CAPÍTULO V
O PRESO DO SUBTERRÂNEO
Elisabeth
cumpriu sua palavra.
Desta vez Gisela insistiu em mostrar-lhe o seu quarto, um
alegre e gracioso quarto de moça, forrado de papel claro e cortinas brancas, a
janela ornada de gerânio em flor. Este ninho
encantador formava um estranho contraste com os longos corredores sombrios, com
a espessura e anosidade dos muros.
Um laço de amizade não tardou a
estabelecer-se entre Elisabeth e os filhos do carcereiro. Ela viu o pai deles, o carcereiro Barnes. Ouviu o nome – que ela já
sabia – do preso do subterrâneo. Quando lhe pareceu que a intimidade estava assaz estabelecida, escreveu algumas linhas num cartão e colocou-o juntamente
com a carta do conselheiro de Lussaulx dentro da Bíblia, a qual foi confiada às
mãos de Gisela.
– Eis um
embrulhozinho para o Sr. Noguier, um
livro que lhe pertence; consentiria em lho entregar? Seu pai certamente
não se oporá a isso! Concluiu ela com
voz extremamente insinuante.
– O padre Crespy proíbe que se lhe entregue
qualquer coisa a não ser os grossos alfarrábios
que ele lhe traz. Mas papai diz que isso é uma indignidade! Um preso tão
dócil, tão gentil! Ele não cometeu crime algum e é mais duramente tratado que
os próprios assassinos. . .
Gisela mergulhou-se um instante nas suas reflexões.
Depois,
voltando-se de súbito para a sua companheira:
– A senhora gostaria
de vê-lo?
– Ver quem?... O
preso do subterrâneo? Exclamou Elisabeth fazendo-se pálida.
Veio-lhe tão inesperada esta proposta que ficou sem palavra,
turbada e alterada. Achar-se em face desse
desconhecido cuja lembrança a perseguia, que de há meses ocupava todos os seus pensamentos...
A esta perspectiva uma estranha
emoção apoderou-se dela.
– Todos os outros presos recebem visitas, acrescentou Gisela: ele nunca. Os que vão visitá-los dão a papai uma moeda de
40 soldos e ele sempre os deixa entrar. O preso do subterrâneo ficaria tão contente de vê-la!
– Como é
que sabe isso? Você falou-lhe a meu respeito? Perguntou vivamente Elisabeth.
– Certamente. Eu contei a ele como nos tínhamos encontrado, e também suas
visitas à torre. Tudo isso pareceu interessá-lo muito. Ele
fez-me várias perguntas.
– Ele
disse a você que
desejaria ver-me?
– Não
assim diretamente. Mas pelo seu olhar e pela expressão do rosto, percebi que se
daria por muito feliz se a senhora o fosse visitar.
Vendo
a hesitação de Elisabeth, prosseguiu:
– Oh! Não
tenha medo! O subterrâneo é sombrio. É frio e úmido, porém é limpo. Nas outras
prisões há masmorras infectas e cheias de insetos asquerosos. Aqui não. Nós cuidamos dos nossos presos.
Elisabeth aprumou-se. Uma súbita resolução
passou pelo seu olhar. Apesar do tremor interno que se apoderara dela, disse
com firmeza:
– Pois
bem! Se seu pai consente, eu acompanho-a. Porém às propostas da filha, o
carcereiro objetou:
– Tenho
ordens, e as ordens do padre Crespy são formais: ninguém pode vê-lo, entendeu ?
Ninguém!
– O
senhor jurou obediência ao padre Crespy?
– Não,
mas é terrível esse padre! Ai de quem cai no seu desagrado...
– Pai,
interveio Gisela, ele aqui esteve esta manhã. Só o veremos de novo daqui a
dias.
– Se isto
pode tranquilizá-lo, disse Elisabeth, dou-lhe a minha palavra de que não o
trairei. Uma vez que a sua consciência
não está comprometida, tome isto. O senhor pode aceitá-la sem escrúpulo.
E pôs-lhe na mão uma pequena moeda de ouro.
Com uma destreza que traia longa prática,
Gisela desenganchou da parede um grande molho de chaves. O carcereiro segurava a moeda, hesitava,
acariciava-a com os olhos.
– A
pequena sempre faz a sua vontade, disse enfim
como para desculpar-se. Eu vou fumar meu cachimbo no pátio. De nada sei, nada vi, nada ouvi!
Saiu. Gisela acendeu a lanterna, abriu
uma primeira porta e Elisabeth viu uma escada que descia, e perdia-se
nas trevas. Uma rajada de ar gélido, sepulcral, lhe bateu no rosto e a fez
estremecer.
– A senhora tem algum receio disse Gisela sorrindo. Eu não! É que não está acostumada. Venha. Sobre as grandes lages o ruído
dos passos soava de modo estranho. Atingiram por fim uma maciça porta de ferro.
– É aí, disse ela.
A pesada chave rangeu na fechadura e a
porta abalou- se. A filha do
carcereiro avançou com uma saudação amável e pousou a lanterna sobre a mesa.
Duas ou três palavras foram trocadas. Elisabeth permaneceu alguns segundos imóvel na sombra
retendo a respiração. Em frente
à mesa um homem estava sentado. A lanterna
alumiava-o plenamente com a sua luz avermelhada. Os traços eram acentuados e a cabeleira
atirada para trás descobria a fronte.
A linha do perfil correto e
viril, desenhava-se com nitidez sobre o fundo tenebroso do subterrâneo.
– Veja, disse Gisela,
eu lhe trago uma visita! E, levantando a lanterna, fez projetar os seus raios
sobre a moça que se aproximava. O preso
levantou-se como que impelido por uma mola.
– Elisabeth!... Ah! Perdão,
Senhorita d’Arville!..
Neste grito espontâneo, uma alegria comovida
unia-se a um profundo espanto. Dominando-se com esforço: – A Senhora aqui!... Oh que bondade e
generosidade da sua parte ter-se lembrado de um pobre preso...
Respeitosamente ele ofereceu-lhe o único
assento, porém ela conservou-se em pé.
O Sr. Barnes consentiu que eu entrasse
apesar do padre jesuíta, disse ela esforçando-se por firmar a voz. Venho da
parte de meu irmão. Ele encarregou-me de
entregar-lhe esta carta. É do conselheiro de
Alsis, Sr. de Lassaulx,
que conhecia nosso pai... Nós lhe escrevemos.
Ela abriu rapidamente o embrulho.
Cláudio soubera pelo carcereiro da morte de
seu amigo.
– Foi-me um golpe
doloroso! Disse ele. Nossa amizade vinha de longe, ele era para mim mais que um
irmão. No seu luto que era também o meu simpatizei profundamente!
Ela agradeceu-lhe com um olhar.
– Trago-lhe a sua última
mensagem. E citou-a textualmente. Na enfermaria ele falava
do senhor frequentemente, sua sorte o preocupava. Eis a carta.
Ele rapidamente a leu.
– Meu bom, meu
querido amigo! Disse ele comovido. Eu
bem sabia que ele não se esquecia de mim. Por meses tenho me preparado
para morrer.
O Sr. de
Lassaulx toma em mão a minha causa, promete
defender-me... É tão magnífico quanto inesperado. Que é um ano ou dois de detenção quando a esperança da liberdade brilha pelo meio? Como exprimir-lhe minha viva, minha profunda gratidão?
– Mas nós temos uma dívida a seu respeito! Murmurou a moça. A hospitalidade é uma coisa sagrada, deveríamos melhor ter
cuidado da sua segurança. Sem nomeá-lo, ela referiu-se ao papel
desempenhado pelo seu tio na cena da
prisão, o que a enchia de vergonha e de dor.
Contou-lhe o que de há muito a oprimia:
sentimento de não ter sabido prever, imprudências,
negligências, oh! quão involuntárias.
Ao som da voz dela mais ainda do que
pelas suas palavras, ele adivinhou o que ela sofrera, o peso da agonia que
anuviara essa vida tão nova. Ele quis libertá-la
de um golpe.
– Então a Senhora
crê, disse ele lentamente, com voz
grave e meiga, que nosso destino depende dos acasos de um encontro, de uma palavra, de um gesto imprudente? Não, não! O acaso não
existe. É uma mão poderosa, infinitamente
sábia, que traça nosso caminho.
Entrava nos planos de Deus a meu respeito que eu sofresse esta detenção, que minha coragem e minha fé fossem postas a prova. Prometa-me, prosseguiu ele com tranquila autoridade, prometa-me que nunca mais se há de acusar nem se afligir a meu respeito!
– Isso não lhe posso
prometer! Disse ela enquanto os seus olhos enchiam-se de lágrimas.
Mas as suas palavras fazem-me bem.
Obrigada! Involuntariamente os seus
olhos levantaram-se para a estreita
janela gradeada de ferro, percorreram os muros nus vertendo umidade, o miserável
leito de palha...
– E é aqui que o Senhor
tem de viver, meu Deus, é nesta
obscuridade que tem de passar os dias, as semanas, os meses! Toda a
pungente simpatia da sua alma se fazia sentir na sua voz.
– O horror da prisão lhe é mais sensível
do que a mim mesmo! Disse ele com um
sorriso, um belo sorriso que, qual o sol em paisagem brumosa, iluminou-lhe
o rosto todo. Nós nunca devemos desesperar. Devemos ter confiança no Todo Poderoso,
Naquele que tem nossas vidas em suas
mãos.
Esse “nós”
que os aproximava, que parecia envolvê-los,
unindo de alguma sorte os seus destinos, tocou-a profundamente. Com confiança,
pormenorizando, ela contou-lhe
os últimos dias de Agostinho, sua visita ao cemitério, suas relações com os rendeiros da Butte. Aludiu
igualmente ao acidente de Guerraz, o traidor, e a miséria da sua família.
– Ah! Exclamou o
preso involuntariamente. E esta exclamação
dizia muita coisa. “Enfim a justiça o atingiu! Teve a paga da sua infâmia”.
Porém foi apenas como um relâmpago. Os seus
traços contraídos logo distenderam-se.
– Pobre gente! Disse
ele com simpatia. Não lhes quero mal, tenho dó delas! E após um silêncio Gisela
contou-me que a Senhora vai
frequentemente visitar e
socorrer os pobres da aldeia...
Ela compreendeu o que ele queria dizer.
– Sim, disse ela vivamente, irei vê-los, lho prometo. Esforçar-me-ei por lhes ser útil. Farei isso pelo “senhor”. Ela acentuou esta última palavra de
tal forma que o fez estremecer. Ele aproximou-se e, tomando nas
suas mãos a da moça,
apertou-a com um “obrigado” que lhe brotava do
coração. Ela não retirou a sua.
– É belo, é grande,
saber pagar a ofensa com o bem, prosseguiu Elisabeth! Depois, lembrando-se do “nós” tão cheio de encanto que empregara o
preso, ela quis usá-lo também:
– É uma magnífica ocasião que Deus nos concede de
nos vingarmos cristãmente!
Então Gisela que se deixara ficar
discretamente a distância, no fundo da
masmorra, deu um passo para aproximar-se. Eles compreenderam que a
entrevista havia assaz durado.
–
Mais uma vez lhe agradeço de todo o coração por ter vindo. Minha prisão não me será mais tão negra nem tão triste; conservarei nela a sua
imagem. E com alguma hesitação, como se
solicitasse uma graça insigne:
–
Consente que lhe beije a mão?
Ela teve a tentação de dizer: Beije-me a
fronte como o fazia meu irmão! Porém
contentou-se em abandonar a sua mão àquele que a tinha presa. Então,
dobrando o joelho, os seus lábios aí pousaram.
–
E até à vista e não adeus! Não é verdade? Disse ele em voz baixa e concentrada.
–
Se Deus quiser! Respondeu ela com fervor. Novamente as moças passaram pelas
trevas dos corredores subterrâneos.
Gisela timidamente voltou-se para
a sua companheira:
–
A senhora já o conhecia de há muito? Indagou ela.
–
Vi-o esta tarde pela primeira vez. Porém é exato que eu o conhecia de há muito. Parece-me até, acrescentou ela
pensativa, que eu o conheci sempre...
De volta ao solar, Elisabeth encontrou a
Sra. Des Ponts-Marceaux estendida sobre o divã. A doente sentia-se melhor. A
expressão de profunda angústia que frequentemente lhe anuviava o semblante
havia desaparecido. Pela oração perseverante, a valente cristã elevara-se acima
do seu tempo e de sua Igreja.
–
Sinto-me feliz esta noite! Disse ela à sobrinha. Encontrei de novo meu filho.
Deus, que vê no coração, dá-me essa certeza: Ele o recebeu em graça!
–
Eu nunca duvidei disso! Disse Elisabeth, e, inclinando-se, beijou a sua tia e acariciou-lhe os cabelos
escuros onde já brilhavam uns fios de prata: Um imenso desejo
lhe veio de ajoelhar-se aos pés de sua mãe adotiva, de apoiar a cabeça
sobre os joelhos dela de verter para essa alma amante aquilo que
trasbordava da sua própria. Porém o silêncio impunha-se. Recalcando esse
desejo de expansão, com os olhos mareados de lágrimas ela deixou o
aposento. O bosque de oleandro oferecia-lhe refugio e solidão.
Assentando-se sobre a relva, tentou dominar sua exaltação, por um pouco de ordem no tumulto dos
seus pensamentos. O preso, ela o vira, sua voz lhe chegara aos ouvidos, ele lhe
falara. Deste encontro, deste contato
momentâneo com uma outra alma ela
recebera como que um choque misterioso que lhe abalava todo o ser. Não era tanto o
rosto que a impressionava, ainda que bem lembrasse de dois olhos negros e
penetrantes que sobre ela se haviam fixado com estranha doçura: o que mais a impressionara fora a voz. Aquela
voz clara que vibrara com tão profunda ternura e depois com tanta
autoridade quando lhe vedava o afligir-se
por sua causa, aquela voz lhe revelara
um caráter. De tudo isto ela conservava uma visão de beleza moral que a
deslumbrava. Jamais ela vira fundir-se em harmonia igual dois traços que pareciam
antagônicos: a energia e a brandura.
Agostinho
era, por natureza, brando e tímido. O Sr. des Ponts-Marceaux era de vontade
forte, mas quão dura!, enquanto, no
preso, a energia viril se aliava a resplendente bondade. Ela tentou
reviver a cena da prisão; mil
sentimentos diversos: o enternecimento e a gratidão, a admiração c a
piedade ferviam nela, se entrechocavam,
rompiam enfim todas as barreiras e fundiam-se
num oceano de amor. Resistir? Ela era tão incapaz disso quanto os habitantes das Províncias Unidas o eram de se oporem à invasão das águas do mar, uma vez seus diques rotos.
Um grande amor é sempre uma fonte de gozo
porque a alma nela mergulha por completo. Elisabeth nesse momento, não pensava no sofrimento agudo, no dilacerar da alma que um amor assim, em tais circunstâncias,
devia necessariamente acarretar.
Inconsciente do futuro, presa à deliciosa emoção da hora presente, ela entregava-se sem reserva. Demais, no
sentimento tão profundo que a subjugara não entrava egoísmo nenhum. A
sua vida de nada valia. Só ele é que era de importância. Ser-lhe-ia fiel,
guardar-se-ia para ele, ainda que num futuro longínquo, ainda que na morte...
Todas as complicações da existência se
apagavam, os deveres da sua posição não
existiam para ela... Amar, dar a sua vida: era tudo tão simples!
Jornal O Estandarte. Ano XXXVI, Nº 06, São Paulo,
9 de Fevereiro de 1928, p. 10-12.
CAPÍTULO
VI
UM DRAMA NA ILHA DO GARDON
Elisabeth voltava da sua visita à cabana
dos Guerraz. Em volta dela expandia-se a primavera; cobria os galhos com uma
folhagem transparente e leve, fazia pender das moitas cachos de ouro, casulos de seda e tufos
de corolas vivas. No ar tépido miríades de asas de insetos reluziam e vibravam. A moça caminhava entre
duas sebes de espinheiro em flor. Seu olhar, por cima da matas, buscava
as torres de Sta. Isaura. Pensava nos seus amiguinhos que não tornara a ver. Súbito, numa volta do caminho;
ela encontrou-se com Gisela que lhe disse estarem os pequenos a brincar à beira
do riacho e que ia em busca deles
.
–
Eu acompanho-a, disse Elisabeth. Vou contar a você em duas palavras a minha
visita de hoje. Venho da casa de Guerraz, o traidor. Gisela fez um sinal de que
compreendia. A mulher dele é uma pobre criatura doentia, sem vontade.
Agradeceu-me muito as provisões que eu levava. Quando contei da parte de quem
eu vinha, o homem voltou-se para a parede e não descerrou os dentes.
Tenho
a impressão de que a sua consciência está despertada e que o remorso o
atormenta. Existe alguém a quem esses
pormenores interessariam seguramente. Você quer transmitir-lhos?
–
Falo-ei! Disse Gisela. Eis aí o nosso bandinho. Parecem divertir-se muito. De fato,
as crianças estavam
muito atarefadas. Yvete e Jorge, aos quais se uniram outros companheirozinhos, entre eles Magdalena e Maurício, os pequenos da
família Paysac, trabalhavam ativamente. Construiam um vau para
alcançar a margem oposta. O riacho, cheio
pelas chuvas da primavera, dividia-se em dois braços que cercavam um
pedaço de terra onde cresciam giestas, arbustos e tojos.
–
É o Novo Mundo, a América, disse Jorge. E está cheio de animais ferozes. Há ali
também índios e árvores que ainda ninguém
conhece. É preciso preparar nossas
espingardas...
Gisela ria.
–
O preso, explicava ela, contou-lhes um destes dias a história de Cristovam
Colombo. E este menino o que ouve logo o faz passar nos seus brinquedos.
–
Ah! Compreendo! Disse Elisabeth subitamente interessada. Esta água é o oceano.
Além é uma praia desconhecida. E estas
pedras marcam o caminho seguido pelos
nossos navios. Coragem! É preciso navegar por
muito tempo, porém acabaremos por abordar. Ela pôs-se assim como Gisela à
procura de pedras grandes. Quando os
pequenos viram que não só sua irmã, porém também a Senhorita do solar
partilhava do seu brinquedo, o entusiasmo deles não teve mais limites. O vau
concluiu-se logo. Então o bando todo pode tomar pé na praia americana. Ali, mudança de cenário e metamorfose dos atores. Jorge fez questão de representar Cristovam Colombo em pessoa e escolheu dois companheiros. Os meninos transformaram-se
em Peles Vermelhas e as meninas em feras. Elisabeth representava um velho chefe
sentado no seu acampamento à sombra das
palmeiras, servido pela sua escrava, que não era outra senão Gisela.
–
Agora, nossas espingardas! Gritou Jorge armando-se de um galho seco. Vamos matar os
animais ferozes e todos os índios!
Elisabeth
interveio.
–
Matar homens!... Colombo jamais fez isso! Porque não te unes antes
a minha
tribo para destruirmos os animais ferozes?
O pequeno explorador achou bom o conselho e
seguiram-se corridas e risadas e tiros
pelo arvoredo em perseguição aos
animais ferozes. Quando os caçadores faziam alguma captura traziam-na em
triunfo ao acampamento. Por fim os
meninos cessaram com o brinquedo e cansados vieram sentar-se em torno de
Elisabeth pedindo que ela lhes
contasse uma história. Ela contou-lhes a
história de Daniel na cova dos leões. Finda esta, ela propôs-lhes outra coisa.
–
Há tantas flores; pontue não colheríamos
um ramalhete?
As mãozinhas depressa puseram-se a colher. Miósitos, violetas, boninas, margaridas amontoaram-se no colo de
Elisabeth. E de volta, ao subir a encosta:
–
A quem daremos este ramo? A quem irá ele alegrar?
Perguntou ela interrogando-os com o olhar.
–
Eu sei! Disse Jorge. Levemo-lo ao preso do subterrâneo.
–
Sim, acrescentou sua irmã timidamente, ele
não sabe que agora é a primavera.
–
Coraçõezinhos bons!... Vocês não se esquecem daqueles que
passam estes dias magníficos na escuridão dos calabouços! É verdade que para eles não existe a primavera!
Caminharam
alguns instantes silenciosos. Elisabeth via em espírito o preso, sentado a sua mesinha
na treva, no frio, na absoluta solidão do subterrâneo. Depois, à tardinha, as crianças ali
penetrando, qual um jato de
alegria e de luz.
Ouvia-os contar-lhe com animação como haviam
representado a sua história na ilhota do Gardon... Via as flores a alegrarem a masmorra com
o seu brilho de primavera espalhar em torno dela seus suaves aromas. Então,
durante alguns minutos, ela sentiu-se profundamente feliz.
Mas, ele não permaneceria para sempre
fechado na torre sombria. Um dia, ele haveria de sair dali... Ela imaginava-o, transpondo o pórtico monumental
e descendo pelo trilho a passos rápidos. De súbito ela estremeceu. Uma sombra projetou-se na sua frente, um homem descia pelo trilho...
Porém sua alegre emoção mudou-se subitamente em viva contrariedade. Ela acabava
de reconhecer o cavaleiro de Gartel.
–
Eu a buscava! Disse ele, e agradeço a minha boa estrela que me fez encontrá-la.
Que imprudência para uma moça arriscar-se
sozinha pelas estradas!... Os
montanheses, a Sra. o sabe, pegaram em
armas, e seus bandos selvagens podem descer qualquer dia até aqui?!
– Nossos montanheses das Cevenas, oh! eu não os
temo. Eu temeria muito mais as tropas reais, replicou ela, com certa bravata. Se em represália nossa gente enxotou os curas, ela ao menos jamais toca
nas mulheres e nas crianças.
– Não é bom fiar-se nisto,
insistiu o cavaleiro com ar grave. As estradas hoje só são seguras para gente bem escoltada ou bem armada. O seu
velho cocheiro também não é mais uma escolta.
É preciso ser prudente até que
acabemos com esta canalha!
– Esta canalha! Repetiu
a moça cujas faces enrubescerem. O Sr. se esquece, Sr. cavaleiro, o que lhes
fizeram. Aos nossos montanheses,
queimaram-lhes as casas, roubaram-lhes os filhos e os bens. E o senhor estranha
que por fim eles se insurjam contra
seus perseguidores?
O cavaleiro olhou sem responder para
Elisabeth. Uma chama ardia nos olhos dela, as faces estavam coloradas pela
indignação, a atitude era altiva. Ele jamais a vira tão bela. Parecia-lhe uma
rosa cheia de espinhos que bem dificilmente se deixaria colher; entretanto, impossível talvez não fosse.
Chegavam na encruzilhada.
– Tome! Disse ela passando a Gisela o ramo florido. Renove-lhe a água frequentemente para que as flores se conservem frescas por bastante
tempo.
Em frente à Butte, Elisabeth encontrou de
novo seu carro e Gartel o seu cavalo que ele havia preso a uma árvore. Os moços caminharam em silêncio por
alguns instantes.
Em tom amigável de camaradagem o cavaleiro prosseguiu
na conversa.
– Eu compreendo que a
Sra. tenha para esta gente alguma simpatia. Eles têm sido tratados duramente. Apesar de meu ofício de soldado, eu
sou pela tolerância. Na vida privada eu
jamais usaria de rigor para quem quer que fosse que não partilhasse das
minhas crenças. Em matéria de religião deve-se deixar cada qual livre de praticar como entende.
– São estas suas
convicções, disse a moça admirada,
e há dez anos que o Sr. toma parte nas dragonadas! O Sr. não recua de lançar seus homens sobre
os huguenotes,
de constrangê-los a abjurar, de espada em punho, torturando até à morte os que lhe resistem!...
– Não exagere. É-nos proibido
matar. Quanto à torturas, outros as têm feito; eu me tenho sempre oposto a elas.
Porém a repressão da heresia é a ordem formal da corte. O meu dever é a obediência
aos meus chefes, – minha consciência, a vontade do rei!
– Se assim é, lastimo a sua sorte! Não pode deixar de responder Elisabeth. Pressentindo que sobre este como sobre vários outros pontos o acordo era
impossível, daí em diante apenas trocaram algumas frases banais.
Durante as duas semanas que durou a estada
do cavaleiro de Gartel no solar, Elisabeth observou que ele fazia uma corte
assídua a sua tia cumulando-a de atenções. Por isso não ficou surpreendido
quando uma noite a velha senhora lhe disse em tom de confidência:
– Minha filha, tua atitude
para com o cavaleiro magoa-me muito. Não quero dizer que ele seja sem deleito, mas
ele tem coração, tem sentimentos delicados, é bondoso!
Ontem ele falou-me de sua mãe em termos
muito afetuosos. Parece-me deveras que ele é o homem em cujas mãos eu posso
confiar sem receio o teu futuro.
A Senhora des Ponts-Marceaux, leal e
generosa, não suspeitava o mal nos outros. Este demasiado otimismo já lhe
causara mais de um desengano. Porém essas
experiências não a tinham corrigido.
Para evitar de contrariá-la, Elisabeth desistiu
de discutir o caráter do seu hóspede. Contentou-se em apresentar um único
argumento que lhe parecia decisivo.
– Eu não o amo; ele
me é absolutamente antipático. Ah! minha querida tia, deixe-me ficar com a
Senhora.
– Mas não me terás
para sempre. Minha saúde está abalada, de um dia para outro posso faltar-te. E ser-me-ia
tamanho descanso saber-te protegida.
Elisabeth abaixou-se silenciosa para
beijá-la. Quão pesado lhe era, por vezes, seu querido, seu doloroso segredo! Que
fardos tão pesados se tornavam essas recordações que ela a ninguém podia
confiar! Felizmente uma diversão produziu-se que a veio aliviar. Laura entrava com
o seu bordado na mão. Elisabeth ofereceu-se para fazer uma leitura em voz alta.
– Se tomasses a tua
guitarra! Propôs Senhora des Ponts-Marceaux. A moça obedeceu solicita. Na música
lhe seria permitido exprimir seu amor e sua dor, ela poderia derramar ali os
sentimentos cuja intensidade tanto a oprimia. Seus dedos ágeis correram sobre
as cordas e com uma expressão
que suas ouvintes jamais lhe conheceram, ela lhes contou, com
voz fresca, todo o seu
repertório de hinos, de romances e de antigas baladas. Ao beijá-la à hora de
recolher-se, a Sra. des Ponts-Marceaux envolveu sua sobrinha num olhar longo,
inquieto, penetrante e interrogador. E este olhar dizia, –
Elisabeth não se podia enganar. Minha filha querida, escondes qualquer coisa de
mim!...
Jornal O Estandarte. Ano XXXVI, Nº 07, São Paulo,
16 de Fevereiro de 1928, p. 9-11.
CAPÍTULO
VII
A PARTIDA
“Venha! Meu pai tem comunicações importantes a lhe fazer. Trata-se do
preso”.
Tal era, em suma; o recado que Elisabeth
recebeu de sua amiguinha alguns dias mais tarde.
Atendendo ao convite, ela entrou apreensiva
na salinha onde o carcereiro, terminado
o serviço, a pode receber por uns instantes.
–
Conforme lhe disse Gisela, trata-se do Sr. Noguier. O padre Crespy, não duvidando
de poder convertê-lo, havia obtido do tribunal de justiça que o seu julgamento
fosse adiado. Porém ele constata o insucesso de seus esforços. Vi há dias este
padre, que geralmente se domina, sair da prisão em grande cólera, exclamando:
“É um endurecido! Um herege obstinado! Tem resposta para tudo! Fiz o que pude
para salvá-lo da forca; agora lavo as mãos!...
O
carcereiro que
estava bem informado pode contar a Elisabeth o que tinha acontecido.
– Os membros do tribunal de justiça eram quase
todos pelo nosso preso. O Sr. de Lassaulx pronunciou a favor dele uma admirável
defesa. Foi o padre Crespy que, furioso da sua derrota, os fez virar. Ele lhes
fez ver que a insurreição começa a troar nas Cavenas e que um homem como este,
se fosse solto, tornar-se-ia prontamente um dos chefes dos rebeldes. Insinuou ao
júri que essa libertação seria uma grave imprudência, seria um crime contra o
rei e contra o país todo. E conseguiu, terminou o Sr. Barnes, esse jesuíta! Que
o diabo o carregue! Vingou-se! Cláudio
Noguier viu sua pena comutada a “galés perpétuas”. A galé é pior que a
morte!
Acabo de entregar-lhe, continuou ele após
uma curta pausa, o resto do seu
dinheiro, porém duvido que isso lhe seja de alguma utilidade. Na
primeira parada nossos homens serão revistados e despojados pelos flecheiros.
Esta canalha vai seguramente além dos seus direitos, mas a quem os pobres galés
se poderão queixar?
E aproximando-se da janela.
–
Os flecheiros aí estão há uma hora e eis que vêm vindo os presos. São seis. Eles
vão unir-se a grande fila de galés que de Paris se encaminha para Marselha. Se a
Senhora quer vê-lo, não há tempo a perder.
Elisabeth
levantou-se cambaleante, atordoada pelo choque
que acabava de receber, e seguiu o carcereiro. A galé! Esta palavra
sinistra, ela não lhe alcançava ainda
o sentido, porém soava-lhe como um
dobre a finados. Chegando no pátio, viu seis homens acorrentados de dois em dois, tendo as mãos amarradas nas
costas. Já Gisela, Yvete e Jorge se achavam juntos de seu amigo e chorando
se despediam dele.
Por sua vez ela aproximou-se. Pela
primeira vez ela via à luz do dia este rosto que, apenas por um instante, ela
avistara através da luz vermelha da lanterna. Impressionou-a a expressão enérgica
e tranquila do mesmo.
–
O carcereiro, disse ela, contou-me a sentença.
Sinto, oh! sinto tanto nada ter podido fazer pelo
Senhor!
–
Nada?... Mas a Senhora salvou-me da morte! Animou-me quando eu desfalecia. Sem a Senhora, eu deixaria a
prisão deprimido, sem coragem; agora eu espero e creio no futuro!
–
O Senhor tem razão, disse ela, procurando sorrir, devemos sempre esperar!... Depois, compreendo todo o horror desta condenação infamante e sentindo
a necessidade de animá-lo! Quem sabe? Murmurou ela, haverá talvez... tempos
melhores mais tarde!
O preso lançou-lhe rápido olhar interrogador.
–
Havia deixado, na minha Bíblia, alguns
papéis... A senhora os leu?
–
Sim, disse Ela, enquanto um vivo rubor
lhe abrasava as faces e a fronte. E fiquei conhecendo todo o sofrimento
de meus irmãos na fé. Até então eu ignorava tudo. Depois, levantando os olhos para ele: “Não se arreceie! Lembrar-me-ei até o fim,
aconteça o que acontecer, de que sou filha de
huguenote!”
–
Obrigado, disse ele. Levo contigo esta boa palavra. O livro que a Senhora trouxe de novo, deixei-o no
subterrâneo. Gisela lho entregará. Leia-o, e que ele seja para si o que foi para mim: um guia, um conforto. Obrigado pelas flores. Elas trouxeram-me o perfume de nossas montanhas. Ontem uma andorinha veio
esvoaçar na minha janela. A Senhora, as flores, a andorinha, quanta
coisa suave e boa... Eu também,
apesar de tudo, tenho a minha primavera!
Yvete e Jorge, buscando atrair a atenção
do preso, protestaram que haviam ajudado a colher as flores. Ele olhou-os
sorrindo, e disse-lhes algumas palavras
afetuosas.
Os olhos de Elisabeth caíram
sobre o companheiro de corrente de Cláudio, um homem de feição repulsiva, de
expressão bestial. O contraste impressionou-a fortemente. Sob as suas vestes
gastas que brevemente ele trocaria pela libré do galé, mostrava ser o preso
huguenote de outra raça. Seu rosto, o porte da cabeça tinha algo de incontestável
nobreza e impunha respeito. Lembrando
que a condenação o nivelava aos
assassinos, o coração da moça encheu-se de revolta e de dor.
Ouviu-se um rumor sob o pórtico. Era o major, dando
as últimas ordens ao capitão que devia conduzir o comboio.
–Nem posso dar-lhe a mão! Disse Cláudio
com voz alterada. Adeus e obrigado. Obrigado por tudo que fez, pelo interesse e
pela simpatia que me mostrou. Que Deus
a guarde e a proteja!
Gisela e Yvete aproximaram- se do preso
para beijá-lo. Ambas choravam. Elisabeth tornou nos braços o pequeno Jorge para
que também este pudesse abraçar o preso. Enquanto o pequeno o estreitava, seus três rostos se aproximaram.
Até então ela havia corajosamente contido as lágrimas, mas por fim esta agonia a subjugou. Por um instante
sua cabeça apoiou-se sobre o ombro do preso. Ele abaixou-se e seus
lábios lhe roçaram a fronte.
– Lembrar-se-á de mim alguma vez? Disse ele baixinho.
– Sempre!... Qualquer que seja o futuro, nunca oh! nunca o esquecerei! Cláudio, meu irmão!...
Coragem! Disse ele brandamente. Ainda nos
veremos, nos encontraremos de novo...
Parto com uma esperança no coração. Sua afeição (estas palavras
ele as disse
tão baixo que só ela as pode ouvir), sua afeição tem para mim um valor infinito... É a minha força!
Um sussurro correu pela fila dos galés. É a
irmã dele, dizia um. Não, é sua noiva! Dizia um outro.
O tenente
e o capitão aproximavam-se. Bruscamente os
flecheiros formaram a coluna enquadrando os presos.
Os visitadores foram repelidos.
–
Subamos à torre! Disse Gisela em voz alta a sua companheira. De lá nós os
veremos afastar-se!
Por longo tempo sobre a plataforma, quais
asas de pássaros a palpitar no azul do céu, lencinhos brancos se agitavam.
Na estrada poeirenta o sinistro cortejo de flecheiros e de galés se afastava, apagando-se a pouco e pouco. Cláudio, voltando-se por várias vezes, respondia aos sinais
de seus amigos. Mas logo estes o perderam de vista.
Sob o manto azulado da névoa tudo velou-se
e desapareceu ao longe.
Descendo
da torre eles encontraram o carcereiro. Dominando a sua dor, Elisabeth lhe fez esta pergunta:
–
Quando um galé tem amigos altamente colocados e estes intercedem por ele, o rei
alguma vez não o agracia?
–
Isso depende! Disse o Sr. Barnes. O rei mais de uma vez tem agraciado criminosos, até assassinos. Huguenotes, a menos que eles abjurem, nunca!
Reparando
no rosto dorido da moça, ele apressou-se
em acrescentar:
–
Porém sabe a Senhora que neste mundo nada é impossível. Porque uma coisa nunca se deu, não é motivo para que nunca se dê.
Elisabeth compreendeu. Esta última frase
dita sem convicção, num tom de bondade, não tinha outro fim senão abrandar a
sua tristeza. E era também por esse motivo que Cláudio tomara esse ar de
alegria e de valor de que no íntimo ele certamente estava bem longe. Porque ele
media com certeza a sorte que o esperava. Galés perpétuas! Estas palavras
fizeram-lhe o efeito de uma porta de ferro inexorável que caísse rangendo sobre os seus gonzos.
–
Ele nunca voltará! Nunca mais o verei! Gemeu a moça. E o
esplendor da primavera que a rodeava cobriu-se súbito de um véu sombrio.
As árvores em flor perderam a sua beleza. Sumiu-se-lhe a coragem e a alegria da
vida. Tudo quanto sofrera até então nada era comparado a esta última
provação, a este inexprimível dilacerar do coração.
O Estandarte. Ano XXXVI, Nº 08, São Paulo,
23 de Fevereiro de 1928, p. 11-12.
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