos. Ele disse: “Alegrai-vos quando os perseguirem por minha causa, e não: Vingai-vos, usai de represálias. Os cristãos dos primeiros séculos se deixavam matar sem resistência... e o seu sangue se tornou a semente da Igreja.”

    Terminada a refeição, os grupos se puseram a circular: procuravam-se os amigos, as mãos se apertavam. Elisabeth notou de repente uma moça ao lado de Roland.
Ela era pequena, sem beleza, mas revestida de incomparável dignidade. Os rudes camisards a consideravam com o mais profundo respeito.

– É a Senhorita de Cornellie, disse Joana, a última descendente de uma nobre família de origem italiana. Ela enamorou-se de Roland que ela abriga assim como o bando dele no seu solar de Castelnau quando ele se vê perseguido pelos seus inimigos. Ela o segue frequentemente nos combates e partilha de seus perigos.

    Um profundo suspiro levantou o peito de Elisabeth. Seu pensamento se foi para além dos montes, para o mar onde os condenados penosamente manejavam os remos. Ah! se ele aqui estivesse! Seu verdadeiro lugar não seria ali, sobre a tribuna, ao lado de Cavalier e de Roland? Quando então voltaria ele?

     A tarde passou-se como a manhã, sem que em nada esmorecesse o zelo dos rudes predicantes, tão pouco como o entusiasmo dos seus ouvintes.

– Castanet, o profeta do Aigoal! disse Joana Paysac.

  Um camisard de pestanas serradas e olhos brilhantes se aprumava sobre o rochedo.

    Elisabeth considerou baixinho que ele tinha ares antes de bandido do que de profeta. Este trovejou contra a corrupção da Igreja romana. Para ele todas as ordens religiosas, os bispos e a padralhada toda eram Gogue e  Magogue sobre os quais ele chamava com veemente eloquência todas os raios do Senhor.

A Senhora vê aqueles magníficos cavalos, disse Daniel Paysac a Elisabeth, foi Castauet que os trouxe de Camargue. Ele mesmo é o primeiro cavaleiro do Languedoc. Não sei bem, acrescentou ele zombando, se todos eles foram pagos...

       A Senhora Paysac franziu o sobrolho.

– Castanet se tem mostrado inconsequente! Disse ela com severidade. Porque nossos inimigos roubam, será isso razão para roubarmos lambem? Porque eles pilham e matam, somos nós autorizados a fazer outro tanto? Ai! não sabemos mais que eles! Nós também claudicamos de ambos os lados!

– Mamãe, não exagere! protestou Joana. Quem foi que nos provocou, que nos forçou à resistência? É verdade que nos acontece cometer alguma falta, mas nem por isso deixamos de ser os filhos de Deus, o povo do Senhor. Se Deus não estivesse conosco dirigiria Ele; como o faz, a palavra aos nossos profetas?

     Elisabeth prestou atenção. O que ela notara, especialmente pela tarde, era a exaltação dos discursos e a incoerência deles.

- É exato, disse gravemente a Sra. Paysac, Deus nos fala. Porém, compreendemo-lo nós sempre? A luz é pura, mas ai! Os vidros dos nossos corações estão frequentemente enfumaçados assim como os das nossas lanternas. Passando através deles, a luz se amortece. Para ouvir claramente a voz de Deus, para discernir sempre perfeitamente suas direções seriam necessárias almas puras como o cristal. Cavalier é um admirável gênio militar. Porém quando ele toma fortalezas, trucida as milícias mil e passa ao fio da espada as guarnições, ninguém me venha dizer que ele o faz sob o impulso direto do Espírito!

– Mas Josué recebeu ordem de massacrar os cananeus! exclamou Daniel.

– Josué pertencia à antiga Aliança, nós outros somos da nova. Nosso Senhor nos recomenda amar nossos inimigos e perdoá-los.

      A Sra. Paysac era a única dessa opinião. Quando ela assim se expressava, Joana sacudia a cabeça, Marcos e Daniel ferviam de impaciência, porque eles colocavam os seus chefes, Roland, Cavalier, Mazel e até Castanet, o ladrão de cavalos de Camargue, ousadamente ao lado dos Isaías e dos Ezequieis.

     A volta efetuou-se em paz sob o cintilar das estrelas.

    Elisabeth que tomara o braço da Sra. Paysac, continuou a conversa.

– Porque, perguntou ela, Deus não limpa de uma vez nossos vidros embaçados antes de nos falar? Ele o poderia, pois é todo poderoso.

    A Sra. Paysac havia feito a si mesma esta pergunta mais de uma vez nas suas noites de insônia. E ela cuidava ter achado a solução.

– Minha filha, existem leis na natureza... A gente não separa o metal da sua escória assim como se corta um ramo com o podão? A mesma coisa se dá no mundo do Espírito. Corações manchados como os nossos, cheios de egoísmo, de rancor e de orgulho, não se limpam com o passar de um pano como se fora uma vidraça suja... É bem mais longo, mais complicado. Quando o Senhor quis dirigir sua palavra a Jeremias, para o sacrificar, Ele começou por jogá-lo na fornalha.

– Deus nos ama! prosseguiu ela após um silêncio. Eu penso que Ele permite essas inspirações para nos elevar acima das nossas dificuldades, para nos encher, nas nossas provações, de uma coragem invencível e de uma alegria sobrenatural. Porque sem isso teríamos caído, há muito, no mais terrível desespero.

– Mas, disse Elisabeth quase súplice, se oramos, se nos humilhamos – Ele dará apesar de tudo a vitória a nossas armas? Oh! Diga! Ele não nos abandonará?

– Deus nunca abandona os que o invocam. Quanto ao êxito da guerra, isso é o segredo do Eterno!


Jornal O Estandarte. Ano XXXVI, Nº 21, São Paulo, 24 de Maio de 1928, p. 13-15.

CAPÍTULO XX

O ARCO-ÍRIS

     As previsões otimistas dos jovens Paysac não se realizaram. Após várias derrotas sucessivas foi a defecção de Cavalier que se deixou engodar com as promessas do marechal de Villars, sucessor de Montrevel. A história julgou severamente a conduta do jovem chefe camisard. Entretanto seria de equidade lembrar seu gesto, quando tentado pelo ouro: Não peço dinheiro, respondeu com altivez, porém a restauração dos antigos editos; ou então salvo-condutos para sair do reino!

      Eis em resumo as concessões que lhe fez Villars, em virtude dos plenos poderes que lhe concedera a corte:

1º – Liberdade de culto e de consciência, porém sob a condição de não serem reconstruídos os templos.

 2º Libertação de todos os prisioneiros.

3º – A volta de todos os exilados que prestassem juramento de fidelidade ao rei.

4º – Isenção de imposto durante dez anos a todos os cevenoes que tivessem as mãos queimadas.

       Quanto às cidades de refúgio cuja restauração os camisards pediam, isso lhes foi negado.

    Cavalier, fiando-se na palavra real, aceitou as condições. Ele recebeu a patente de coronel, honras, uma renda durante a sua vida. (1)

       Roland, mais experimentado, fez suas reservas. “Prometer e cumprir são coisas diferentes, disse ele. Se o marechal quer que deponhamos as armas, ele que comece em soltar nossos cativos!”

     Roland tinha razão de desconfiar. As promessas sem dúvida, lealmente formuladas pelo marechal de Villars –tão conciliante e generoso quão Montrevel fora cruel, – nunca foram ratificadas por Versailles (2).

        Houvera no tratado complicações, subentendidos....
   
      O rei exigiu que os insurretos se entregassem à discrição antes de lhes ditar suas condições. Roland indignado recusou. As negociações foram rotas e os forçados protestantes que já haviam saudado a aurora da libertação, permaneceram nas suas cadeias!

      Alguns meses mais tarde, a 14 de agosto, Roland caía com as armas na mão em Castelnau, num encontro com as milícias reais. Com ele baqueava a insurreição camisard.

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(1) Cavalier desculpou-se disso nas suas memórias dizendo: “Eu ainda era uma criança, e não tinha ninguém que me aconselhasse”.

(2) Talvez em virtude deste axioma: Não se é obrigado a guardar a palavra dada a um herético! – Notas da Autora.

        Estas notícias foram para nossos amigos da caverna um golpe terrível. Tanto mais profunda fui a decepção quanto mais ardente fora a esperança. Marcos e Daniel tinham seguido Cavalier na sua retirada, iam em direção de Paris. Tornariam a vê-los ainda? Um montanhês contou aos Paysac que o corpo de Roland, transportado a Nimes, fora arrastado sobre uma ciranda, (3) enquanto que três de seus companheiros sofriam o suplício da roda. Elisabeth, ao ouvir isto, esqueceu por alguns instantes as suas próprias penas para pensar na de uma outra. Ela via Odete de Cornelli ajoelhada ao pé do cadáver desfigurado, horrivelmente mutilado do jovem chefe camisard. Esta dor sem nome ela a sentia no seu peito.

        “Quão cruel é a vida! dizia baixinho a si mesma a moça. Que grandes e pungentes dores, por um pouco de gozo que nos concede!... Com tudo, Deus reina! Ele nos manda crer, esperar, apesar de tudo!”

        Seus joelhos dobraram-se e do seu coração transbordando de simpatia subiu ao céu uma oração comovida e fervorosa.

      Havendo-se dispersado os bandos camisards, sobreveio um tempo bem duro, de tristeza e solidão para os habitantes da gruta. Enquanto os dias eram bonitos e o sol brilhava, Elisabeth andava pelas matas com as crianças, em busca de lenha, de castanhas e de amoras silvestres, sem que o tempo lhe parecesse longo. Porém com o outono a temperatura baixou, as paredes da caverna vertiam água, os leitos de folhas eram úmidos. Elisabeth não tinha saudades do seu quarto confortável nem do seu macio leito. Quando essa tentação lhe vinha, bastava lembrar-se dos pobres forçados sobre as suas pranchas... E a coragem e a paciência lhe voltavam. Entretanto ela nunca cismara que a vida de cigano fosse coisa tão rude. À noite, ao clarão do lume suspenso a uma saliência da rocha, a Sra. Paysac lia em voz alta a sua Bíblia huguenote. O desastre não abalara a sua fé.
 
      Mais firme do que nunca ela sustentava, exortava, animava a sua família. Entretanto o porvir avançava desolado, ameaçador, sem esperança. O inverno estava à porta. Que seria dos pobres fugitivos cujas casas tinham sido queimadas?

– O Senhor proverá! respondia a Sra. Paysnc.

     Elisabeth já desanimada passara uma noite quase toda a chorar em vez de dormir. Pela manhã dia adormeceu por um instante c sonhou um estranho sonho. Ei-lo conforme ela o contou mais tarde a sua confidente, sua querida Sra. Paysac.

     “Eu acabara de escalar o cimo do Espéron, assentara-me e pusera-me a admirar a esplendida vista, o mar que, cintilando, estendia-se aos meus pés. Muita gente passava e assentava-se em torno de mim sobre a relva. Porém todas aqueles rostos me eram desconhecidos. De repente alguém sentou-se ao meu lado, uma mão de homem, uma mão morena pousou sobre a minha. . . Soltei um grito de alegria e minha emoção foi tão forte que acordei em sobressalto. Porque, ainda que eu não tivesse podido ver o rosto, eu bem sabia que ele viera e se assentara ao meu lado. Fugira a visão, porém a imensa alegria que me causara ao despertar enchia ainda o meu coração. Esse cimo é a terra? É o céu?Falou-me de tornar a ver, mas onde? Quando? Como! De novo como para a  guerra camisard. Isso é o segredo do Eterno!”

     Um dia Méric apareceu na gruta. Ele trazia uma carta com o carimbo de Genebra. A Sra. Paysac reconheceu a letra de seus filhos. “Obrigada, meu Deus”! exclamou ela, e abriu-a rapidamente.
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 (3) Arrastar sobre uma ciranda, outrora pena infamante que consistia em pôr sobre uma ciranda e fazer arrastar por um cavalo, o corpo de certos suplicados, suicidas, etc. (Nota da tradutora).

“Genebra, 14 de outubro 1704.
Queridos pais,

     Eis-nos em Genebra após uma bonita volta pela França. Trabalho não falta. Há aqui um negociante de ovelhas que aprecia muito a nossa bela raça cevenol. Falamos-lhe de um lote de oito carneiros da herdade da Butte que foram postos nas pastagens do Espéron este último verão. Ele está disposto a comprá-lo. O capim rareia ali por causa da seca enquanto que aqui temos belas pastagens. Ele vai partir incontinente. Fixai vós mesmos o dia e o lugar onde lhes entregareis as ovelhas em questão. Ele as pagará a bom preço; sobre este ponto podeis ficar tranquilos.

        Para nós tudo vai bem. Havemos de nos ver daqui a pouco. Até lá muitas lembranças a todos da família.
MARCOS e DANIEL.

     A Sra. Paysac e Joana se entreolharam. Seus olhos brilhavam de alegria. “Louvado seja Deus!” repetiam elas. Elisabeth, ainda que menos familiarizada com a linguagem figurada pela qual os huguenotes buscavam iludir seus inimigos, por sua vez compreendeu:

– Então as ovelhas somos nós! exclamou ela.

– Exatamente! E o negociante é um guia. Estamos
salvos!

    Louvado seja Deus que assim deu a nossos rapazes esta maravilhosa inspiração!

    Discutiu-se o lugar do encontro. Méric que estava presente ofereceu a sua casa. Na mesma noite Elisabeth escreveu ao endereço indicado para anunciar que o lote de carneiros estava pronto, que o comprador se podia apresentar.

    Quando dois dias mais tarde os Paysac, escoltados por Blaise Méric e duas bestas, desceram o vale do Gardon, eles encontraram Abraão Mazel.

– Vou a Marselha ver meu irmão, lhes disse ele. Se tendes algum recado para Noguier, ou Franceset ou qualquer outro de meus irmãos, de bom grado me encarregarei disso.

      Elisabeth tinha uma carta escrita no Deserto por um dia de sol, tendo lhe uma rocha servido de estante. Ela aí contava os acontecimentos que haviam provocado a sua partida, descrevia sua caminhada com Méric e pintava um quadro colorido e pitoresco da assembleia do Deserto. Ela falava também de Luiza e da pequena Paulita, e pedia a Cláudio que, se fosse possível, fizesse chegar essas notícias a Franceset. Na véspera ela havia juntado mais o seguinte postscriplum:

     Como talvez saiba, a guerra terminou. Não foi da vontade de Deus livrar-nos. Porém não desanimamos. Conforme diz a Sra. Paysac, ele quer provar a nossa e quando então vier o livramento ele será ainda mais maravilhoso. Ela manda-lhe este recado: O socorro vem do Senhor; se ele tarda, aguarda-o. Marcos e Daniel que seguiram Cavalier na Suíça, enviam- nos um guia; partimos daqui a poucos dias, para Genebra. Vou-me daqui com o coração apertado; entretanto mais que nunca sinto a verdade desta palavra: Entre os que se amam não existe distância. Nossa estrela radiosa brilha sempre no firmamento; tanto de Genebra como de Marselha nossos olhares continuarão a buscá-la ali. Todos vos saúdam afetuosamente.

      Sua na vida e na morte, ELISABETH”.

       Ao amanhecer um grupo de fugitivos, sob a direção de Martin, um dos melhores guias de Genebra, subia a margem esquerda do Rhodano. Acabavam de atravessar a ponte do Espírito Santo, cujos maciços pilares dos dezenove arcos são o terror dos barqueiros que descem o rio. Elisabeth e Joana, sob as vestes dos irmãos Paysac, davam-se por dois marceneiros em busca de trabalho na França. A Senhora Paysac levando um enorme cesto, era como quem ia ao mercado com seus dois filhos. Luiza, levando nos braços a sua filhinha e carregando um cesto menor, parecia uma camponesa a levar o almoço ao marido. E a ninguém viria a ideia de prender o velho lsaac, honesto camponês, que com a enxada ao ombro ia ao seu trabalho. Também, no dizer do guia, não era na travessia da Provença que havia o maior perigo, porém nas fronteiras. Aí era abrir os olhos e bem! Ele tinha no bolso passaportes de antigos fugitivos. Estes, ajudados por alguns florins, facilitariam os negócios em caso de algum mau encontro. Não era preciso, pois, temer demasiado nem as galeras nem a torre de Constance. (*)

      Nem sempre o guia caminhava com eles, explicava-lhes etapas e à tarde como por acaso se encontravam em qualquer hospedaria.

    Elisabeth nessa manhã caminhava ao lado da Sra. Paysac. Em frente, pelo lado do norte o céu era tenebroso, velado de bruma, carregado de pesadas nuvens plúmbeas, enquanto que pelo lado do sul aparecia uma esplêndida aurora. Leves nuvens, ao princípio douradas, aos poucos se tingiram de maravilhosos clarões róseos.

     Elisabeth voltou-se para olhar. Uma indizível saudade a levava a esse Sul que ela ia deixar para sempre. Esses fogos da madrugada que nascia inundaram Marselha; eles deviam cintilar nas grandes vagas que se quebravam contra as galeras...

       A Sra. Paysac tomou-lhe a mão.

– Não olhe para trás, minha filha! disse-lhe ela com firmeza. Volta os olhares para a frente e vê a que se reduzem nossas tristezas e nossas lágrimas quando a luz eterna brilha através.

     O sol vinha aparecendo. E seus primeiros raios, penetrando os aguaceiros do negro setentrião, ali formaram um magnífico arco-íris.

      Elisabeth teve uma exclamação de surpresa e de alegria.

– Vês, prosseguiu a Sra. Paysac, o Senhor nos fala. Ele lembra-se da sua aliança e a nós que tão frequentemente a esquecemos, Ele no-la faz lembrar. Louvemo-lo por sua imensa bondade!

       A moça sorriu e cobrou ânimo. Consigo ela dizia: A Sra. Paysac é uma rocha!”

     Chegaram à fronteira.

    Por dois dias inteiros esconderam-se numa choça no meio da mata. O guia não abalava. Enfim uma tarde por uma chuva torrencial ele avisou a seu povo que se aprontasse.

– Mas nós não podemos sair por um tempo destes, disse Joana; esperemos que passe a chuva. Nada disso! replicou ele. Este dilúvio é a nossa salvação. Os guardas estarão abrigados, podem descansar. Passando a trinta passos abaixo do posto nada arriscamos. Que importa o temporal!

     Em minha casa encontrarão bom pouso, leite quente que minha mulher lhes dará para aquecê-los, e os esperam seus filhos.

      Avante, pois, sob a guarda de Deus!

     Pela meia noite os fugitivos molhados até os ossos, porém com o coração a transbordar de gratidão, punham
enfim os pés sobre o livre solo da república de Genebra.

      Deixemos agora nossos amigos se instalarem na herdade onde Marcos e Daniel trabalham há algum tempo. Os chacareiros dos campos de Genebra são hospitaleiros e fraternais para os fugitivos huguenotes, e sabem se apertar para acolherem os novos hóspedes.
Enquanto esperam para poderem fundar o seu próprio lar, os Paysac, para não serem pesados, comeria o seu pão com o suor de seu rosto.
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 (*) Torre de Constance, lugar sinistro, onde, por muitos anos, mulheres huguenotes foram aprisionadas. (Nota da tradutora).

    O violento temporal que os desarraigou do solo natal nada lhes fez perder da energia e da alegria da vida. Pelo contrário, ele decuplicou essas energias.

       Talvez os veremos de novo um dia. Não lastimemos a sua sorte! Apesar da provação que sobre eles pesa, a pungente ansiedade quanto a sorte de seus cativos, eles não são desgraçados, porque nutrem no coração uma grande esperança e sabem entregar o porvir nas mãos do Todo Poderoso.

O Estandarte. Ano XXXVI, nº 22, São Paulo, 31 de Maio de 1928, p. 13-15.

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