CAPÍTULO XVII
A IGREJA SOB A CRUZ
No
solar, Elisabeth voltou a sua vida de solidão,
ocupada, entretanto pelo estudo e pelo trabalho. Uma notícia aí a esperava: a
do próximo casamento de seu
tio. A Sra. des Coudrets via realizarem-se seus planos elaborados com tanto cuidado. Ela ia tornar-se a rainha e
senhora incontestada
da bela vivenda, e ao mesmo tempo do Coração um tanto coriáceo do Sr. des Ponts-Marceauxl.
À noite
Elisabeth via frequentemente enormes clarões rubros do lado das altas Cevenas.
Ela, sábia por seu tio da medonha devastação
ordenada pelo intendente, Sr. de Baville.
Sob o pretexto de que os Camisards ali
vinham se abastecer, haviam decretado a completa destruição de todas as vilas e
aldeias. Nem mesmo os novos convertidos eram poupados. “Eles não valem mais que os
outros, dizia Baville. Todos eles se unem contra nós esses canalhas! Os camponeses com os seus móveis e o seu gado se viram
metidos nas cidades. Montrevel distribuiu, em Vébron, a cada um de seus generais a parte
que lhe incumbia na destruição. Porém, como a obra não se efetuasse depressa bastante;
decidiram tudo incendiar.
Principiada
em setembro, a obra nefanda terminou pelo Natal.
Uma tarde Elisabeth ouviu cantar o
javanel. O canto lúgubre da ave noturna repetido por três vezes despertou a sua
atenção, lembrada do ajuste leito algumas semanas antes com Joana Paisac ela desceu às pressas e dirigiu-se para o muro do jardim atrás da torrinha. Ouvia-se de novo mesmo grito.
Por cima da sebe surgiu uma cabeça
arrepiada de menino. Daniel Paysac apresentou-lhe
unia carta. Ela indagou da família.
–
Estão queimando e demolindo as casas; da aldeia, disse
Daniel. Creio que breve chegará a nossa vez.
–
E aí que farão? Para onde irão?Perguntou ela desassossegada.
– Iremos
ter com os Camisards. Mas eu voltarei de tempos em tempos buscar ou trazer-lhe
cartas. Ela agradeceu com efusão.
A carta foi aberta sob o abajur da sua
pequena lâmpada a óleo. Por
uns instantes antes de abri-la, a estreitara ao peito.
“Minha querida irmãzinha,
“Como poderei exprimir por palavras a
alegria: que me causou a sua visita, a sua atenção tão delicada?... Não me é
possível! Somente lhe direi que a carteira eu a trago constantemente comigo. Para prevenir qualquer indiscrição eu
mesmo fiz um bolso no interior da minha casaca e a querida lembrança ali está
em segurança. Frequentemente a contemplo, sempre que posso fazê-lo. Sem correr nenhum risco. O veludo azul escuro me lembra o azul de seus
olhos e o ouro dos seus cabelos eu o possuo realmente no bordado das letras; na
cercadura cintilante delas. É rima parte de si, é ela mesma, a minha maninha bem amada! Assim quando cruzo os braços,
e sinto sobre o meu peito a preciosa carteira, não existe mais distância entre
nós dois...
“Vencerás”.
Esta palavra eu a recebi assim como você a mandou: diretamente enviada por Deus. Sentindo
a minha fraqueza, quantas vezes tremi! Poderei vencer? Saberei ficar firme até o fim? Agora que o Mestre, Ele mesmo, me dá essa confiança pela Sua mão querida, eu mais não
tremo. Não com a minha força, mas com a dele vencendo todos os obstáculos, eu
alcançarei o alvo, vencerei! Ou antes, pois que esta palavra lhe diz também respeito: Venceremos!
“O pequeno Evangelho copiado pela
sua mão, me é também um tesouro sem preço. De manhã
e de noite, toda vez que nenhum olhar de mal querença
me espreita, leio algumas passagens. E sempre bebo ali forças novas, sinto um divino reconforto.
“Porém, para que mandar-me ouro? Eu ganho alguma coisa com o meu trabalho.
Não se prive por minha causa. Estas moedas, eu não tocarei nelas agora, guardo-as
para o
dia da libertação. Quando a guerra tiver rompido as nossas cadeias, quando o reino nos abrir suas portas
e com todos os nossos amigos alcançarmos a Suíça
hospitaleira, então, por certo, este dinheiro ser-nos-á muito útil.
“O que é que pensou do breve
e cerimonioso bilhete que lhe mandei à casa do Sr. Visconde d’Ormancy? Você, o· compreendeu, não ? Entretanto devia causar-lhe certa perplexidade.
Devo-lhe uma explicação e lha vou dar.
Então Cláudio narrava com todos os pormenores
a cena da barraca. Fez um apanhado
vivo, tão engraçado e humorístico que
Elisabeth teve de se conter para não soltar uma gargalhada.
Ah! Como ela sentia não ter ninguém para
partilhar da sua alegria, como ela tantas vezes
lastimara não ter nenhuma amiga a quem confiar as suas penas! Lembrou-se então da Sra.
Paysac, tão maternal, de Joana a quem ela amava
como uma irmã. Mas as
estradas estavam constantemente infestadas não só de tropas reais; mas de Miqueletes (*) e de Cadetes da cruz e assim ela não podia aventurar-se até a chácara da Butte.
“Repila do modo o mais formal qualquer proposta do Sr. Cavaleiro de
Gartel, dizia Cláudio ao terminar, não lhe fique obrigada em coisa, nenhuma! Que
me valeria a mim a liberdade se eu a obtivesse ao preço da sua. Sabê-la no poder desse homem!... Ah! Mil vezes morrer nos meus ferros!
Elisabeth respondeu esta carta daí a poucos dias. Contava com expansão os
incidentes da sua vida de cada dia; comentava também a visita à galera.
“Você nada ou quase nada me disse dos seus
sofrimentos, das fadigas excessivas e dos abomináveis tratos que lhes dão.
Agora eu vi com os meus olhos, fiquei sabendo! Aquelas horas passadas na galera me desvendaram a
crueldade atroz de nossos perseguidores. Porém eles revelaram-se também a coragem sobrenatural, a admirável firmeza de nossos confessores! Cláudio, eu me
orgulho de você! Entretanto, quando à partida a orquestra tocou a balada do trovador, senti que meu coração se despedaçava
no peito. Sua carta me veio trazer um poderoso lenitivo na minha aflição. Não é
isto uma
coisa estranha? Eu, livre, rodeada de luxo e de conforto é que deveria animá-lo,
porém é o contrário que se dá, é você quê do seu inferno, me traz a palavra de esperança e de consolo. Sim, nossas tropas vencerão! Apesar de Montrevel
e do terrível Baville, apesar dos generais, bispos
e governadores que há poucos dias aqui mesmo se reuniam para abater a
insurreição e nos exterminar a todos. Deus há de combater por nós e fará que a nossa causa triunfe! O Natal está perto. Nós p celebraremos
juntos nesse dia de festa, com todos os nossos bem amados, aqui na terra e no
mundo invisível como o fizemos o ano passado. Para corações que se amam, – você o disse!
– não existe distância”.
_________________________
(*) Bandidos que viviam nos Pyreneus. Muitas vezes faziam o ofício de guardas
dos governadores de províncias (Nota da tradutora).
Esta carta que ela queria subtrair
à indiscrição a mensageira, ela conseguiu fazê-la chegar aos Paysac pela cozinheira da casa, uma bretã que lhe era dedicada.
Mas por longo tempo a missiva esteve parada na Butte antes de poder seguir para
Marselha, dando ensejo a exercitar-se a proverbial “paciência de huguenotes”!
O Sr des PontS-Marceaux entrou um dia em casa trazendo um pergaminho que ele depôs sobre a mesa com certa solenidade.
–
Trago-lhes, e disse ele, uma cópia da bula
pontifícia de 1º de Maio de 1703. Não é, pois só o rei, é o eminentíssimo pai, é sua
Santidade Clemente XI mesmo que decreta a supressão da heresia.
A Sra. des Coudrets a percorreu aprovando com a cabeça.
Por sua, vez Elisabeth lançou os olhos sobre ela. Com assombro ela leu as seguintes linhas.
... Para
induzir os fiéis a exterminar a raça maldita desses heréticos e desses maus,
inimigos, em todos os séculos, de Deus e de César,
em virtude do poder de ligar e de desligar concedido pelo Salvador dos homens ao
príncipe dos apóstolos e a seus sucessores, concedemos com toda a nossa autoridade,
remissão absoluta e geral de todos os seus pecados a quantos se alistarem na sancta milícia destinada à extirpação
desses heréticos. Remissão plena a todos os que tiverem a infelicidade de serem mortos no combate.
–
Mas, exclamou a moça consternada, não é somente
a heresia que se trata de destruir, são os próprios homens, são os nossos pobres montanheses!...
–
Eles lá merecem outra coisa? Perguntou secamente a Sra. des Couderts.
–
Eles merecem ser tratados como homens e não como feras que se exterminam! Disse
ela com indignação. Se os seus direitos lhes
fossem concedidos, todos eles logo deporiam as armas.
O comandante tomou a palavra:
–
Minha sobrinha, você está falando de coisas
que não entende!
Os huguenotes formam um Estado dentro do
Estado, um perpétuo perigo para a realeza. Eles formam também uma Igreja dentro
da Igreja, o que é um afrontoso desafio á unidade católica. Por conseguinte, do
ponto de vista político, bem como do ponto de vista religioso; urge que eles desapareçam!
Elisabeth calou-se. Quando ela se achou
só, pôs-se a meditar. Nessa manhã lera a história da ovelha perdida que o Pastor, cheio de temor,
vai procurar no deserto, toma-a nos braços e, cheio de júbilo a põe sobre os ombros.
O bom Pastor, o Cristo, ela o contemplara na sua divina
grandeza e na sua ternura. E agora uma outra imagem se
levantava, tomava-lhe o lugar. Um outro pastor, ajuntando
os seus bandos, lhes gritava: Persegui no deserto, a ferro e fogo, as minhas ovelhas
perdidas. ‘Matai! Espalderai!
Exterminai! A todos os matadores, eu, o vigário de
Cristo, garanto no outro mundo a impunidade de todos os seus crimes!
Ela estremeceu. Veio-lhe de repente a
intuição de um poder tão formidável quanto misterioso que na sombra se movia cegando os espíritos,
falseando as consciências, escravizando
as almas. O autor da bula não seria, ele mesmo, por ventura, a primeira vítima?...
E deste poder diabólico, ela mesma não estava livre: sentia a sua ação no seu próprio coração
cheio de inquietação, de rancor e de vagos terrores.
Juntando as mãos na sua angústia ela só pôde exclamar: Oh Deus! Deus Todo
Poderoso, vem em nosso auxílio!
Tem piedade de mim, tem piedade de nós!... Já por vezes, nas horas de grande aflição ela havia encontrado calma e conforto na oração. Porém desta vez
não foi ela quem falou, foi a voz do alto sob uma forma imprevista.
Versos bíblicos, aos quais ela não havia prestado muita atenção, soaram do seu
coração com uma força desconhecida até então: “Deus é amor. Eu vos dou um novo mandamento: Amai-vos uns aos outros como
eu vos amei. Vós sois todos irmãos. Amai e não odiai. O que aborrece a seu irmão é homicida. Amai os ossos inimigos, orai pelos que vos perseguem. O diabo é homicida desde o princípio. Tende bom ânimo! O Deus de paz esmagará
em breve Satanás sob os vossos pés.”
À medida que estes versos lhe vinham
à mente uma maravilhosa luz os iluminava. Ela
compreendeu que todos os homens, mesmo os perseguidores, eram seus irmãos, e que
era preciso amá-los. Compreendeu então que
não existia senão um ser neste mundo a quem ela tinha o direito de odiar e que este
era o grande, o secular inimigo da Sua raça: a antiga serpente. Era
este que era
preciso odiar com um indomável
e santo ódio, que era preciso combater e vencer. Tinha
ela obedecido à lei do amor? Não! Ela odiava a seu tio que tinha matado a
Agostinho. Ela odiava a Sra. des Coudrets, cuja vigilância lhe era insuportável. Ela
odiava o padre Crespy, que havia mandado Cláudio para a galera.
Ela odiava todos aqueles
Lazaristas, aqueles comitres e sub-comitres que tornavam tão pesado o fardo dos galés! Nesse instante o peso da sua indignação a esmagou: “Perdoa-me, meu Deus! exclamou ela, eu não quero mais odiar,
eu quero amar”!
Então ela se pôs a orar. Tomando à risca a ordem do Cristo, ela O invocou a favor dos perseguidores.
Depois, pensando na esmagadora responsabilidade daquele que, ligando e
desligando, com uma palavra lançava no bom ou no mau caminho milhões de almas humanas, ela orou
por Clemente XI. Pediu ao Todo Poderoso que o esclarecesse, que o revestisse de espírito de sabedoria e de amor que tomasse na sua mão a fraca mão
que governava a pesada nau da Igreja romana...
Ao terminar a sua súplica, o poder maléfico havia desaparecido, assim como fogem as trevas aos raios do sol nascente. Uma
sensação de livramento, uma paz profunda apoderou-se de seu coração.
Jornal O Estandarte. Ano XXXVI, Nº 18, São Paulo,
03 de Maio de 1928, p. 12-13.
CAPÍTULO
XVIII
DECISÃO
Chegava o inverno,
as noites tornavam-se
longas e frias. Sentindo as picadas do mistral, Elisabeth pensava com angústia
nos galés sem fogo, sem cama, agachados sobre as suas tábuas. Ela desejava
enviar pelo Natal àquele a quem amava um agasalho, um tricô grosso e macio que sob
as suas vestes o protegesse do frio. Porém não sabia fazer tricô. No convento ela
aprendera a pintura, o bordado, a
renda de fuso, porque naquela época se
entendia que uma moça da sua posição não devia trabalhar. Só lhe era permitida alguma prenda de salão. Mas a cozinheira bretã, essa sim
era habilidosa em costura e fazia tricô com muita destreza. Elisabeth resolveu
aprender e se pôs a tomar lições com a sua criada. A boa vontade, o ardor e o
zelo por dia manifestados provocavam a admiração da bretã. O agasalho ficou
pronto nas vésperas do Natal. Ela fez o embrulho e o despachou ao endereço
indicado na última carta de Cláudio : “Sra. Soubeyran, rua dos Chapeleiros”. Acompanhava-o
uma curta carta assinada: “Sua irmã”. Era preciso desviar quanto possível os
espiões que, em grande número, os havia na administração postal.
A resposta não se fez esperar.
Foi ainda o javanel que uma noite a trouxe.
Elisabeth fazia renda no salão em frente
à Sra. des Coudrets quando
a ave noturna cantou.
Eram nove horas menos
um quarto. Dando por pretexto que na véspera ela se havia acomodado tarde, enrolou o seu agasalho e saiu. Subiu, fez bater a porta de
seu quarto, e depois desceu na ponta dos pés. Sem barulho ela caminhou até o muro, sem perceber que uma
sombra lhe
seguia os passos, escondendo-se, quando ela se voltava, atrás dos maciços de ulmeiros...
Subiu rapidamente a escada, tendo a carta
na mão; abriu o trabalho e a gaveta onde, em caso de alerta, a missiva devia
desaparecer. Então abriu-a depressa.
“Minha irmãzinha! Pelos cuidados da Sra.
Soubeyran e do nosso bom turco lsakoff acabo de receber o seu volumoso pacote.
Ah! é verdade que não tem feito calor na galera! O mistral sopra terrivelmente.
Mas que gozo para mim vestir este quente e macio agasalho, e constatar que foram as suas mãos, elas mesmas
que o fizeram, e que o doce calor que dele me penetra, é o calor mesmo da sua
afeição...”
Ela havia lido até este ponto quando, sem que alguém batesse, a porta se
abriu de mansinho. De repente, qual um abutre que se lança sobre a sua presa, uma
mão de mulher caiu sobre a carta e a tomou. Elisabeth se pôs em pé aterrada com um
grito de susto e de indignação. A Sra.
des Coudrets, rígida e aprumada como a encarnação da justiça, achava-se na sua
frente.
–
Nós o suspeitávamos de há muito, articulou a voz seca que nada mais tinha das
doces inflexões de outrora. Sim, nós o
tínhamos adivinhado. Você nos engana! Você entretém correspondências
ilícitas e é essa a razão que a
faz desprezar um gentil homem de alta posição que, conquistada somente pelo
prestígio da casa dos Ponts-Marceaux, se digna de abaixar-se a cortejá-la!
–
Esta carta é minha! Exclamou Elisabeth, voltando do seu primeiro susto, e eu lhe nego o direito de apoderar-se dela!
A Sra. des Coudrets soltou uma risada de condescendência.
–
Nega-me o direito, está bem! Pois não a lerei sem primeiro a fazer passar sob as vistas do
Sr. Comandante des Ponts-Marceaux!
Elisabeth, tremendo de raiva, viu-a sair
levando consigo a carta. A noite passou-se em cruéis apreensões. Tanto como Agostinho outrora, ela temia
o seu tio. Por quanta palavra colérica, quanta
censura ofensiva não ia ela passar! Ela sentiu-se aterrorizada, mas não surpreendida
quando na manhã seguinte a vieram convidar a ir ao escritório dele.
Entrou ali mais morta que viva. O Sr. des
Ponts-
Marceaux
escrevia sentado á escrivaninha, nem mesmo se voltou a sua entrada, deixando-a em pé por uns dez
minutos antes de se dignar aperceber-se da sua presença. A carta fatal lá estava
diante dele, bem aberta e à vista.
Finalmente ele abriu a boca.
–
Senhora minha sobrinha (ele falava com voz calma, sem o mais leve acento de
censura nem de cólera), quero lhe falar hoje de coisas muito sérias, pois se
trata de seu futuro. Há poucos dias tive a oportunidade de encontrar-me em casa do Sr.
Marechal de Montrevel com o Sr. cavaleiro de Gartel que vinha receber ordens.
Aproveitando um instante em que nos achávamos a sós, conversamos sobre nossos
negócios pessoais. Eu ofereci-lhe – ou antes para me
exprimir com mais exatidão, – eu concedi-lhe oficialmente a
sua mão que ele nos fazia a honra de solicitar há algum tempo. Como ele tivesse
de unir-se ao seu regimento sem tardança, não pude trazê-lo para aqui, porém no
fim do mês nós o teremos cá em licença e então celebraremos em família a festa
do seu noivado. Minha filha e o seu marido, o Sr. Visconde de Ormancy, já foram
por mim avisados.
Ele tomou a carta de Marselha, enrolou-a
por uns instantes entre os dedos e então, como se fosse um farrapo de papel sem
importância, descuidadamente a jogou ao fogo.
–
A Sra. des Ponts-Marceaux, proseguiu ele, consente em ocupar-se do apresto do seu enxoval. Marcamos o
seu casamento para princípio de junho. De agora até então, como esta casa não é
uma moradia muito alegre para uma pessoa da sua idade, minha sobrinha irá para
o convento das Ursulinas, onde se criou.
Ali encontrará suas companheiras e as boas
irmãs que durante anos a educaram. Apronte-se, pois, para partir daqui a duas semanas. Entendeu bem?
–
Sim, meu tio!
Ela saiu e achou-se
sozinha de pé em frente à janela do seu quarto. Ao
observador que nesse momento
olhasse para Elisabeth d’Arville, surpreenderia o seu gesto decidido e o brilho
desusado dos olhos. Ela abriu a Bíblia, pôs-se de joelhos e por uns instantes
folheou o santo volume. Uma passagem atraiu os seus olhares e de repente impôs-se
a sua atenção: “Disse Jeová a Abrão: Sai-te da tua terra, da tua parentela e da
casa de teu pai para a terra que te mostrarei!”
Ela pôs-se de pé resoluta e alegre. Era-lhe
dada ordem de marcha. Abrindo o seu guarda-roupa, examinou o que ali havia, desatou as pilhas, arranjou, pôs em ordem.
Então tomou uma ampla mala de mão. Ali poderia levar uma porção suficiente de
roupa branca e de vestidos. No fundo colocou a Bíblia de Cláudio, as cartas
dele; ao lado um cofrezinho contendo jóias de valor que lhe foram legadas por
sua mãe. Ao lembrar-se da carta que ela não tinha lido, daquelas páginas cativantes, transbordantes de ternura
de que tinha sido privada, veio-lhe um movimento de ódio e de revolta. Porém, imediatamente se
lembrou de que a ordem do Mestre era de amar e não de odiar.
Uma imagem veio-lhe ao espírito: Paulo
sacudindo ao fogo a víbora que se lhe apegara à mão. Por um ato de vontade ela
sacudiu a pequena víbora de seu rancor no braseiro do amor eterno.
Pela tarde a Sra. des Coudrets retirou-se
para a sua sesta. Elisabeth viu o comandante encilhar o seu cavalo e dirigir-se
para a cidade. Então desceu, e atrelou o seu pônei, tendo o cuidado de retirar
o guizo. Como não houvesse tropa alguma atravancando a estrada, tomou das
rédeas, pôs o dócil animalzinho no trote e dirigiu-se rapidamente para a aldeia. Marginando o prado, o magnífico passeio d’Alais,
com seus castanheiros
seculares, seus trilhos agrestes, sua vasta campina onde o camponês faz até
quatro cortes por ano, teve ela uma dolorosa surpresa. O prado devia ter sido o
teatro de um combate sangrento; a erva estava pisada, armas quebradas, roupas rasgadas, destroços de toda espécie juncavam o
solo. Porém o pior foi quando ela atingiu a aldeia. O espetáculo que ali se patenteou aos seus olhos
aterrorizou-a. Todas as casas haviam sido reduzidas a cinzas. A chácara da Butte
não existia mais. Protegida por uma espessa mata de corte, uma única choupana tinha escapado do incêndio. Elisabeth conhecia os
seus moradores. Eram católicos novos. O homem, Blaise Méric, serrava umas tábuas em frente a sua casa. Ela informou-se dos Paysac.
–
Refugiaram-se nas altas Cevenas, lhe respondeu ele, do lado do Espéron, onde eles têm parentes. Os dois
filhos, Marcos e Daniel, uniram-se aos Camisards.
–
Daniel! Mas ele é tão novo! exclamou ela, apenas quinze anos!
–
Oh! A senhora conhece Corneille: “O valor não espera pelo número de anos”...
Eu lá estava exatamente quando eles partiram, e ouvi a discussão. A mãe queria segurá-lo, mas o
rapazola empinou. Ele gritava bem alto para que o ouvissem da cidadela: O
irmãozinho de Cavalier só tem dez anos e cavalga ao lado dos chefes! Ele salvou
os Camisards no bosque de Cannes. Eu marcho com eles! Então pegou no velho
mosquete de seu defunto pai e safou-se para a montanha... Marcos mais ajuizado ajudou na mudança.
Elisabeth indagou: – O senhor conhece os
trilhos das altas Cevennas? Poderia talvez servir de guia a alguém que tivesse
a intenção de unir-se aos Paysac?
Ele declarou conhecer minuciosamente todas
as barrocas, todos os trilhos e atalhos da montanha. Então com duas palavras a
moça expôs-lhe a situação. Ficou ajustado que naquele mesmo dia à meia-noite, Méric se
acharia na grade do palacete. Assim que ele fizesse ouvir o grito do javanel,
ela iria ter com ele.
Elisabeth conhecia perfeitamente a extrema
temeridade da sua empresa e os perigos que a esperavam.
O
Sr. des Ponts-Marceaux tinha feito guarnecer de grades de ferro todas as janelas
da sua vivenda. Em caso de ataque noturno, ele tinha várias pistolas carregadas;
também despachara o seu velho cocheiro e o substituíra por três robustos
provençais que ele havia provido de armas e munições. Porém Elisabeth,
consciente da ordem de cima, punha em Deus a sua confiança. Aquele que ordena, dizia ela consigo, dá também ajuda e
proteção. Ela sabia também que seu pai, mártir da boa causa, a aprovaria de querer
juntar-se no Deserto aos seus irmãos na fé.
Sobre a mesa foi deixado um bilhete
para seu tio, no qual ela confessava o verdadeiro motivo da sua fuga dizendo
que não querendo trair o seu amor nem a sua fé, deixava para sempre o solar.
Pedia-lhe que não buscasse descobrir o seu esconderijo, dizendo que seria inútil
ir buscá-la ali. Depois de agradecer-lhe tudo o que ele fizera por ela, a moça,
compreendendo que apesar de tudo a sua partida clandestina o agitaria grandemente,
pedia-lhe perdão.
Aos primeiros clarões da madrugada
Elisabeth, escoltada por seu guia, subia o caminho estreito que vai abeirando
os abismos onde ferve o Gardon. De quando em quando ela voltava-se para o
precipício como para medir a profundidade. Crendo compreender o seu pensamento Blaise Méric se pôs a
tranquilizá-la.
O Estandarte. Ano XXXVI, Nº 19, São Paulo,
10 de Maio de 1928, p. 13-14.
Continuação
do Capítulo XVIII
–
No caso de encontrarmos milícias, basta a senhora dar o nome de seu tio. O nome
do comandante des Ponts-Marceaux lhe vale tanto como um salvo- conduto do próprio governador.
E se forem os Camisards, então não há que recear. Entre montanheses a gente se
entende por meias palavras, os nossos curas bem o sabem. Eles querem nos
encurralar nas cidades!... Quanto a mim, em me queimando a choça, pego na
mulher e na pirralhada, e escapo-me para os Camisards!
De caminho Méric lhe ia contando os
diversos incidentes da guerra.
–
A senhora soube da
aventura do cavaleiro d’Aignine, comandante d’Alais! Ele se foi para as altas Cevenas com
os seiscentos homens da guarnição, cinquenta gentis homens a cavalo e mulas
carregadas de cordas para prender os Camisards. Porém, sob a fuzilaria de
nossas tropas, cavaleiros e soldados viram as cosias e fogem em derrota. Valia a pena
ver aquela debandada; d’Aignine arrastado pelos fugitivos e todo aquele povo de
cambulhada a se espremer nas portas d’Alais! Quem não viu aquilo não viu nada!
Elisabeth, ao ouvir isto, compreendeu que
seu tio se havia calado sobre muitos fatos da guerra camisarde.
Ele se pôs ainda a narrar o encontro do
Moinho d’Alison.
–
Cavalier o ocupava, ele se deitara no juncal com os seus Camisards. Lajanquiére, à testa de seiscentos
homens, pôs-se a atacá-los à metralha, mas as bodas passavam-lhes
por cima da cabeça. Crendo-os mortos, o brigadeiro transpôs a barroca quando de
repente os Camisards levantam-se e lhes caem em cima e eis os dragões em plena derrota. Catinat, Ravanel, todos os
nossos chefes entoam um salmo com voz terrível e atacam o inimigo. Fizeram enorme presa. Se a senhora vir lá em cima Cavalier, montado em magnífico cavalo, fique sabendo que é o de
Sajonquiére. Ali, continuou Méric, ao chegarem a uma elevação,
é o lugar onde foi preso nosso jovem chefe André Noguier, o que tomou o lugar
de Salomão.
– André Noguier: algum irmão de Cláudio? Interrogou vivamente
a moça.
Não, seu parente próximo. Ele tinha
livrado um grupo de protestantes que levavam às prisões d’Anduze. Fuzilaram-o, no outono
passado, na Ponte de Montvert.
– O Senhor conhece Cláudio Noguier? Prosseguiu ela após uma pausa.
– O das galeras, conheço. Um bom sujeito inteligente, coração aberto. Ele
tinha um irmão mais moço, Jacques, que fugiu do convento, onde o tinham
encarcerado. Imagino que ele se uniu a algum bando de fugitivos para alcançar a
Suíça, a menos que não tenha sido capturado. A senhora sabe, milhares desapareceram
sem deixar rasto. Ouviu falar dos afogamentos no mar?
Elisabeth nada ouvira a respeito. Ele se
pôs a contar-lhe.
– Depois da revogação as galeras e as prisões regurgitavam de tal modo de
huguenotes que não sabiam mais que fazer com eles. Então tomaram uns navios velhos e os sobrecarregaram de homens,
de mulheres e de crianças,
dizendo que os iam levar à América. Chegados em pleno oceano, arrombaram esses navios e toda a carga viva se afundou no mar...
Atenção! Disse ele de repente.
Está ouvindo aquela trombeta marinha? São os Miquelets. Eles vêm vindo por este caminho, mas não tenha medo. Não nos
viram. Desviemos até que eles
passem.
Elisabeth
e seu guia esconderam-se num espesso bosque
de corte de carvalhos verdes, de ulmeiros e de pinheiros guarda-sol. Os guerreiros dos Pireneus de bonés pontudos e em trajos bizarros
desfilaram sem se aperceberem da presença deles.
O sol subia no horizonte.
Sob a
ramada dos grandes castanheiros, o solo estava
coberto de giestas em plena floração e de urzes cor de rosa. Pedumes capitosos enchiam o ar. A guerra, as devastações
formavam um estranho contraste com este radioso esplendor da paisagem. Após a áspera
subida do Mialet, à
tardinha atingiram. S. André de Valborgne.
De moradores nem sinal. Das choupanas
de outrora só restava um montão de ruínas. O mísero arraial do Espéron tivera a mesma sorte.
Méric
escutava. Ouvia-se um rumor surdo, um ruído ininterrupto
de fuzilaria.
– Estão se batendo por aí...
Oh! Os cadetes da cruz!
Exclamou ele de repente.
Na margem oposta do Gardon, um bando de
fuzileiros descia em desordem
empurrando-se, atropeladamente, e logo desaparecia no fundo da garganta.
–
Estes cadetes, explicou Méric, é a fina flor dos velhacos. Montrevel os tomou a soldo contra nós. (Méric esquecia incessantemente sua qualidade de
convertido novo!) Mas agora eles roubam, incendeiam, matam huguenotes e católicos indiferentemente. O marechal que quisera bem ver-se livre deles mandou
tropas contra eles para lhes dar
caça.
–
Mas que vêm eles fazer aqui? Disse Elisabeth. Que procuram neste deserto?
–
Talvez as cavernas de Roland... Mas desta vez eles foram logrados! Como sabe, nossos chefes fizeram abastecimentos enormes de viveres e
de munições nas grotas. Algumas
estão transformadas em ambulâncias. Eles têm também moinhos de vento onde moem o seu grão. E que disciplina! ... É uma organização
admirável essa do Arraial dos Filhos de Deus!
De tempos
em tempos cruzavam com montanheses e suas mulas. Méric pedia informações.
Finalmente com imensa satisfação de Elisabeth eles atingiram a caverna onde os
Paysac se tinham acomodado.
Grande foi
a surpresa deles ao verem a moça. Mas nem por isso a acolhida foi menos calorosa. Joana a beijou. A Sra. Paysac também lhe abriu os braços, ainda que
sua voz traísse uma certa inquietação.
–
Se a Senhora não teme partilhar nossa
vida rude, nosso pão temperado com privações, então seja bem vinda! Será nossa
filha !
Toda a família se achava reunida em torno
do caldeirão de castanhas. Abriram lugar para os recém-chegados. Depois da ceia Méric, compensado e
com os cordiais agradecimentos de sua companheira, tomou o caminho de volta.
Elisabeth
encontrou na roda dos seus amigos uma figura
desconhecida, uma mulher moça, pálida e triste que amamentava uma criancinha.
–
É minha sobrinha, Luiza Franceset, lhe disse a Sra. Paysac. O marido dela surpreendido
numa assembleia de culto está em Marselha na galera, “A Real”. Isso não é
triste? Ele foi preso quinze dias antes do nascimento da sua filhinha!
A comunhão
de infortúnio aproxima os corações. Elisabeth
sentiu-se logo atraída à pobre moça. Ela
tomou as cartas de Cláudio e delas leu fragmentos a seus amigos. Com que intenso interesse foram eles escutados por Luiza
para quem a provação parecia haver quebrado a mola vital; não tivera notícia
alguma de seu marido desde o dia da sua prisão. Ambos eram iletrados.
Começava para Elisabeth uma estranha
vida, vida de selvagens ou de ciganos. Porém ela nem se queixava.
Pelo contrário, encontrava encanto nela, gozando profundamente de sentir em torno de si corações simpáticos que vibravam em uníssono com o seu. Ia lenhar com Magdalena e
Maurício e três vezes por dia ardia um bom fogo em frente da gruta, o caldeirão
fumegava, as refeições eram alegres. À noite deitavam-se, sem largar as vestes, sobre
leitos de folhas secas, mas a moça de forma alguma sentia saudades do
conforto e do luxo requintado do solar.
O Estandarte. Ano XXXVI, nº 20, São Paulo,
17 de Maio de 1928, p. 13-14.
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