De um protesto solene em prol da liberdade
de consciência devia receber a Reforma o nome que caracteriza o seu papel na
história.
Corria o ano de 1529. Acabava de baixar ao
túmulo Frederico, o magnânimo, príncipe da Saxônia, protetor de Lutero.
Graves acontecimentos tinham, na Alemanha,
enfraquecido a Reforma e o prestígio de Lutero, tais como a desinteligência dos
príncipes, a revolta dos nobres e a dos camponeses, a dissensão entre os
próprios Reformadores.
De outro lado, novos sucessos vinham
fortalecer seus adversários. Chegara o imperador Carlos V ao auge de seu poder.
Triunfara, em Pavia de seu rival, Francisco I, rei de França, que “tudo
perdera, exceto a honra”; repelira o turco nas fronteiras orientais.
Entretanto, por um ato inesperado da
Providência, a borrasca, que devia alagar a Reforma, desabou sobre o Vaticano.
Indignado com a política traiçoeira do
papa Clemente VII, Carlos V anulou os decretos da dieta de Worms (1521), e
concedeu na dieta de Espira de 1526 amplas regalias aos partidários da Reforma.
Capitando assim o apoio deles invadiu a Itália com um exército composto de
alemães e espanhóis, em 1527. Tomou Roma de assalto; o papa refugiou-se no
Castelo de Santo Ângelo, e a cidade foi, por dez dias, entregue ao saque, que
nada poupou. Foi só depois de terem arrecadado um despojo de dez milhões de
escudos de ouro, e sacrificado de cinco a oito mil vidas, é que “a ordem e a
paz começaram a se restabelecer um pouco”.
Vencido, humilhado e prisioneiro, pagou o
papa o resgate de quatrocentos mil ducados, e, a 29 de Junho de 1528, assinou
com o Imperador o Tratado de Barcelona, que encerrava o compromisso básico de
destruir a Reforma. A esse fim foi convocada a segunda Dieta de Espira para 21
de Fevereiro de 1529. O momento era de angústia; pairava no ar séria ameaça.
Ia a Reforma acrisolar-se no cadinho de
terríveis privações. Contra ela mancomunavam-se, em pacto sangrento, os dois
despotismos que dominavam a Europa, sem contraste. “Funestos presságios
agitavam os espíritos. Em pleno Janeiro, uma grande luz iluminava
repentinamente noite profunda”, escreve D’Aubigné. Ordens terminantes do
Imperador ao rei Fernando, seu irmão que em seu nome devia presidir a Dieta, anunciavam
a abolição das regalias concedidas pela Dieta de Espira de 1526 e a restauração
do Edito de Worms de 1521. Eram cassados todos os decretos de tolerância, todas
as garantias aos reformadores; era proibida a pregação da Palavra de Deus, a
propaganda do Evangelho e retirada, sob severas penas temporais, toda liberdade
de consciência.
O rei Fernando, da Hungria, irmão de Carlos
V, publicou, como nos conta D’Aubigné, a seguinte tarifa de crimes e penas:
Crimes Penas
Deixar de ir à confissão Prisão, multa
Falar contra o purgatório
Banimento
Falar contra os santos
Prisão, banimento e
outras penas
Dizer que Maria era
mulher como as outras Castigo corporal,
confiscação ou morte
Tomar
a Santa Ceia à moda herética Idem;
e confiscação ou arrazamento da casa
onde tivesse sido celebrada a Ceia
Consagrar o sacramento
sem ser padre romano Morte
pela espada, pela água ou pelo fogo
Negar a humanidade ou
divindade de Cristo Morte pelo
fogo
Diante desta intolerância papista,
ameaças e franco despotismo, ao lado de promessas e solicitações, alguns
príncipe, como soe acontecer, amedrontados, bandearam-se, e uma maioria
subserviente revelou, na Dieta, a extrema arrogância e violência do partido
católico-romano.
Nesta atmosfera borrascosa, pejada de
raios, ergue-se, entretanto, intrépida a minoria, composta de príncipes e
representantes das cidades imperiais, e perante a Dieta lavra imortal protesto,
em nome da liberdade da consciência iluminada pela Palavra de Deus, contra a
revogação do decreto de tolerância da Dieta anterior e contra a anulação das
formais promessas da palavra imperial.
Eis o protesto em sua íntegra:
“Caros senhores, primos, tios, e amigos!
Tendo vindo a esta Dieta, por convocação de S. Majestade e para o bem comum da
cristandade, temos ciência de que as decisões da última Dieta, concernentes a
nossa fé cristã, deverão ser suprimidas e substituídas por outras resoluções
restritivas e embaraçosas.
Entretanto, o rei Fernando e outros
comissários imperiais, impondo os seus selos ao último decreto de Espira,
haviam prometido, em nome do Imperador, cumprir sincera e inviolavelmente tudo
quanto aí se continha e não permitir nada que lhe fosse contrário. E do mesmo
modo, vós e nós, eleitores, príncipes, prelados, senhores e deputados do
Império, nós nos comprometemos então a manter sempre, e com todas as nossas
froças, todos os artigos deste decreto.
Nós não podemos, pois, consentir em que ele
seja suprimido.
Não o podemos, primeiro, porque cremos
que S. Majestade Imperial, bem como vós e nós somos chamados a manter com
firmeza o que foi unânime e solenemente resolvido.
Não o podemos, em segundo lugar, porque se
trata aí da glória de Deus e da salvação das almas, e porque em tais assuntos
devemos olhar antes de tudo o mandamento de Deus, que é o Rei dos reis, o
Senhor dos senhores; tendo cada um por si de dar conta, sem de nenhum modo nos
importarmos com maioria ou minoria.
Não formulamos nenhum juízo, caríssimos
senhores, sobre o que vos diz respeito: e nos contentamos em orar diariamente a
Deus que nos faça a todos nós chegar à unidade da fé, na verdade, caridade e
santidade, por Jesus Cristo, nosso trono de graça e nosso único Mediador.
Pelo que nos diz respeito, porém, aderir à
vossa resolução (julgue-o todo o homem honesto) fora agir contra a consciência,
condenar uma doutrina que achamos cristã, e declarar que deve ela ser abolida
em nossos Estados, se o pudéssemos fazer sem dificuldade. Seria isso negar a
nosso Senhor Jesus Cristo, rejeitar Sua santa Palavra, e lhe dar justos motivos
para que Ele nos renegue, por Seu turno, diante de Seu Pai, como nos ameaçou.
Que! declararíamos, aderindo a este
decreto, que, quando o Deus Todo-Poderoso chama um homem a Seu conhecimento,
não é este homem livre para receber o conhecimento de Deus! Oh! de que mortais
queda não nos tornaríamos deste modo cúmplices, não somente entre os nossos
súditos, mas também entre os vossos!
É esta a razão porque rejeitamos o jugo
que se nos impõe.
E, embora seja universalmente conhecido
que, em nossos Estados, o santo sacramento do corpo e do sangue de Nosso Senhor
é convenientemente administrado, não podemos aderir ao que propõe o decreto
contra os sacramentários, uma vez que deles não falava a convocação imperial,
nem foram eles ouvidos, além de que não de podem decidir pontos tão importantes
antes do próximo concílio.
De mais, estabelecendo o novo decreto que
devem os ministros ensinar o santo Evangelho, explicando-o conforme os escritos
aceitos pela santa Igreja Cristã, julgamos que, para que esta regra tenha algum
valor, necessário seria que estivéssemos de acordo sobre o que se estende por
esta verdadeira e santa Igreja. Ora, uma vez que há sobre este ponto grandes
dissentimentos; que não há doutrina certa senão aquela que é conforme a Palavra
de Deus; que o Senhor proíbe ensinar diferentemente; que cada texto da
Escritura Sagrada deve ser explicado por outros textos mais claros; que este Santo Livro é, em todas as coisas, necessário ao cristão, fácil e próprio para
dissipar as trevas, nós estamos resolvidos, com a graça de Deus, a manter a
pregação pura e exclusiva de Sua só Palavra, tal como é contida nos livros
bíblicos do Velho e do Novo Testamento, sem nada lhe ajuntar, que lhe seja
contrário.
Esta Palavra é a única verdade; e ela a
norma segura de toda doutrina e de toda vida, e não pode jamais falhar ou
enganar.
É por isso, caríssimos senhores, tios,
primos, amigos, que cordialmente vos suplicamos que pondereis com cuidado
nossas queixas e nossos motivos. Mas, se vós não atenderdes a nossa petição,
nós PROTESTAMOS, pelas razões expostas, diante de Deus, nosso único Criador, Conservador, Redentor e Salvador, e que será um dia nosso juiz, e diante de
todos os homens e todas as criaturas, que não consentimos, nem aderimos, de
maneira nenhuma, por nós e pelos nossos, ao decreto proposto, em tudo o que for
contrário a Deus, à Sua Santa Palavra, a nossa boa consciência, a salvação de
nossas almas e ao último decreto de Espira.
Ao mesmo tempo nos persuadimos que S.
Majestade Imperial procederá para conosco como um príncipe cristão que ama a
Deus acima de tudo, e nós nos declaramos prontos a lhe prestar, assim como a
vós todos, graciosos senhores, toda a atenção e toda a obediência, que são
nosso justo e legítimo dever.
Foi
lavrado este célebre Protesto a 24 de Abril de 1529, e assinado por seis
príncipes e quatorze cidades, seguintes: João, eleitor de Saxe, Jorge, margrave
de Brandeburgo; Ernesto e Francisco, duques de Luneburgo; Phillipe, landegrave
de Hesse, e Wolfang, príncipe de Anhalt; e as cidades: Estrasburgo, Nurenberg,
Ulm, Constança, Lindau, Memmingen, Kempten, Nordlingen, Keelbronn, Reutingen,
Issny, Wissenburgo e Winshein.
Neste heróico protesto temos a nobre
origem do nome de protestante dado aos adeptos da Reforma, e de protestantismo
ao movimento reformado.
É, pois, o nome, no decurso das gerações, o
depositário histórico de uma afirmação soleníssima da liberdade de consciência,
centro e vida de todas as liberdades; é a repulsa firme e magnânima da intrusão
do poder civil e do poder eclesiástico na esfera sagrada dos direitos
inalienáveis da personalidade humana. É, mas, porventura: é a afirmação sublime
da soberania exclusiva de Deus e de Sua Palavra infalível sobre a consciência
moral do homem.
Foi um protesto de fé, antes que de
política. Nos seus escudos e nos braços de seus servidores, traziam esses
nobres paladinos dos direitos do homem, na esfera temporal e espiritual, a
insígnia divina – V. D. M. AE. – que significa: Verbum Domini manel in
ceternum – a Palvra de Deus permanece para sempre (1 Pedro 1:25).
Neste lema sagrado temos o segredo do seu heroísmo.
[...]
Do nome protestantismo tem-se dito que a
Reforma é meramente negativa. Mero sofisma de advogados em apuros. O
negativismo é estéril, e só a fé positiva, que resplandece nesse documento, que
penetra e inspira cada uma de suas expressões, é que pode explicar a robustez
vital das raças, que abraçaram a Reforma. Quatro séculos de vida intensa dos
povos reformados insurgem contra a falaciosa alegação.
[...].
Eduardo
Carlos Pereira. Do
“Problema Religiosos da América Latina”
Extraído de: A
Penna Evangelica. Ano III, nº 86. Cuiabá-MT, 25 de Fevereiro de1928.
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