O PODER DA VERDADE
Ou a Bíblia emprestada
(The Borrowed Bible)
Author: Sara H. Browne
Author: Sara H. Browne
Miguel Carrisforth pertencia à melhor
classe dos rendeiros islandeses no
condado de S... Cultivava algumas férteis geiras de terra, com tanta perícia, esmero,
ciência, proveito e economia que suas colheitas eram mais belas e abundantes do
que as da maior parte de seus vizinhos. Verdade é, que, a cultura de Miguel foi
muito falada, e seus frutos sempre foram procurados, e alcançaram o maior preço
no mercado.
Ele desejava ser bom homem, segundo seu
modo de entender o que isto significa. Ele pagou os rendimentos e impostos
prontamente; cuidava bem em sua família,
era marido bondoso e pai indulgente. Ele ia para a igreja
aos Domingos e dias de
festa, guardava a quaresma, não comia carne nas Sextas-Feiras e confessava-se
uma vez cada ano.
Com esta conformidade exterior, ele estava
inteiramente satisfeito — recebendo como milhares de outros, as doutrinas, e
observando as cerimônias da igreja romana, com a maior indiferença, mas sem
questionar ou criticar.
Sua mulher, Izabel, pelo contrário , era
imbuída profundamente nas superstições religiosas de seu povo.
Ela tinha muita reverência
pelo caráter sacerdotal, cegamente atribuindo-lhe todo o poder e santidade,
que, há tanto tempo ele tem tido a presunção e impiedade de arrogar para si. Ela
estava persuadida em seu coração, que a igreja católica romana possuía os
únicos verdadeiros meios da salvação e graça de Deus, e na realidade,
compadecia-se daqueles que estavam fora de seu grêmio, e orava por eles. Ela
confessava, como grande transgressão, a menor falta em cumprir com as regras
prescritas; e com fervor procurou restaurar-se ao favor do céu e de seus diretores
espirituais pelas mais rigorosas penitencias. E do mesmo modo procurava educar
seus filhos inculcando em seus corações os sentimentos e a fé, que eram tão altivamente
dominantes em seu próprio coração.
Podíamos, agora falar destes e muitos
outros princípios e práticas perniciosas da igreja romana; mas desejamos antes
deixar que nossa pequena historia conte sua própria moral aos jovens leitores.
Bastante tem
sido escrito para expor e condenar
estas inúteis e nocivas doutrinas, que tem aplacado os temores o estimulado as
falsas esperanças de milhares sobre milhares, até que afinal, seus pés tropeçaram
nos montes tenebrosos, e a luz da eternidade revelou seu terrível erro.
Passaram-se anos, e Miguel e Izabel já
eram pais duma bela família de robustos filhos e filhas. Miguel orgulhava-se de
ver que foram bem vistos e gabados por todos, em razão de suas limpas e coradas
faces, nítido vestuário, e maneiras respeitosas.
Izabel apreciava mais que tudo os encômios
do pároco, Padre Gasheen, por sua pontualidade e bom procedimento na igreja; e
pela prontidão com que recitavam o catecismo, o credo, e as orações.
Era a Connell, o mais velho, que ele
sobre tudo, elogiava, e prodigalizava altos louvores. Connell era de fato, um menino particularmente
atrativo e inteligente, e, visto as poucas vantagens de que gozava, notável por
sua inteligência e instrução. Na escola paroquial ele era sempre o primeiro em sua classe, e não raras vezes,
mostrou-se igual ao mestre mesmo. Porém sua disposição era tão dócil e amável, que era bem quisto de todos, e
sua superioridade e conhecimentos
não excitaram contra ele inveja nem
má vontade.
Quando chegou à idade de quinze anos, era alto, robusto e vigoroso, e
seu espírito ativo e ardente correspondia com seu lindo corpo. Podia trabalhar todo
o dia, na granja, sem cansar-se e antecipar algumas horas vagas da noite, para
se recrear com sua pedra, seus livros e jornais.
Nas casas das pessoas de sua condição na
Irlanda, os livros não se acham em abundância; mas por meios inteiramente
inexplicáveis aos outros da família, o jovem Connell conseguiu fornecer-se de
leitura. Dotado de muito boa memória, em pouco tempo ele tornou-se um prodígio
de conhecimentos na aldeia. Ele foi reputado inteligente e sábio, e desejava provar
que mereceu este conceito.
Já na idade de quinze anos, não gostava
de dizer “não sei”, sobre qualquer assunto ordinário.
Mas seus estudos todos foram feitos nas
horas vagas, ou nas ocasiões em que outros rapazes de sua idade costumam gastar
em divertimento. Connell trabalhava com diligência na lavoura junto com seu pai
e irmãos. Sabia arar, semear e segar. Ele foi para o mercado e era muito apto
em toda a sorte de negócios, que pertenciam a sua ocupação. Era ele que fazia
as contas; e, sendo hábil em calcular, era muitas vezes encarregado com os negócios
pecuniárias da família, — como comprar, vender e trocar.
Tinha principiado o tempo da ceifa; e o
primeiro trigo maduro tinha sido já segado, as frutas temporãs e hortaliças
estavam prontas para o mercado. Um dia de manhã tudo estava em movimento na
casa dos Carrisforths. A mãe e as filhas levantaram-se de madrugada, umas para
tirar o leite, outras para fazer a manteiga e outras para aprontar o almoço bem
cedo.
Miguel e seus filhos
encheram o carro para o mercado com os vários produtos dos campos e do jardim. Tudo
estava pronto antes de almoçar, e logo depois, Miguel e seu filho partiram para
o mercado da cidade mais próxima; — Miguel para fazer as cobranças, e Connell
para vender o que levavam no carro.
Imprensa Evangelica. Vol. VI, Nº 19.
Rio de Janeiro, 17 de Setembro de 1870, p. 150-151.
Connell estava acostumado ao negócio, e em
pouco tempo tinha disposto vantajosamente de suas hortaliças, manteiga, queijo,
etc. Muitos homens que passavam pelo mercado saudavam afavelmente o rapaz, mesmo
quando não tinham negócios com ele, porque sua probidade e porte varonil,
tinham sido antes notados e apreciados como alguma cousa desusual em um rapaz
de sua idade e condição. Sua aptidão em calcular, e sua exatidão nas contas,
tinham sido muitas vezes notadas. Um indivíduo chamado o Senhor Bentley, tinha
por algum tempo, contemplado o rapaz com interesse. Ele tinha uma quitanda de hortaliças,
e muitas vezes tinha negociado com Miguel e seu filho, e sempre gostava de
conversar com Connell quando seus negócios o permitiam. O Senhor Bentley era um
bom homem, Protestante e Cristão muito ardente.
Neste dia Connell teve a fortuna de vender
todos os seus gêneros ao Senhor Bentley, com quem ele preferia negociar mais do
que com qualquer outro no mercado. Aconteceu que o Senhor Bentley estava muito
ocupado com os fregueses quando pagou a conta, e Connell examinando a conta e o
dinheiro, logo descobriu que tinha recebido alguns mil réis demais.
Esperou até que o Senhor Bentley
estivesse desocupado e aproximando-se dele, disse respeitosamente: “Senhor,
este dinheiro não está bem certo. Tenha a bondade de ver por si mesmo.”
“Não está certo! Como é isso! Não lhe
paguei bastante? Deixe-me ver a conta outra vez.”
Connell lha apresentou, e depois
sorrindo entregou-lhe o dinheiro. “Há um erro, Senhor, como verá, aqui estão
doze mil réis e duas patacas, e a conta chega somente a dez mil réis. Creio que
a diferença é a seu favor.”
O Sr. Bentley mostrou-se muito
agradecido.
“Uma pequena diferença a meu favor! É
verdade. Bem! Não esperava um erro destes. Meus fregueses não estão acostumados
a mencionar tais erros, mas se fosse o contrário estaria certo de sabê-lo logo.
Dois mil réis e duas patacas! Bem! Não me admiro que eu faça erros de vez em
quando. Mas como senhor o descobriu e tão honradamente mo participou dou-lhe o
direito à diferença.
“Não, senhor, eu lhe agradeço,” disse
Connell resolutamente. “Não quero receber recompensa por fazer somente o que é
justo. Faça o favor de guardar o restante.”
O
Sr. Bentley ficou ainda mais admirado; e tomou o dinheiro porque viu que o
melindre do rapaz seria ofendido se ele recusasse. Mas determinou aproveitar a ocasião
para aprender alguma cousa de sua história e esperanças pelo futuro.
Convidou, pois, Connell a assentar-se; e
nos intervalos de servir os fregueses fez-lhe muitas perguntas, que elicitaram
um grau de bom senso, conhecimento e inteligência inteiramente inesperados.
Soube dele quão poucas eram as vantagens intelectuais de que gozava, e quais os
meios de sua instrução religiosa, e levou-o pouco a pouco, e de uma maneira
delicada a manifestar seus sentimentos, esperanças, planos e desejos.
“Bem, meu rapaz,” continuou o Sr. Bentley,
“Vejo que você é capaz de tornar-se um homem prestante e útil no mundo. Não
gostaria de fazer muito bem a seus semelhantes antes de morrer?”
“Sim, senhor, gostaria muito”, respondeu
Connell, seus olhos brilhando com esta nova ideia. “Como posso fazer isso? Faça
o favor de mo dizer, senhor.”
“Tem grandes talentos que muito vos
ajudarão, mas ainda falta-lhe uma cousa da maior importância.”
“O que é isso senhor? Desejo muito sabê-lo,”
disse
Connell
modestamente.
“A religião,” respondeu o Sr. Bentley com solenidade.
“Precisa de um novo coração, e a graça de Deus que traz a salvação.”
“Oh! Eu já sou cristão, senhor. Já fui batizado,
e...”
“Eu lhe compreendo perfeitamente, meu
jovem amigo. Quer dizer que é cristão no sentido católico Romano. Nós
protestantes cremos que ninguém é cristão, senão aquele que tem recebido a
graça de Deus por si mesmo, em seu coração, e com verdadeiro arrependimento
pelo pecado, se abraça com Cristo pela fé como seu único Mediador e Redentor. Pensa
que na realidade tem feito isto Connell?”
Connell achou difícil responder a esta
pergunta inesperada, e o Senhor Bently proseguiu.
“O Cristão além disso, deve fazer a regra de
sua crença, aquele ensino puro e simples que Cristo veio nos trazer. Tem já
lido a Bíblia meu rapaz?”
O Senhor Bently tinha falado com o fervor
e a ternura, que totalmente desarmam os prejuízos e a oposição. Connell pôde
somente responder que ele nunca tinha visto uma Bíblia.
“Julguei isto provável, disse o Senhor
Bentley, e agora, porque é assim? Diga-me, se pode, porque este depósito precioso
de verdades divinas, este diretório simples e belo da fé e esperança humanas, devia
ser tão ansiosamente vedado ao vulgo por seus sacerdotes e prelados?”
“Não podemos entendê-lo, Senhor. Somos por
demais ignorantes — os padres nos falam acerca dele e nos explicam o que é
preciso que nós creiamos.
“Será verdade que eles o fazem?” Disse o
Sr. Bantley. Duvido muito. Eu assim pensava outrora — fui criado nessa crença;
mas quando finalmente li a Bíblia por mim mesmo, achei que tinha sido enganado
e iludido. Gostaria de ver uma Bíblia?
“Sim senhor, muito,” respondeu Connell
avidamente.
“E se a tivesse, lê-a-ia?
“De certo, Senhor, estimaria muito
examinar a
Bíblia
por mim mesmo.”
“Bem tenho só uma, e ela me custou
caro, mas se promete lê-la toda, com sinceridade e atenção vo-la entregarei.
Não vo-la dou para que ninguém a possa destruir, porque bem sei como os padres
opõem-se a sua circulação; e isto não me admira porque onde a Bíblia é conhecida,
seu poder e influência acabam-se. Digo que lhe emprestarei minha Bíblia
preciosa; e quando a tiver lido traga-ma.”
Connell prometeu que a leria com atenção,
guardaria bem, e não se esqueceria de trazê-la a seu dono.
O Sr. Bentley então tirou de uma
escrivaninha uma Bíblia, ainda que muito usada com tudo bem preservada, e a
entregou ao rapaz.
Ele a recebeu com um sentimento de reverência,
e embrulhando-a em papel limpo, a pôs no fundo dum cesto em que vieram as
hortaliças para o mercado.
Ele apenas tinha feito isto quando seu pai
chegou à porta com o carro, e partiram juntos para casa.
Connell esperou até que toda a família se
deitasse para tirar a Bíblia do cesto.
Ele conhecia muito bem a antipatia
violenta de sua mãe para com tudo que cheirasse a Protestantismo, para se expor
ao perigo ainda que seu pai não se importasse; e como costumava ocupar as
noites em ler, sabia que este modo o tempo de indagação, não causaria nem surpresa
nem inquirição.
Poucos de nossos jovens leitores, que
sempre possuíram Bíblias, podem apreciar o estado de espírito com que nosso
amigo Connell assentou-se ao fogo da cozinha e arranjou a lenha meio queimada
procurando melhor luz para examinar a sua Bíblia.
A luz é fraca e vacilante, mas serve para
lhe mostrar que tem um livro mui maravilhoso.
Depois de ler o título, o prólogo, e o índice,
como se devia sempre fazer para ter uma idéia clara do plano e desígnio dum
livro; ele entra no texto sagrado e fica admirado pelo modo sublime com que o
historiador sagrado começa:
“No princípio criou Deus o Céu e a terra.
A terra porém era vã e vazia; e as trevas cobriam a face do abismo.” Gen. 1:1,
2).
Imprensa Evangelica. Vol. VI, Nº 20.
Rio de Janeiro, 1 de Outubro de 1870, p. 158-159.
Connell continuou a ler adiante com
admiração e interesse sempre crescentes. Quando tinha acabado a história da
grande obra da criação, parou e deu um profundo suspiro. “Pois este é o modo
porque o mundo e todas as cousas foram feitas,” disse ele consigo. Quão grande
e poderoso ente deve ser Deus!
Eu nunca soube isto antes, senão por ouvir
dizer; por que devia ser escondido de nós? Por que não devemos lê-lo por nós
mesmos, e sabê-lo todo em lugar de ouvirmos de vez em quando uma simples noção
dele, tal qual os padres nos querem dar?
Continuou a ler. O fogo ia-se acabando. Ele
acendeu uma vela e prosseguiu rapidamente. A primeira transgressão, a expulsão
do Paraíso, o assassino de Abel, e o desterro de Caim, o dilúvio, a edificação
de Babel, a história de Abraão, etc. prenderam-lhe de tal modo a atenção, que ele
não reparou como iam passando as horas da noite. A vela ia-se gastando cada vez
mais, e finalmente expirou no castiçal. Connell deu um salto com isto, e olhou
ao redor de si; o primeiro raio da madrugada vinha aparecendo. Ele procurou
silenciosamente sua cama no sótão afim de dormir um pouco antes que os outros na
casa acordassem. O conteúdo, porém, do livro admirável que tinha estado lendo
com tanta atenção, de tal maneira ocupava seus pensamentos que não lhe era
possível conciliar o sono. Depois de fechar seu tesouro em seu próprio pequeno baú,
desceu para começar os deveres ordinários do dia.
Era duro e exigente o trabalho da ceifa
durante todos aqueles longos e quentes dias de Agosto e Setembro. Ela chamou o
lavrador bem cedo de sua cama e mandou-o para ela de noite, tarde e cansado. A
casa de Miguel Carrisforth, não deu abrigo a ociosos nesse tempo tão ocupado. E
ninguém trabalhou com melhor vontade, ou diligência mais perseverante, do que o
jovem Connell, dia após dia, enquanto era empregada uma grande parte da noite à
maneira já indicada.
Assim passou o tempo da ceifa e o outono —
mas muito antes de seu fim, Connell tinha acabado a leitura de seu admirável
livro.
Parece,
como já foi observado, que os romanos bem sabem o efeito que a livre difusão da
Bíblia entre seu povo devia produzir. Tão certos estão eles deste efeito, que pouco
nos deve admirar o cuidado cioso com que está vedada ao vulgo, estando assim guardando
uma grande avenida à liberdade, luz e ciência religiosas. “A exposição das Tuas
palavras alumia” diz o Salmista, (Sl. 118:130), e eles bem sabem que a
declaração é verdadeira.
Em um coração como o do jovem Connell
Carrisforth, as sementes da verdade assim semeadas, não podiam ficar por muito
tempo dormentes. Produziram nele um mar de dificuldades, dúvidas e incertezas.
“Se este livro é verdadeiro,” disse ele, e com razão, “se ele é realmente a
palavra de Deus, se estas são deveras as doutrinas e os deveres que o bendito
Jesus veio ensinar, então temos sido enganados; porque temos sido ensinados bem
diferentemente — temos sido instruídos a crer em cousas e conformarmo-nos com
ritos e observar cerimônias, que não só não são mandados aqui, mas mesmo não
são permitidos. Não sei como é — estou em grande perplexidade— talvez não compreendo
bem; mas uma cousa sei, que se esta é certa, então nós estamos em erro. Isto
não padece dúvida. Como porém posso eu averigua- lo”? Hei de perguntar ao Sr.
Bentley. Ele pode-me dizer alguma cousa mais sobre o assunto. Porém ele é
protestante! Porque ir para ele? Minha mãe entende que os protestantes são
gente má.”
Aconteceu que o Sr. Bentley não apareceu,
ou estava ocupado demais para conversar todas as vezes que Connell foi para o
mercado por muitas semanas, e não tinha oportunidade alguma para falar com ele,
como muito desejava : porque sentia que precisava muito de auxílio para
resolver suas dúvidas e sossegar suas ansiedades.
Outro sentimento começou a dominar seu
coração. Se a Bíblia falava a verdade então tornava-se claro que Connell
Carrisforth, era grande pecador diante de Deus. Não diz a Bíblia isto? Não
declara que a todos pecaram e necessitam da glória de Deus.” (Rom. 3:23.) Não
diz que “a alma que pecar, essa morrerá?”(Ezeq. 18: 4, 20.)
Era esta convicção fixa e crescente que
mais o perturbou. Fez com que ele se sentisse desgraçado e pouco seguro, e às
vezes em angústia e desespero.
O que podia fazer? Bom sabia o que a
igreja romana prescreve em suas doutrinas de confissão e penitência e atos meritórios
para o penitente: mas seja como for, virou-se com repugnância e aborrecimento
de um sistema que não podia de maneira alguma satisfazer o seu caso.
Foi abalada inteiramente sua fé no romanismo:
porém ainda não tinha achado uma âncora para sua alma.
Ainda não sabia o que era o
protestantismo ou cristianismo.
Uma espécie de vaga incerteza fez com que
seus pensamentos ficassem em perturbação perpétua. Ele continuava a ler a Bíblia
emprestada, e procurava aprender seu sentido; e quanto mais lia tanto mais
convencido ficava da diferença entre seu ensino, e o da sua igreja. Qual destes,
pois tinha razão? Qual estava em erro? Qual o verdadeiro? Qual o falso? Por que
ambos não podiam ser bons?
Imprensa Evangelica. Vol. VI, Nº 21.
Rio de Janeiro, 15 de Outubro de 1870, p. 163-164.
O estado inquieto de seu espírito,
principiou a mostrar- se no rosto de Connell. Tornou-se pálido e magro e ia
perdendo as forças e o apetite. Isabel era mãe boa e terna, e começou a
assustar-se da mudança em seu filho, e julgando que ele tinha sido
sobrecarregado de trabalho, insistiu que ele devia ter tempo para recobrar as
forças. Connell protestou que estava bom, e não precisava de recreação; ele
gostaria mais trabalhar como estava acostumado. Isto nada valeu com Isabel.
“Ora menino não vale a pena ficar lá
questionando. Não heis de trabalhar hoje. Agora ide descansar e divertir-vos!”
“Mas, mamãe, as batatas —
“Eu e as meninas iremos cuidar das
batatas antes de deixarmos-vos fazê-lo, querido Connell,” interrompeu a bondosa
Isabel com decisão. “Estais incomodado, ou não haveis de parecer tão
descarnado. Ide para o pátio ou para onde quiserdes.”
Connell sorriu-se, e ia oferecer mais
algumas objeções. Isabel, porém bateu com o pé.
“Nem mais uma palavra, nem uma palavra
mais! Sei melhor do que vós mesmo como deveis parecer! Não tenho eu vigiado
aquele vosso rosto desde que não estava maior do que a palma de minha mão? Não
vale a pena dizer mais uma palavra; mas eu digo: Ide divertir-vos até que a cor
volte às faces e a luz aos olhos. Sai, digo-vos!”
Connell porém moveu-se com relutância
para obedecer o seu mando. Desejava ardentemente dizer-lhe que era o espírito e
não o corpo que precisava de remédios e descanso. Sabia, porém muito bem que isto
só provocaria sua mais severa censura e indignação. Por isso resolveu-se ainda
guardar seu segredo, e obediente saiu da casa. Mas um dia livre de trabalho não
trouxe, como podemos bem supor, a menor exempção do pesar interior. Antes o
sujeitou mais direta e constantemente a seu poder; e Connell quanto menos tinha
que fazer, mais aflito se tornou.
“Como posso gozar-me,” disse ele consigo,
assentando-
se
sobre uma pedra ao lado da estrada. “Oxalá! que eu nunca tivesse visto a Bíblia!
Era feliz antes, e alegre todo o dia. Agora, oh, como tenho de pensar e pensar
sem parar! Quão miserável me faz, e então ter pressentimentos tão terríveis “depois
da morte o juízo!”Oh, temo que hei de cair na perdição dos ímpios. De certo não
tenho feito nada senão pecar, pecar, pecar, toda a minha vida! Oh para onde
irei, ou o que farei?”
As lágrimas caiam dos olhos do pobre
Connell, mas logo ocorreu-lhe aquele belo e animador convite do querido
Salvador: “Vinde a Mim todos os que andais em trabalho e vos achais carregados,
e Eu vos aliviarei.Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de Mim que sou manso
e humilde de coração, e achareis descanso para as vossas almas.” (S. Mat.11 : 28,
29)
“Isto é o que preciso, isto é o que quero!”
disse ele, levantando-se com um pulo: “mas como, como irei, e para onde!”
Neste momento ele ouviu vozes num campo próximo,
e logo um homem atravessando a cerca, entrou na estrada real perto dele, o
passou adiante sem o ver.
“Lá vai o Padre Gasheen, e deixou cair um
embrulho ao passar da cerca. Apressar-me-ei, e lho entregarei antes de ele dar
falta.”
Connell pegou no pequeno embrulho, que
parecia ser um livro, e foi à pressa atrás do Padre Gasheen. Em poucos minutos
o alcançou.
“Isto é do Senhor?” perguntou-lhe, tirando
o chapéu com respeito e estendendo o pacote.
“Oh! Connell Carrisforth! Como está?
Sim, sim, este pacote é meu! Onde o achou, meu filho? É muito bondoso, muito,
na verdade!”
“Vi-o cair quando o Senhor Padre passava
por cima da cerca,” respondeu Connell, entregando-o ao padre.
“Sou-lhe muito obrigado. Sentiria deveras
ter perdido
minha
Bíblia.”
“A Bíblia,” repetiu Connell, pois a
palavra era elétrica para ele. “Oh, estou muito contente de ter podido restituí-la
ao Senhor!”
Alguma cousa no tom ou nas maneiras do
moço, ao dizer ele estas palavras, fez com que o Padre Gasheen olhasse mais
atentamente para seu rosto. Padeceu-lhe haver uma expressão desnatural.
“Está incomodado hoje, não é assim, meu
filho?” perguntou o Padre benignamente.
“Estou bom, Senhor, mas...” Connell
hesitou. O Padre Gasheen tornou a observá-lo com muita atenção.
“Mas que, Connell? Alguma cousa vai mal
convosco hoje. Diga-me o que é. Pareceis doente! O que vos incomoda, meu filho?
Imprensa Evangelica. Vol. VI, Nº 22.
Rio de Janeiro, 5 de Novembro de 1870, p. 174.
O padre Gasheen falou com ternura, e o
nosso pobre moço ficou muito comovido. Não pude mais reprimir suas emoções por
tanto tempo abafadas. Desfez-se de novo em lágrimas, e pondo a mão sobre o
coração, respondeu: “Estou perturbado aqui senhor!”
O Padre ficou pasmado. Era caso novo achar
um de seu rebanho em tal estado. Nunca antes tinha conhecimento dum exemplo
semelhante.
“O que quereis dizer, Connell? Quase não
compreendo. O que tendes feito? Deveis vir à confissão! Estou certo que um
rapaz tão bom como vós, não pôde ter cometido pecados muito graves. Vinde, meu
filho; a nossa santa igreja achará meios bem prontos para confortar e alegrar
vosso coração.”
E o Padre Gasheen levou-o sem resistência
para dentro da sua casa, a qual tinham já chegado.
“Agora, assentai-vos, meu menino, e
contai-me tudo
O
que é que vos perturba?”
Connell, porém, não respondeu. Não
sabia como principiar.
“Já tendes idade bastante para a
confirmação,” começou o Padre Gasheen, depois de esperar por alguns minutos.
“Acho que o cumprimento daquele dever há de concorrer para vosso conforto. Suponho
que quereis fazer o que outros cristãos fazem. Não é assim?”
“Quero antes ser cristão, para poder obrar como cristão,” respondeu Connell, com
modéstia.
“Sim, muito bem, meu querido, mas fostes
batizado na infância.”
“Temo que não sou cristão, ainda que
fosse,” persistiu Connell. “Tenho consciência e certeza disto,
Senhor.”
“Mas não supondes que nós sabemos
melhor a respeito disto? A igreja declara. — ”
“Mas o que diz a Bíblia a este
respeito, Senhor?” interrompeu Connell com mais coragem.
“A Bíblia, Connell, a Bíblia!
repetiu o padre Gasheen, abrindo seus olhos com espanto: “o que sabeis vós da
Bíblia?”
“Já a li, Senhor, toda”, respondeu
ele.
O rosto do padre perdeu num instante a
expressão branda. Parecia pasmado e ofendido, mas guardou silêncio por alguns
minutos, olhando fitamente para seu jovem companheiro. Enfim falou em tom
mudado e austero.
“Que qualidade de Bíblia é que tendes
lido, e onde a achastes?”
Connell sabia que tinha dito tanto,
que agora o silêncio não lhe valeria nada, e resolveu falar francamente.
“Não quero dizer como a obtive,
Senhor, mas a Bíblia era Protestante.”
“Vossos pais sabem disto, Sr. moço ?”
perguntou o padre Gasheen severamente.
“Não, Senhor. Nunca contei a ninguém, senão
ao
Sr.
mesmo.”
“Nisto tendes feito bem”, respondeu ele. “Sim
tendes
feito
bem em vir para mim, e não estranho mais a sua inquietação de espírito. Aqueles
que se desviam cega ou presunçosamente, do aprisco seguro, acham abrolhos e
espinhos, se não lobos ferozes, prontos para estragar ou destruir. Meu filho,
porque fizestes assim? Quem vos tem seduzido os pés do caminho do dever? Vós,
em quem tanto tenho confiado! Vós, que tendes sido instruído tão fielmente por
uma pia mãe. Não esperava isto de vós, Connel Carrisforth!”
“Mas quero mais instrução, Senhor,”
respondeu Connell com fervor. “Quero saber o que é a verdade, e onde posso
achá-la. E sinto-me, obrigado a dizer, e digo-o com toda rever~encia e respeito
para com o Sr. Padre, que se a Bíblia é verdadeira, algumas das doutrinas e dos
usos de nossa igreja, são errados.”
Esta era uma atitude corajosa para um rapaz
como Connell tomar: e ele logo o percebia pelo efeito que produziu no padre.
“Isto é muito atrevimento” disse o padre
irado; “e não o hei de permitir. Heis de deixar deste modo de pensar e falar, e
voltar para vosso dever! Heis de entregar-me vossa Bíblia ! Heis de dizer-me
por que meios ela veio às vossas mãos, e quem tentou afastar-vos da fé
verdadeira ensinada unicamente pela santa igreja católica.”
Por um instante estava Connell dominado
pelo tom de autoridade com que o padre Gasheen proferiu estas palavras, e seus
olhos se abaixaram ante seu olhar indignado. Desde os mais tenros anos tinha sido
ensinado a venerá-lo, e até quase considerá-lo como um ente superior. É assim
em todos os países e comunidades em que o romanismo tem o predomínio.
Os padres têm uma influência quase ilimitada
sobre o povo, que é levado a crer que eles são os sucessores diretos de Cristo
e dos apóstolos, e estão, por conseguinte, revestidos de grande santidade tanto
como de poder. Mas nosso jovem inquiridor pela verdade não podia ser assim
frustrado, nem por muito tempo desanimado. Fitou os olhos diretamente na face
carregada e sombria do padre Gasheen, e respondeu:
“A Bíblia não é minha senhor: não posso
entregá-la a ninguém senão ao dono, cujo nome não posso proferir. Não desejo,
Senhor, desviar-me da fé verdadeira. Estou unicamente procurando saber qual é a
verdadeira fé, e como posso achá-la. Sinto-me peccador, em perigo da morte
eterna, e venho vos perguntar, Sr. Padre, o que hei de fazer para me salvar?
Connell, disse isto com ar solene e ansioso,
e o Padre Gasheen julgou melhor tratá-lo com menos severidade. Era evidente que
o moço estava num estado crítico de espírito — talvez seria melhor usar da
persuasão em lugar de autoridade ou ameaças. Sabia que Connell era um rapaz de espírito,
e de susceptibilidades delicadas — talvez não fosse prudente exasperá-lo no
princípio.
“É fácil dizer-vos isto, meu filho. Estimo
saber. Estimo saber que sentis assim. Nossa santa igreja recebe todo o
penitente com os braços abertos. Sois mandados reconciliar-vos com ela por
contrição, confissão e satisfação, e recebereis a remissão de vossos pecados,
por mais graves que sejam.”
“Mas não compreendo o que o Senhor quer
dizer. O que é contrição?”
“É sentir tristeza pelo pecado cometido,
odiá-lo e fazer um propósito de nunca mais pecar. É estar pronto para espiar as
culpas pelas penitências que o padre prescrever; e para que este possa julgar
do caso, deve ter conhecimento dessas ofensas — daqui a necessidade da
confissão. Nenhum pecado cometido depois do batismo pode ser perdoado de
qualquer outro modo”.
“Mas quem me salvará? Quem me assegurará do
perdão?” perguntou Connell ansiosamente.
“Parece-me
que tendes esquecido o catecismo. Não, diz ele: No ministro de Deus que se
assenta no tribunal da penitência, como seu juiz legítimo, o penitente sincero venera
o poder e a pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo; pois o padre representa o caráter,
e preenche as funções de Jesus Cristo. E em outro lugar em nossos cânones
declara-se, que em virtude de sua consagração, o padre se torna intérprete e
mediador entre Deus e os homens. Vedes, pois, que o padre pode fazer muito pelo
pecador penitente, se este continuar fiel em seus deveres. Pode contar também
com a intercessão de Cristo, da Santa Virgem, e dos Santos, quando pratica as
penitencias em satisfação de seus delitos.”
“Mas, Senhor,” disse Connell com voz trêmula,
“diga-me primeiro, se a Bíblia é verdadeira! É o Novo Testamento a regra de
nossa fé? Devemos crer e confiar nele?”
Imprensa Evangelica. Vol. VI, Nº 23.
Rio de Janeiro, 19 de Novembro de 1870, p. 179-180.
“A Bíblia! respondeu o padre
petulantemente. O que tendes vós que fazer ou dizer a respeito dela? Digo-vos
que a Bíblia, é para o clero; e este tem de instruir o povo no que ensina,
tanto em doutrina como em prática.
Não faleis mais da Bíblia, Connell
Carrisforth! Vosso maior pecado é terdes secretamente desobedecido as injunções
da Santa Igreja, tendo nas mãos a que é proibida tão positivamente, e o que é
mais, uma Bíblia Protestante.”
Mas diga-me, Senhor, eu lhe rogo, se a Bíblia
é verdadeira? Por que não acho nela nada sobre o modo de penitência e perdão,
em que o senhor fala. Ela me diz que ha um só Mediador entre Deus e os homens,
e que este é Cristo mesmo. Nada diz da penitência nem da satisfação da
intercessão dos santos ou dos anjos ou dos padres — nada do poder da Virgem.
Diz: “Porque assim amou Deus ao mundo que lhe deu a seu Filho Unigênito, para
que todo o que crê Nele não pereça, mas tenha a vida eterna.”
(S.
João 3:16.) Diz: “Não por obras de justiça que tivéssemos feito nos outros, mas
segundo a Sua misericórdia, nos salvou, pela fé em Jesus.” (Tito 3:5.)
Diz-me—
“Calai-vos, eu vos mando,” disse o Padre
Gasheen em tom duro e imperativo. “Nada mais disto, nem mais uma palavra! Vejo
que sois já contaminado pela heresia daquele livro corrupto. Se recusardes entregá-lo
nas minhas mãos, e voltar a vosso dever pelo modo que hei de ordenar, julgarei
ser o meu dever proceder contra vós como herege e cismático. Ouvis, Connell?”
Connell ouviu, sim, e o sangue subiu-lhe às
faces, e até à testa. Temia o padre, porque assim, tinha sido instruído a
fazer, e não podia de uma vez, despojar- se dos sentimentos com tanto cuidado
insinuados no seu coração infantil. Mas aqueles sentimentos iam perdendo seu
poder sobre ele. A verdade de Deus revelada em sua Santa Palavra já principiava
a desfazer os laços do prejuízo e da superstição. Ia tornando-o livre.
“Ouvis?” repetiu o padre mui irado. “Quereis
submeter-vos as minhas ordens, ou não?
O moço esperou ainda alguns minutos como
irresoluto sobre o que devia dizer. O padre Gasheen pensou que o tinha vencido.
Havia um cintilar triunfante em seus olhos pardos, que parecia dizer: “Eu sei
bem sujeitá-lo!”
“Respondei-me”, insistiu ele severamente.
“Primeiro diga-me, Senhor, se a Bíblia é
verdade,” replicou Connell, modesta, mas firmemente.
Era resposta muito inesperada, e o Padre
Gasheen percebeu mais claramente, que tinha um caso para tratar, que requeria
toda a astúcia e todo o jeito que possuía. Seu primeiro impulso era
enfurecer-se. Mas logo assentou consigo que seria melhor encarar o ponto que
parecia tão importante ao moço com mais candura do que ao começo, queria mostrar.
“É a Bíblia verdade?” Sim — não —
principiou — não a que vós tendes lido. A única tradução da Bíblia digna de confiança
é a Vulgata, que é sancionada pela Igreja e pelos padres antigos. Esta contém a
verdade, e nenhuma outra a tem.”
“Desejo ver um exemplar,” disse Connell. “Tenha
a
bondade, Senhor, de me mostrar uma Bíblia Vulgata?”
O Padre Gasheen ficou bem desconcertado;
mas depois de hesitar por alguns minutos, foi a sua livraria e tirou um grande
livro antigo, o qual deu a Connell sem dizer uma palavra. Este o abriu
avidamente, mas logo achou que não sabia lê-lo. Era em Latim. Connell levantou
os olhos desapontado.
“É esta a Bíblia, Senhor? Não sei lê-la!”
Sim! Este é o depositário dos mistérios
sagrados da nossa santa religião. É assim que a igreja tem decretado guardá-los
da familiaridade profana dos ignorantes,” respondeu o padre Gasheen.
“Mas por que esconde a verdade do povo?
Por que não deve ele ler e entender por si mesmo? A Bíblia diz, “a verdade vos
livrará,” (João 8:32,) e nos manda examinar as Escrituras porque nelas estão as
palavras de vida eterna. Não posso entender a razão da proibição, Senhor
Padre.”
“Nem vos é necessário estendê-la — isto
pertence a vossos instrutores religiosos, não a vós.”
“Mas
desejo ler esta Bíblia, Senhor, e ver em quão
difere
daquela que já li. O Senhor não tem uma Vulgata traduzida para o Inglês? Faça o
favor de me emprestá-la por alguns dias.”
O Padre Gasheen era bondoso por natureza,
e o comportamento amável de Connell, juntamente com as suas instâncias ardentes
começou a abrandá-lo muito.
“Sabeis, meu filho,” disse ele depois de
alguma reflexão sobre o pedido de Connell, “que é contrário às regras e à
constituição de nossa santa igreja. Espero, porém que seja neste caso o meio de
levantar um defensor hábil de suas verdades e doutrinas. É possível, Connel,
que um dia sejais padre. Como gostareis de pregar o Evangelho?”
“Quero conhecer a verdade — quero saber o
que hei de fazer para me salvar!” respondeu o moço com lágrimas nos olhos. Não
poderia ensinar aos outros, cousas de que eu mesmo estivesse em dúvida.”
“Bem, meu querido, sois tão exigente que
vos emprestarei este por alguns dias,” disse o padre, pegando no pacote que
Connell tinha achado no caminho. Não a guardeis por muito tempo, e quando
voltardes trazei-me a outra. Agora, lembrai-vos!”
“Isto não posso fazer, Senhor. Aquela Bíblia
não é minha. Não posso aceitar esta sob uma tal condição”, e Connell estava
para deitar na mesa o livro, que acabava de receber do padre.
“Pois bem veremos! Podeis examinar este
livro, e dizer-me o que pensais dele.”
Obrigadíssimo, Senhor. — é muito bondoso!
Hei de cuidar bem dele, e trazê-lo quando o Sr. quiser; e agora, adeus, Senhor.
Espero que não o incomodasse.
O Padre Gasheen despediu-se dele
benignamente à porta. Sentia-se convencido que uma natureza como esta devia ser
atraído ao aprisco, antes que levado a força.
Imprensa Evangelica. Vol. VI, Nº 24.
Rio de Janeiro, 3 de Dezembro de 1870, p. 190-191.
A excitação de sua entrevista com o
padre Gasheen deu às faces de Connell uma cor viva que muito agradou a sua mãe,
quando ele voltou para casa.
“Vinde cá, meu coração, eu sabia que
precisáveis somente de divertir-vos um pouco; e tereis só divertimento e nada
mais, por toda esta abençoada semana! Nunca será dito que filho meu foi morto
pelo trabalho!”
Connel desejava demais aproveitar a ocasião
para a leitura de sua Bíblia vulgata, para se opor muito ao plano de sua
bondosa mãe.
Ele começou naquela mesma noite, e leu como
antes até quase ao amanhecer. De dia em dia continuava a leitura. No Domingo
ausentou-se da igreja para poder ler; mas com toda a sua diligência não pode acabá-la
no tempo marcado. Todavia leu e comparou bastante para descobrir que em algumas
cousas era diferente da Bíblia protestante. Algumas delas significavam o mesmo
em linguagem diferente; outras eram exatamente semelhantes. Algumas pareciam-lhe
ensinar doutrinas e deveres aos quais o padre Gasheen dava pouca consideração,
posto que pareciam a Connell muito importantes. Mas o estilo era estranho, o
sentido muitas vezes além de sua compreensão. Não era tão simples e inelegível
como a Bíblia do Senhor Bentley, e ele não podia deixar de admirar que alguém
lhe desse a preferência. Enfim, quanto mais lia tanto mais ficava perplexo e
incerto –
“Oh! Se tivesse alguém para me ensinar!”
disse frequentemente o pobre rapaz, fechando os livros desesperado, enquanto
lhe caíam as lágrimas sobre as mãos enlaçadas. “O que farei? Não posso ver um
só raio de luz, e torna-se cada vez mais escuro!”
Então alguma preciosa e animadora passagem
das
Escrituras
Sagradas veio-lhe à memória.
“E se algum do vós necessita de sabedoria
peça-a a Deus, que a todos dá liberalmente e não impropera: e ser-lhe-á dada.”
(S. Tiago 1:5).
“Vinde a Mim todos os que andais em
trabalho e vos achais carregados, o Eu vos aliviarei.” (S. Matheus 11:28).
“Buscai, pois primeiramente o reino de
Deus, e a
Sua
justiça, e todas estas cousas se vos acrescentarão.
(S.
Matheus 6:33)
Connell sentia a beleza e conveniência
destas e de outras passagens semelhantes, e já tinha decorado muitas delas para
o tempo em que não teria uma Bíblia; (sabia que não podia guardar a do Senhor
Bentley por muito tempo sem perigo;) mas contudo elas não lhe deram conforto
algum. Tudo era névoa, dúvida, incerteza. Parecia-lhe que estava flutuante
sobre um mar tempestuoso, sem carta, bússola, leme ou âncora. — longe da terra,
coberto da sombria escuridão de meia-noite. Oh! Quanto sentia-se infeliz! Mas
recorreu à origem da luz eterna, aquela fonte de vida espiritual da qual jamais
voltará vazio ninguém que a procura em verdade.
Aprendeu a orar nestes dias dolorosos,
como nunca antes tinha orado.
As fórmulas prescritas no catecismo,
que lhe tinha sido ensinado a repetir desde a meninice, não exprimiam as
necessidades de sua alma, posto que continham muitas petições apropriadas e belas.
Nada, porém ainda ministrava a paz às aspirações e à inquietação de seu espírito.
Havia uma falta que nada podia suprir — uma apreensão de perigo e desamparo que
continuamente o agitava e assustava. O Espírito de Deus estava fazendo sua
própria obra em convencer do pecado e em mostrar o estipêndio e o justo
merecimento do pecado, tanto como a sua natureza. Connell sentia que era cousa terrível
cair nas mãos do Deus vivo, que “não poderá olhar para a iniquidade. » (Hab.
1:13). — em cuja vista o próprios
“Céus
não são puros.” (Jó 15:15). Sentia a necessidade de alguma cousa melhor do que
as boas obras com que apresentar-se diante dele, — de uma mediação mais
poderosa e segura do que a dos santos ou mesmo da Santa Virgem. Via o absurdo
profano daquele sistema que atribuía mérito aos castigos corporais ou às observâncias
cerimônias, e virou-se desesperado destes refúgios da mentira e da superstição.
Mas nada estava claro ou certo; seu caminho estava obstruído, e não tinha
ninguém para o aconselhar.
Chegou de novo o dia do mercado. Connell ofereceu-se
para ir, e a sua proposta foi aceita com muito gosto. Assentou consigo que
seria prudente restaurar a Bíblia primeiramente emprestada, para que não caísse
em mãos pouco escrupulosas quanto a sua disposição.
Tirou-a do lugar oculto em seu pequeno baú,
e a colocou com cuidado no carro; não, porém, sem lágrimas saudosas; e ao passo
que os mansos cavalos caminhavam lentamente com o carro, aproveitou-se desta
última oportunidade para lê-la ainda outra vez e imprimir mais profundamente na
memória algumas passagens favoritas.
Com grande prazer Connell achou o Sr.
Bentley em seu lugar acostumado e sem estar muito ocupado. Depois de tratar dos
negócios foi entregue a Bíblia a seu dono.
“Mas porque quereis devolvê-la, meu jovem amigo?”
perguntou o Sr. Bentley. “Tendes lido-a tão ingênua e fielmente como
prometestes ?”
“Sim, senhor, tenho na verdade,” respondeu
Connell.
“Tenho a lido toda por diversas vezes.”
“E não quereis guardá-la por mais tempo?”
Esta pergunta levou a uma explicação
minuciosa. Com simplicidade infantil Connell lhe contou o efeito que a palavra
tinha produzido em seu espírito — suas dificuldades, suas dúvidas, seus temores
— suas entrevistas com o padre Gasheen.
Não podemos narrar toda a conversação que
se travou entre eles, mas foi tal que nosso novo inquiridor nunca só esqueceu
dela.
Imprensa Evangelica. Vol. VI, Nº 25.
Rio de Janeiro, 17 de Dezembro de 1870, p. 194-195.
O Sr. Bentley era um daqueles cristãos
que de boa vontade perdem
uma hora de negócio se a obra do divino Mestre o requer. Percebia o estado crítico
do espírito do rapaz, e como Priscila e Áquila noutro tempo fizeram a Apolo de
Alexandria: o levou consigo e lhe declarou mais particularmente o caminho do
Senhor. (Atos 18:26). Aplainou-lhe as suas dificuldades e resolveu-lhe as suas
dúvidas.
Mostrou-lhe o plano simples e belo do
Evangelho sobre a salvação — Jesus, o caminho, a verdade e a vida. João 14:6, o
qual foi o mesmo que levou os nossos pecados o justo pelos injustos para nos
oferecer a Deus. 1ª Pedro 3:18; que, “foi ferido pelas nossas iniquidades, foi quebrantado
pelos nossos crimes. O castigo que nos devia trazer a paz caiu sobre Ele e nós fomos sarados pelas Suas pisaduras.
Is 53:5
Brandamente o levou ao pé da cruz e
pediu-lhe que depusesse aí a sua carga de pecado e delito. Aí e só aí se acha o
médico e o bálsamo que podem sarar a chaga pestilenta do pecado. Eles
conversaram muito tempo, e pelo auxílio das exposições claras e bem dirigidas
do Sr. Bentley, o glorioso plano da livre graça e redenção mostrou-se da
escuridade confusão das opiniões contraditórias e das investigações especulativas.
Viu que um grande sacrifício foi feito uma só vez e para sempre, e que sua
graça pode ser recebida somente pela fé. Desembaraçado das formalidades e dos
absurdos do romanismo, esta verdade preciosa penetrou em sua alma o encheu
perfeitamente o vácuo que lá havia. A resposta que saiu do íntimo de seu coração
foi sim. Senhor, eu creio; ajuda tu a minha incredulidade S. Marcos 9:24. Seu
coração saltou de um gozo até então desconhecido para ele; e em sua volta para
casa, ajoelhou-se no carro que ia vazio e entregou-se solenemente ao serviço de
seu recém-achado Senhor o Salvador, e com insistência pediu sabedoria para que
pudesse dignamente honrar seu nome em todas as circunstâncias e sob todas as
sortes de provações e tentações.
Tinha muita razão para esperar provações e
tentações fortes. Pois sabia que tinha de lutar contra uma corrente de oposição
em procurar afastar-se da sociedade e da influência daquele corrupto sistema de
religião em que havia sido criado; e sentia a necessidade da força e da
sabedoria de cima.
O Sr. Bentley obrigou-o aceitar um Novo
Testamento de algibeira em lugar da Bíblia remetida. Deu-lhe também alguns
folhetos apropriados a seu caso, os quais Connell lia-os com tanta avidez enquanto
ia no carro que só deu fé de si quando os cavalos se aproximavam da porta de
seu pai.
Seu pai e seus irmãos ainda não tinham
voltado do trabalho; sua mãe, pois foi ao seu encontro quando ele entrava pela
casa a dentro com uma expressão bem singular no rosto. Suas faces estavam
coradas e as suas pálpebras vermelhas e intumescidas como se tivesse chorado
muito. Ela parecia encará-lo com dificuldade, e virou o rosto de seu olhar
inquiridor: “O que tem, mamãe? perguntou ele, posto que estava quase certo que
o sabia. Isabel ficou calada.
“O que tem, querida mãe? Repetiu. Está
triste ou incomodada?”
Isabel virou-se para ele com um rosto severo.
“Sois um filho mau e hipócrita,” prorrompeu
ela ao tempo que as lágrimas lhe caíam. “Sei tudo, e não me podeis cegar mais
os olhos.”
“Mamãe, o que quer dizer.”
Não perguntei o que quer dizer, retorquiu
ela com indignação. Sabeis o que tendes feito, e o padre Gasheen também o sabe,
ele nos visitou e nos contou tudo... tudo... Os soluços não lhe deixaram dizer
mais.
Connell tinha bem conjecturado o caminho que
o padre Gasheen provavelmente arranjaria para ele, e receava muito que o primeiro
conhecimento que sua mãe obtivesse da mudança operada nele não viesse duma
pessoa que excitasse ao princípio os seus mais violentos prejuízos. Mas
contando com toda a parcialidade e mimo com que ela sempre o tinha tratado,
como seu primogênito, resolveu consigo fazer uma forte tentativa para conciliá-la.
“Ora, querida mãe, peço-lhe que se sente e
deixe-me contar-lhe tudo, e veja se eu tenho feito mal.
“Já sei, já sei demais,” disse ela
suspirando.
“Ai de mim! Se eu visse meu filho, meu Connell,
um... um... uma nova torrente de lágrimas a impediram de falar. Não! Não!
Continuou ela logo que pode articular; não me faleis mais; não quero ouvir uma
só palavra; mas o padre Gasheen disse-me que fôsseis lá e tendes de ir hoje mesmo
e de submeter-vos a ele.”
“Bem. Devo levar-lhe a sua Bíblia. Já a tenho
em meu poder por mais tempo do que ele me deu licença.” respondeu Connell invasivamente.
Bíblia! Não disse ele que possuías uma
herética.
E não pesquisou por toda a casa para ver
se achava? Onde a tendes escondido, menino malvado?
Isto vos há de levar à perdição.”
“Está bem guardada, mamãe.” respondeu
Connell sob um ressentimento que lhe subia do coração por causa do procedimento
tão desonroso e contemptível do padre curioso. O padre Gasheen pode ter a sua
própria Bíblia, mas não a outra.
Imprensa
Evangelica. Vol. VII, Nº 01.
Rio de Janeiro, 7 de Janeiro de 1871, p. 6-7.
Neste momento entraram para aprontar o
jantar, as suas irmãs, Catharina e Maria, e a conversação foi interrompida. Mas
de algumas palavras que elas proferiram, e do seu comportamento mudado para com
ele, era evidente que Connell acharia nelas pouca simpatia. Sem dúvida o padre
Gasheen teve o cuidado de prescrever à família todo o procedimento que devia
ter para com ele até que com alegria, tornasse a voltar para o aprisco em que foi
criado.
Seu pai e seus irmãos mostraram-se comunicativos
sobre o negócio da quinta e o estado do mercado; mas não fizeram alusão às
revelações da manhã. Todavia Connell julgava achar mais aspereza e falta de familiaridade
que dantes, mesmo da parte deles, e não se achava bem preparado para uma
manifestação tão inesperada de hostilidade que oprimia o seu coração como uma
mó de moinho, e custava-lhe a refrear as lágrimas. Isto é somente o princípio,
dizia ele; mas “não se turbe o vosso coração”. (João 14:1) “Vós haveis de ter aflições
no Mundo, mas tende confiança, Eu venci o Mundo.” João 16:33
Acabado o jantar Isabel insistiu para que a
ordem do padre Gasheen fosse obedecida. Connell devia ir a sua casa e submeter-se
ao que o padre lhe impusesse. Pouca apreensão tinha Isabel que um filho seu
ousasse resistir à autoridade ou desprezar as instruções de um padre romano,
por cujo ofício e poder sua própria veneração não tinha limites; e sentiu-se
reassegurada quando Connell saiu ao seu mandado.
Connell parou por um momento no limiar da
porta do padre para dirigir ao Céu uma petição breve e muda, a fim de alcançar
a força e a sabedoria necessárias para se haver e fatiar bem, e então bateu à
porta e foi admitido à presença do padre Gasheen.
Aquele bem nutrido senhor estava sentado
a sua mesa de estudo, lendo um jornal. Ele levantou os olhos e fez-lhe um aceno
de frio reconhecimento, e pôs-se de novo a ler. Connell teve de ficar de pé à
porta, com o chapéu na mão, até que tivesse acabado de ler o parágrafo. Quando
o padre o havia concluído e posto ao lado o jornal, como se
estivesse
pronto para atender a visita, Connell aproximou-se e pôs sua Bíblia em cima da
mesa.
“Estou-lhe muito agradecido, senhor, por
me tê-la emprestado. Há muito que pretendia trazer-lha,” disse
Connell,
algum tanto agitado.
Durante alguns instantes havia um profundo
silêncio. Enfim, porém o padre dirigiu-lhe um olhar severo e ameaçador e
disse-lhe: Onde está a outra?
Não mandei eu que vós ma trouxésseis? Como
ousastes escondê-la apesar das minhas ordens .
“Disse-lhe, senhor,” respondeu
Connell, “que a Bíblia não era minha, e
que eu não tinha o direito de entregá-la nas mãos de alguém a não ser o dono, a
quem já a entreguei.”
“Quem é o dono?” perguntou o padre Gasheen asperamente.
“Isso não digo, pois não importa a ninguém
conhecê-lo.
“Mas haveis de me contar tudo, e prometer-me
nunca mais pegar nesse livro pernicioso em quanto viverdes. Vossos pais hão de
concordar comigo em fazer com que vos submetais, senhor moço e esta cousa é a
primeira que requeiro. Estais disposto a obedecer-me?”
O ingênuo rosto, meio varonil, meio
infantil, de Connell de repente enviou-se, e olhou no chão refletivamente.
“Obedeceis ou não? reiterou o padre em
tom mais alto e arrogante, porque pensava perceber que a coragem do rapaz
diminuía.
“Não posso fazer nem uma, nem outra
cousa,
senhor,”
disse ele firme mas modestamente.
Excitada a indignação do padre
Gasheen por esta resposta calma e determinada, ele rompeu em exprobrações e
ameaças violentas.
“Deveras não podeis, senhor”! E
porque razão? Eu vos peço! Não permitirei tal impertinência de um moço travesso
como vós, senhor! Tendes de obedecer- me ou sofrer consequências graves e
inesperadas. É meu dever tirar-vos como um tição de um incêndio, Amós 4:11 e eu
hei de fazê-lo em virtude da minha autoridade como vosso pai espiritual: ficai
certo que hei de fazê-lo!
O rosto de Connell corou, mas ele dominou
as suas paixões; e depois de um breve silêncio respondeu meigamente: “Senhor
padre, vim para ser instruído não para disputar com vossa reverendíssima. Não
tinha a intenção de faltar-lhe ao respeito, e peço-lhe que me desculpe tudo o
que parecesse inconveniente a um rapaz tal como eu; mas quero fazer algumas
perguntas, às quais se tiver a bondade de responder, dar-me-á muita
satisfação.”
“Não é de vosso direito fazer perguntas, mas
sim responder a elas. Redarguiu o padre Gasheen severamente. O povo tem de
receber a verdade tal qual é ensinada pelos santos ministros da igreja. São proibidos
de embaraçar seus espíritos com pontos obscuros e difíceis, os quais estilo
reservados para o clero, que é instruído e habilitado em tais cousas. O único
dever do leigo é ouvir, crer e obedecer.”
Imprensa
Evangelica. Vol. VII, Nº 03.
Rio de Janeiro, 4 de Fevereiro de 1871, p. 19-20.
“Mas faça o favor de dizer-me, interrompeu
Connell, sem se importar muito com a regra prescrita para o povo, se esta
Bíblia sua é a que tem sido usada por muito tempo na igreja católica?”
“A vulgata? Sim, é a única tradução que
admitimos como verdadeiro. É muito antiga — mais antiga do que qualquer outra
em uso geral,” respondeu o padre.
“É, pois, a mesma que Lutero achou na
livraria do mosteiro em Erfurt?”
“Sim; mas que tem isso?” perguntou o padre
Gasheen.
“Ele era padre também, não era, senhor?
E nunca tinha visto uma Bíblia até a idade de vinte e quatro anos?
“Bem!
“E ele a leu e tornou a lê-la dia e
noite, até quase a sabia de cor, e — e —” Connell hesitou, incerto se devia
continuar ou não.
“Pois bem! Que mais?
“Convenceu-se que a Bíblia de nenhum
modo concordava com as doutrinas e usos da igreja romana, à qual ele pertencia,
de sorte que sentia que lhe era forçoso abandonar uma ou outra; e, perdoe-me,
senhor,” disse Connell olhando timidamente para o rosto vermelho e carregado do
padre Gasheen, “mas é assim que eu tenho sentido desde que li a Bíblia — tanto
a sua como a outra, pois são iguais em geral.”
“É isto justamente o que eu antecipava,”
disse o padre dando violentamente com o punho na mesa. “Não falo mais — mas hei
de — ”
“Permita, senhor, por favor, que lhe
pergunte mais uma cousa,” interrompeu o moço com uma coragem que inteiramente desconcertou
o irritável padre. “Que quer dizer S. Paulo quando fala de um tempo em que
haverá uma apostasia da verdadeira fé? Ele diz: “O Espírito manifestamente diz,
que nos últimos tempos apostarão alguns da fé, dando ouvidos a espíritos de
erro, e a doutrinas de demônios, que com hipocrisia falarão mentira, e que
terão cauterizada a sua consciência, que proibirão casarem-se, que se faça uso
dos viandas que Deus criou, para que com ação de graças participem
delas
os fiéis, e os que conheceram a verdade.” (I Tim. 4:1, 2, 3.) “Quem são estes
em que se fala aqui, Sr. Padre?”
Se o Padre Gasheen poderá ter-se
persuadido que sua fama de homem ilustrado não seria comprometida pela recusa
de responder a esta última pergunta, teria manifestado a indignação que sentia em
estar apertado com tanta insistência, e talvez teria despedido seu jovem pároco
sem mais cerimônia de sua casa; mas havia razões particulares que fê-lo julgar
mais prudente suportar a impertinência e responder com calma. Podia-se dizer
que ele evitou ou recusou responder a perguntas sinceras, o que não seria muito
airoso para um homem cujo ofício era dar instrução em tudo que diz respeito à
religião. Ele respondeu, portanto mui breve e positivamente, que estas palavras
de S. Paulo se referiram aos gnósticos, uma seita herética, que floresceu no
primeiro século da era cristã, e cujas doutrinas e costumes muito se
assemelhavam com a descrição citada.
Connell refletiu um momento, e disse: “Mas
Sr. Padre, S. Paulo diz: nos últimos tempos.
“E julgo que ele não havia de chamar a época
em que escreveu os últimos tempos. Que diz o Senhor? Se não me engano ele
escreveu no primeiro século. Não será possível, senhor, que ele se referia a
outros apóstatas além dos gnósticos?
“Como o meu jovem amigo está se tornando
sábio!” retorquiu o padre Gasheen com ironia. “Um modelo de modéstia, sem dúvida,
quando ousa questionar as explicações dos padres da Igreja sobre uma das mais
claras passagens da Escritura. Este é de certo o feliz resultado de ler a Bíblia:
vemos como faz a gente humilde. Vossos perniciosos mestres protestantes
provavelmente vos dirão que S. Paulo na passagem citada, fala na igreja católica
romana, e não duvido que sois bastante tolo para acreditar nisso ou em qualquer
outro absurdo, mas lembrai-vos, rapaz,” e o padre levantou-se e tomou seu ar
mais severo. “Lembrai-vos que com risco de vossa alma que deis ouvidos a tais persuasões
— são laços para vos atirar no inferno!
Connell não respondeu imediatamente. Não
podia negar que o Sr. Bentley tinha dado esta interpretação à passagem em
questão. Era uma das muitas que ele tinha indicado como descritivas daquela
igreja corrupta e decaída, como há séculos ela já existe; nem podia o moço
deixar de reconhecer quanto eram justas, exatas e notáveis. Ele desejava fazer
mais algumas perguntas, mas o padre Gasheen mostrou-se tão impaciente para
acabar com a conversa, que ele levantou-se para se retirar.
“Vinde ter comigo outra vez antes do
Domingo, e estai pronto para de joelhos confessar o vosso erro e dizer-me quem
são os que vos estão desviando do caminho, e o que mais for necessário, e tudo isto
será esquecido,” disse o padre com solenidade.
Connell ia sair do quarto, mas parou, e
depois de hesitar um momento, disse: Sr. Padre Gasheen, eu lhe agradeço os seus
conselhos, instruções e avisos. Mas estou resolvido, venha o que vier, seguir a
Bíblia, quer isto me torne protestante quer me faça ficar católico. Se ela é
palavra de Deus – a vontade revelada de Deus, como o Senhor diz – posso confiar
no ensino dela, porque é muito mais claro e simples do que o ensino dos homens.
Tenho
achado nela um Salvador tal qual minha pobre alma perturbada e pecaminosa
precisa. Estou persuadido que eu o tenho recebido pela fé. Creio que o amo, e
pretendo servi-lo todos os dias de minha vida; e agora se a tribulação, ou
mesmo a perseguição, me sobrevier em consequência desta minha resolução, aturá-la
hei do melhor modo que me for possível por amor de Cristo. Não sei que penas, o
senhor tem o direito de me impor, visto que nunca fui regularmente admitido
como membro da comunhão católica; mas poderá, sem dúvida, persuadir meus pais,
amigos e vizinhos a maltratar-me: — poderá fazer o que quiser; tenho animar-me
para essa bela promessa : “Quando meu pai e minha mãe me deixarem, o Senhor me
recolherá.”
Connell admirou-se de sua própria coragem,
quando acabou de falar. Padre Gasheen nada respondeu ao que ele acabava de
dizer, e somente o mandou lembrar-se do que lhe tinha dito, porque não tinha
mais que dizer; e assim eles se separaram.
Imprensa
Evangelica. Vol. VII, Nº 04.
Rio de Janeiro, 18 de Fevereiro de 1871, p. 27-28.
No domingo seguinte o Padre Gasheen
pregou um sermão muito notável. Era uma mistura de mão humor, censuras, sarcasmo
e queixas, sem cousa alguma daquela alegre mensagem evangélica, que tem sido
confiada aos embaixadores de Cristo. Expôs o crime e a desgraça de apostatar da
santa igreja católica.
Era este um desses pecados mortais, que
não se perdoará “nem neste mundo, nem no outro.” Ele declamou sobre a relaxação
da disciplina doméstica, que não guardava os filhos da companhia e da
influência daqueles que queriam subverter seus princípios religiosos, por mais
cuidadosamente que estes fossem insinuados; e finalizou com uma exortação
apaixonada a todos os bons católicos a não deixar passar sem uma reprovação
conveniente um caso flagrante, que existia presentemente entre eles. Seria
agradável a Deus, disse ele, se por quaisquer meios razoáveis eles pudessem
tirar um obstinado ofensor do erro de seus caminhos; e que assim haviam de “salvar
uma alma da morte e cobrir uma multidão de pecados.”
A natureza irlandesa é proverbialmente suscetível;
e logo se manifestou o efeito desta arengra inoportuna nos rostos carregados,
que se viraram para a família Carrisforth de toda a parte da igreja paroquial.
Todos souberam em quem se falava, por que
a mudança no jovem Connell tinha sido propalada pela comunidade com grande
descontentamento. A pobre Izabel ouviu as amargas palavras do Padre Gasheen com
mágoa e terror não fingidos; mas como ela nem de leve pensou que seu guia
espiritual pudesse errar, sentia-se obrigada a aceitar a sua opinião sobre a
reclamação de seu “desvairado filho,” como ela sinceramente o considerava.
Chorou amargamente, e sentia-se a mais
infeliz das mães. Miguel ouviu com surpresa, e ficou muito incomodado. Ele
tinha, é verdade, dado pouca atenção ao negócio, mesmo quando Isabel lhe tinha
faltado dele em casa com todo o fervor possível. “Tudo seria bom com o rapaz,”
disse ele; “não há que recear; a mocidade sempre tinha suas noções; e além
disso, ele sabia que um rapaz tão bom como Connell sempre fora e ainda era, não
podia estar muito fora da regra; ele o afiançava.”
Mas para ser assim apontado no meio de uma
congregação inteira e feito deste modo um espetáculo e ter a má vontade de seus
vizinhos e amigos invocada contra ele e sua família, era um pouco mais do que
ele estava disposto a ouvir.
Talvez ele tinha-se mostrado por demais
indiferente, quando o Padre Gasheen falou do negócio, havia alguns dias, e este
era o plano que sua reverendíssima tinha escolhido para trazê-lo a seu dever;
um plano ignóbil e covarde, ele não podia senão considerá-lo; mas ninguém devia
contender com o padre, ou questionar sem direito de usar dos meios que lhe
parecessem próprios para a edificação de seu rebanho, ou para recolher os que
por ventura iam-se extraviando.
A família inteira voltou da igreja num
estado de grande excitação. Connell, naquele dia pela primeira vez, tinha
partido cedo, para assistir ao culto protestante mais próximo, distante meia
légua ou três quartas, em uma capela metodista. Quando vinha voltando encontrou
várias pessoas da congregação do Padre Gasheen; algumas das quais o insultaram
e injuriaram, e até o trataram com alguma violência, com ameaças de mais, se ele
não deixasse o caminho que ia seguindo. Por estas cousas ele soube o tenor do
procedimento do Padre Gasheen, mas não esperava pela tempestade que se desfez
sobre ele o momento que entrou em casa.
“Onde fostes, senhor?” demandou seu pai,
seu rosto corado, e todo trêmulo de cólera.
Connell hesitou um momento; todo o jeito
das cousas na família, mostrava que tinha acontecido alguma cousa desusual.
“Onde fostes?” repetiu Miguel com voz rouca
de paixão.
Connell francamente lhe contou. Mas a
informação de modo nenhum lhe aplacou a ira. Agarrou nele pelo pescoço, e o
sacudiu rudemente.
“E quem vos deu licença de andardes à toa
na companhia dos hereges? Foi vosso pai? Foi vossa mãe? E o que não tivemos nós
de sofrer por vossa causa? Não temos sido apresentados como alvo de censuras e
insultos? Não temos sido ameaçados e injuriados, e os nossos vizinhos e amigos
incitados contra nós, e tudo por vossa causa? Quereis ser a ruína de nós todos?
Quereis que a casa seja queimada sobre nossas cabeças? Quereis que sejamos motejados
e ludibriados onde quer que aparecermos ? Digo-vos, rapaz, tendes de mudar de
rumo. Digo-vos que já chegou o tempo em que estas cousas têm de ser largadas,
ou não haverá lugar para vós sob meu teto.”
“Meu pai...” começou Connell brandamente.
“Nem uma palavra! — Não a permito! — Não
admito discussão! A minha decisão está feita, e dar-vos-ei tempo para fazer a
vossa; não serei precipitado convosco, porque tendes sido um bom filho para
mim, e espero que continuareis a sê-lo. Mas não posso deixar as cousas caminhar assim. Tendes um mês para
decidir se quereis ir submeter-vos ao Padre Gasheen e fazer o que ele vos
mandar ou deixar a minha casa para sempre! Escolhei: dou-vos um mais deste
dia.”
“Eu não lhe daria a metade desse tempo, de
modo nenhum,” acudiu Isabel, toda excitada. “Ai de mim! o que será de nós?
“Nem eu” — “Nem eu” — acrescentaram
Catharina e Maria muito descontentes.
“Seremos todos vítimas de um motim antes
desse tempo,” sugeriu Dermot, o filho mais moço.
“Calai-vos,
todos!” disse Miguel asperamente.
“Será justamente como eu digo. Ele terá
um mês para considerar seus caminhos: e não duvido que naquele tempo ele há de
reconhecer que está em erro; mas ele nunca terá que dizer que seu pai o tratou
inconsiderada ou precipitadamente. Um bom filho ele tem sido para mim, como
todos vós sabeis, e far-lhe-ei justiça. Agora calai-vos, todos, sobre este assunto,
até acabar o tempo, e então
trataremos
dele. Não o molesteis de modo nenhum!”
Era raras vezes que Miguel Carrisforth fez
sentir a sua autoridade como chefe de sua família — era afável e de bom gênio,
e deixou muito ao cuidado de Isabel. Mas quando ele estabeleceu quaisquer
regras, lê-lo de tal modo que assegurava obediência pronta. Todos os lábios
emudeceram; e ao pobre Connell foi permitido retirar-se para o seu sótão, onde
seu coração aliviou-se de suas violentas emoções debulhando-se em lágrimas.
Imprensa
Evangelica. Vol. VII, Nº 05.
Rio de Janeiro, 4 de Março de 1871, p. 35-36.
O mês que sucedeu era bastante longo e
enfadonho. Os olhares desviados, e as maneiras frias e repulsivas da família,
onde antes tinha existido tanto afeto e ternura, atribularam muito uma natureza
afetuosa, como era a de nosso jovem herói. Parecia estar inteiramente excluído das
simpatias da família. Os trabalhos continuaram como
de
costume. Connell se esforçou para exceder-se a si mesmo em fidelidade e diligência.
Levantou-se cedo e trabalhou até tarde, e procurou fazer tudo de melhor mudo para
agradar a seu pai. Mas tudo era em vão. Sentia-se sob a proscrição da família,
tanto como do padre, que ele sabia era o principal promotor das provações que
estava sofrendo. Uma ou duas vezes, quando se achava sozinho com seu pai, ousou
tocar de leve no assunto proibido. Julgou possível alistar suas simpatias a seu
favor; porem Miguel só bateu com pé no chão e lembrou-lhe a sua ordem.
Não se deve pensar, porém, que este longo e
triste mês não tinha consolações nenhumas para nosso jovem peregrino, que há
tão pouco tempo se achava no caminho estreito para a cidade celeste.
Era um mês de muitas dúvidas e receios, e de
desânimo, é verdade, mas era também um mês de sincera e fervorosa oração, de
exame de si mesmo, de firmes resoluções, de fé e de alegria. Sim, tão claras e fortes
eram suas esperanças celestes, tão seguramente tinha ele se pegado ao Onipotente
Salvador, que sua Bíblia emprestada lhe tinha revelado, que às vezes podia
esquecer-se inteiramente de suas tributações mundanas, ou lançá-las sobre aquele
que tomou sobre si as nossas fraquezas, e carregou com as nossas dores. Ninguém
da família podia conceber o sossego e gozo interiores que ele às vezes sentia,
em quanto seu quartinho ecoava essas belas linhas:
“Ó meu amante Jesus,
Abriga minh’alma aflita.
Enquanto bramo a procela,
E revolto o mar se agita!
Salvo em quem ao porto guia.
Não há mais temor em mim;
O Criador me protege,
Estou seguro e salvo enfim.”
Muito antes da madrugada da segunda-feira,
o último dia do mês, Connell estava já vestido e de joelhos ao lado de sua
cama. E oh! com que fervor orava, com que ternura se lembrou de cada um da
querida família ante aquele trono de graça que é sempre acessível ao coração
devoto! Com que instância pediu para todos a graça vivificadora que traz consigo
a salvação! E então pediu para si mesmo, que fosse guiado por aquela sabedoria
que não pode errar, que pudesse honrar o nome de seu Salvador, por infâmia, e
por boa fama, que seu caminho lhe fosse mostrado, e que ele tivesse coragem
para suportar qualquer provação que o esperava, especialmente a de deixar a
casa de seu pai e ir ele não sabia para onde, por amor de Cristo.
Levantou-se e enxugou as lágrimas.
Entrouxou de sua roupa a que julgou mais necessária e aproveitável, e assentou-se
para esperar que a família se levantasse, e para pensar no que seria melhor que
fizesse. Pobre rapaz! custou-lhe muito decidir, porque dificuldades e
obstáculos pareciam fechar-lhe todos os caminhos. Quando foi chamado parti almoçar,
Connell desceu com a trouxa na mão, como se estivesse pronto para partir; o que
muito admirou a todos os membros da família.
Tinham contado com toda a certeza com um
resultado o contrário disto; e quando Connell assentou-se em seu costumado
lugar e os saudou amavelmente, é mais fácil imaginar do que descrever o que
cada um sentia. A expressiva cara de Isabel logo traiu a agitação de seu ferido
coração. Miguel lançou um olhar quase incrédulo do rapaz para o pacote, e então
com a cara mais grave possível tentou comer. Porém aquele almoço na casa dos
Carrisforths era mera pantomima, e levantaram-se um após outro para escaparem
da tristeza da ocasião. Afinal Miguel arredou a cadeira para trás, e depois de
um esforço violento para firmar a voz, principiou:
“Pois, Connell, meu filho, lembrai-vos do
que vos disse há um mês?”
“Sim, meu pai.”
“Suponho que tendes decidido então o que
ides fazer?”
“Tenho, sim, senhor.”
“E espero que pretendeis voltar para o
bom caminho velho, sem nos causar mais incômodo ou ansiedade. Como é?”
“Meu pai,” disse Connell comovido, “não
quero causar-lhes incômodo nem ansiedade — mas, meu pai, nunca posso ser católico,
nunca! Tenho lido a Bíblia, e não acho ali o que a igreja romana ensina, e
estou resolvido pela ajuda de Deus deixar tudo pela Bíblia. Não tenho feito mal
algum ao Padre Gasheen, nem lhe dei ocasião de ofender-se, e não posso
consentir em submeter-me a seu domínio; se, pois, meu querido pai, o senhor não
pode permitir que eu fique em casa e creia e proceda segundo as minhas convicções,
vou-lhe deixar, como disse o senhor — para sempre.”
“Ai de mim! Ai de mim! Gritou Isabel do
quarto próximo, onde tinha ouvido tudo:
“Nossa alma será perdida — não heis de ir
para a perdição se eu posso preveni-lo. Mande chamar o padre, Miguel
Carrisforth.
“Não, minha mãe, tenho achado um salvador.
A minha alma está segura. E oh! se fosse dado a todos vós buscar e achá-lo,
seria respondia a minha oração mais fervorosa. Mas não quero ver o padre Gasheen
— deixai-me ir em paz — sempre hei de amar-vos e orar por vós.
“Tinha aqui um domicílio agradável, mas o
Senhor cuidará em mim, porque deixo tudo por amor da sua verdade. E agora,
minha querida mãe, e meu querido pai, adeus — adeus ! Catharina e Maria —
adeus! Demas e Thiago — não vos esqueçais de mim, eu vos rogo a todos!”
Conell pegou em seu embrulho e caminhou
para a porta. Seu pai ficou em pé irresoluto e perturbado, não sabendo o que
fazer. Tirou do bolso dois soberanos e pô- los na mão de Connell.
“Não sabeis o que estais fazendo, meu
filho,” disse ele com voz trêmula.” Não sabeis qual é o mundo com que ides
lutar.”
“É verdade, meu pai. Não sei, mas não vou
sozinho. —Quando meu pai e minha mãe me deixarem o Senhor me recolherá? Sl
27:10. “Estai certos de que Eu estou convosco todos os dias, até à consumação
do século? S. Mat. 28:20 . Estas palavras me dão confiança e coragem. Adeus,
mais uma vez, meu querido pai!”
Connell tinha dado poucos passos da casa
quando um grande grito o assustou, e ouviu suas irmãs clamando: “Ela vai
morrer? mamãe vai morrer!” Ele não pôde resistir ao impulso de correr para a
casa.
Ali, deveras, estava Isabel desmaiada
sobre o chão, e a família toda quase fora de si com susto. Apressou-se a trazer
água para lançar no rosto de sua mãe, quando Catharina arrebatou o jarro de sua
mão— “Deixai-a,” disse ela, “sai daqui”; sois vós quem a tendes morto, e tereis
de dar contas disso; sereis a morte de todos nós ainda, miserável malvado que
sois !
“Isso é verdade assentiu Maria — vede lá o
mal que tendes feito. Oh, minha pobre mãe!”
Estas amargas exprobrações feriram o
coração de
Connell,
como se fossem setas envenenadas. Cobriu o rosto com as mãos e chorou
amargamente, e vendo que sua mãe voltava a si tornou a sair da casa.
Imprensa
Evangelica. Vol. VII, Nº 06.
Rio de Janeiro, 18 de Março de 1871, p. 43-44.
Connell partiu sem ter plano fixo, mas
há muito que ele tinha pensado que se pudesse falar com o Sr. Bentley, este lhe
daria conselhos apropriados nesta emergência. Tinha esperanças de poder ir para
o mercado e vê-lo durante o mês passado, mas não tinha sido conveniente. Ele
agora resolveu dirigir-separa a cidade, e se for possível entender-se com aquele
senhor.
Ele tinha estado mais ou menos uma hora
na estrada e ia caminhando com diligência, quando ouviu atrás de si estrondo de
rodas sobre o chão endurecido pelo frio, porque estava já adiantado o outono.
Não olhou para trás, porém, e pouca atenção
deu, até uma voz familiar clamou: “Connell, Connell, parai!”
Virou-se então, e viu seu pai
apressando o mais que podia os velhos cavalos da granja.
“Parai! parai, rapaz! porque não
parais? Tenho estado gritando este último quarto de légua — não me ouvistes?”
disse Miguel, fazendo parar seu carro ao lado de Connell.
“Não, meu pai; mas o que é que o traz
com tanta pressa? Está pior minha mãe?”
“Sua mãe não tem nada, mas digo-vos,
rapaz, não posso aturar isto —
tira-me todo o ânimo;” disse seu pai, enxugando as lágrimas com sua calosa mão;
“e além disso, soube poucos minutos depois que saístes, que Pat O’Shea e Mich
Brady e mais alguns destes malandrins estavam-se ajuntando para ir em vosso
alcance e maltratar-vos; e como não se sabe o que são capazes de fazer
instigados pelo padre Gasheen, resolvi tomar-lhes a dianteira. Digo-vos,
menino, aquela arenga rabugenta que tivemos na igreja há um mês, abalou muito
minha boa opinião de sua reverendíssima; e que ele tome sentido de como é que
procura incitar os vizinhos contra mim ou a minha família. Mas vinde, entrai no
carro, vou levar-vos para casa por outro caminho a fim de evitar o encontro com
aqueles sujeitos.”
“Mas, meu pai,” hesitou Connell, “eu não
posso ser católico, não posso de maneira alguma, e estes homens poderão incomodar-lhe
muito se eu estiver lá. Sentiria muito causar-lhe alguma dificuldade; e ainda
mais minha mãe e as meninas, talvez haviam de afligir-se muito.”
“Não precisais dizer mais. Eu vou cuidar
de mim e de vossa mãe e das meninas; e se estes sujeitos nos molestam sentirão
a força da lei; entrai, pois, e não percamos mais tempo em falar.”
“Ó meu pai, como é benigno para comigo!”
disse o moço, subindo para o lugar que tantas vezes tinha ocupado ao lado de
seu pai.
“Bem, vós tendes sido um bom menino, e não
sou eu vos que hei de ver maltratado por quem quer que seja, quer vos chameis católico
quer não; e no fim de tudo não me parece que haja muita diferença,” respondeu
Miguel, virando seus cavalos para uma estrada particular, que era o outro
caminho para casa.
Chegaram a casa sem incidente, mas acharam
uma porção de homens e mulheres dentro e fora da casa.
Não
eram, porém, naquela classe da qual tinham razão de apreender mão tratamento,
mas alguns dos vizinhos mais decentes e respeitáveis, que vieram saber de
Isabel e oferecer-lhe suas simpatias.
Muitos queriam saber que mal Connell achou
na fé e no culto romanos, e se o padre Gasheen não o podia esclarecer. Isabel
tinha respondido o melhor que podia às suas perguntas, mas ela não estava bastante
informada para bem satisfazer seus inquiridores.
Quando Miguel soube de seus desejos,
meditou um momento, e virando-se para Connell disse: “Meu filho, eu quero que
vos expliqueis a estes bons vizinhos o que eles desejam saber a respeito da
mudança em vossos sentimentos sobre este assunto. Se não podeis ser católico,
como dizeis, eu quero que lhes digais porque e que deis uma razão de vosso
procedimento.”
“Eu o farei, senhor,” respondeu Connell
prontamente.
“Agora, meus amigos,” disse Miguel,
dirigindo-se para o povo, “o rapaz diz que vos explicará por que não pode ficar
católico como nós outros; e é justo, como vedes, dar-lhe o ensejo sem vexá-lo
ou perturbá-lo. Se ele não puder mostrar razão suficiente por seu novo modo de
pensar, que ele tome para se maior vergonha; mas se ele puder vamos ouvi-lo.”
“De certo isto é justo,” disseram todos.
Pois bem, talvez queirais reunir-vos
Domingo que vem de manhã, e neste caso ouvir o que ele tem que dizer.”
Foi aceita a proposta, e o povo
dispersou-se.
Imprensa
Evangelica. Vol. VII, Nº 07.
Rio de Janeiro, 1 de Abril de 1871, p. 51-52.
No Domingo seguinte, em vez de uns doze
amigos
e
vizinhos, mais de com pessoas se haviam reunido na granja que fica em frente da
pitoresca cabana dos Carrisforths: homens, mulheres e crianças de todas as
aldeias circunvizinhas e entre eles alguns conhecidos como capangas do padre
Gasheen, que podiam fazer algum motim.
Foi com alguma importância que Miguel
considerou o aumento constante dos ouvintes ao redor de sua porta. Sua mulher e
filhas estavam quase possuídas de um terror pânico. Nada senão a autoridade de
Miguel podia obstar que elas saíssem da casa e fossem para alguma outra, onde
podiam considerar-se livres do tumulto da gentalha. Porém Miguel era um homem
robusto e resoluto; e quando seu sangue começou-lhe a ferver, disse a Bessie
com uma aspereza tal que ela não julgou prudente resistir-lhe, que se ele não podia
proteger sua própria família, a lei podia e devia, e isto dentre de seus próprios
limites.
O coração do jovem Connell lutava com trepidação
ao pensar da parte que estava para fazer neste drama; mas algumas palavras de
seu pai estimularam sua resolução a desempenhar seu papel o melhor possível e a
deixar o caso com Deus. Ele então se lembrou do que disse Jesus a seus discípulos:
“Não cuideis como, ou o que haveis de falar; porque naquela hora vos será
inspirado o que haveis de dizer.” S. Mat. 10:19
Uma
tosca plataforma de tábuas sobre barris foi arranjada, sobre a qual Connell se
colocou. Agora, disse animadamente Miguel: sede um homem e não deixeis o temor
de alguém embaraçar-vos de contar uma história evidente. Eu fico aqui perto de vós
até ao fim; e vós não tenhais receio de exprimir vossos pensamentos. Olhai para
aqui.” E abrindo o peito de seu casaco, mostrou-lhe um par de pistolas. “Eu as
conservarei quietas.”
“Meu pai! Meu pai!” disse Connell em voz deprecatória.
“Deixai-me. Eu sei o que faço.
Primeiramente falto eu; e depois vós.”
“Amigos,” disse Miguel, dirigindo-se ao
povo, “vós tendes vindo aqui ao meu convite para saber porque este meu filho
não pode ser católico romano como nós. Eu vos prometi que sabereis suas razões,
porque ele é um moço, como vós todos bem o sabeis, que não recebe uma crença
nova sem razões. Eu mesmo necessito saber, e desejo que também vós saibais;
porque é que ele não pôde viver como nós em nossa santa fé católica. Eu me
alegro em vos ver a todos; mas se algum de vós tem vindo para fazer motim e
distúrbio, esse não tem parte aqui, e é melhor que se retire quando achar
conveniente. Eu estou resolvido a conservar a tranquilidade e a manter a ordem;
e o primeiro de entre vós que fizer algum barulho ou tumulto, melhor lhe fora
que cá não viesse; porque eu o sossegarei de um modo que ele não esperava. Vós
sabeis que Miguel Carrisforth quando tem o sangue esquentando, faz como diz.” E
voltando-se para Connell, disse-lhe: “Chegou o vosso tempo, meu rapaz.” E
assentou-se onde seus olhos podiam dominar todo o auditório.
As faces de Connell estavam coradas quando
ele começou modestamente: — “Meus bons vizinhos, eu nunca antes tentei falar em
público e por isso receio que meu discurso não saia como devia; mas se vós
tiverdes paciência, eu me esforçarei a mostrar-vos a mudança que se tem operado
em meus sentimentos. Eu não estou amedrontado, nem envergonhado em confessar que
não posso ser católico romano, e talvez em breve alguns de vós concordem comigo.
Tão profundo era o silêncio que reinava no
auditório que se podia ouvir o tinir de um alfinete. Talvez que o modo
determinado, o olhar sereno e o ar resoluto de Miguel tomados em consideração
com as observações que havia feito, contribuíssem alguma cousa para isto. Todos
os olhos quando o moço procedeu, estavam atentamente postos nele.
“Amigos,” disse Connell entrando diretamente
no
Ponto:
eu tomei emprestada uma Bíblia; e
quando a li achei muitas cousas admiráveis que nunca jamais tinha ouvido —
cousas que os nossos padres nunca se deram ao trabalho de contar — nos não
obstante serem próprias para fazer um homem sábio e melhor — cousas que todos
devem saber, crer e praticar — cousas que nosso bendito Salvador Jesus Cristo, e
seus santos apóstolos ensinaram; também como cousas que os profetas inspirados
por Deus que viveram em tempos remotos escreveram.
Mas a maior parte das cousas em que nós
temos sido ensinados a crer e que supomos doutrinas evangélicas, não se acham nela! Os padres nos dizem
que seu ensino, o dos concílios, do papa e o da tradição é tão bom como o da Bíblia
e tão obrigatório sobre a consciência. Vós credes nisto, amigos? A Bíblia é a voz
de Deus — esse ensino são opiniões de homens — devem eles ser recebidos como de
igual autoridade?
Eu sempre admirei por sermos proibidos ler
a Bíblia desde que ela é efetivamente a palavra de Deus e foi dado para nos
ensinar o caminho e sermos salvos da perdição eterna; mas quando a li, eu não
fiquei mais surpreendido — Eu vi mui claramente, que se o povo a lesse e cresse
por si mesmo, eles não continuariam a ser mais católicos romanos — A igreja
sabe que faz muito bem, e esta é a razão porque somos conservados nas trevas e
na ignorância. A ele não lhes convém deixar-nos saber o que está na Bíblia,
porque então nós veríamos que temos sido cegados e iludidos. E vós, vizinhos,
jamais pensastes porque é que todos os nossos serviços religiosos são feitos em
uma linguagem da qual nós não podemos entender uma palavra? Por que não devemos
conhecer a significação e a prática do serviço de que tomamos parte? Que
alteração há para nos enganarmos? Eles dizem que nós devemos crer o que a
igreja crê, quer nós saibamos, quer não. O apóstolo S. Paulo, porém, fala mui
diferentemente — ele diz, “que sem fé é impossível agradar a Deus” Heb. 11:6, e
que um conhecimento da verdade é necessário antes de nós a podermos crer. Como
podemos obter este conhecimento, se eles nos negam a Bíblia?
Eles também ensinam que nós podemos merecer
nossa própria salvação por observar todos os ensinos da igreja — fazendo obras
de retidão, penitência, etc. A Bíblia diz-nos que nós somos salvos pela graça
mediante a fé, e isto não vem de nós mesmos; porque é um dom de Deus. Não vem
das nossas obras, para que ninguém se glorie Efs. 2:8, 9 — mas segundo a Sua
misericórdia, nos salvou pelo batismo da regeneração e renovação do Espírito
Santo Tito 3: 5 . Deus assim amou ao mundo, que lhe deu a Seu Filho Unigênito
para que todo o que crê Nele não pereça, mas tenha a vida eterna S. João 3:16.
Não há quem faça bem, não há nem sequer um só Rom. 3:12. Porque todos pecaram e
necessitam da glória de Deus Rom. 3:23. Sejam precipitados todos os pecadores
no inferno, todas as Nações que se esquecem de Deus. Sl. 9:17
Quando li estas passagens, vizinhos, eu
fiquei alarmado e triste, como podeis supor. Eu não sabia o que devia fazer —
Eu senti que era um pecador diante de Deus, e não tinha retidão para
apresentar-lhe, ainda que ela pudesse ser aceitável. Que podia eu fazer? Eu
pensei na Virgem Maria, nos santos e nos anjos; mas eu nada achei em toda a Bíblia
que nos permitisse orar a eles, ou solicitar sua ajuda. Eles não podem fazer
nada a nosso favor, nem até a própria Virgem Maria. Jesus é o único “Mediador entre
Deus e os homens,” diz a Bíblia — o único nome dado do Céu aos homens, pelo
qual nós devamos ser salvos 1Tm. 2:5. Jesus Cristo diz de si mesmo — “Eu sou o
caminho, a verdade e a vida: ninguém vem ao Pai, senão por mim.” S. João. 14:6.
Imprensa
Evangelica. Vol. VII, Nº 08.
Rio de Janeiro, 1 de Abril de 1871, p. 62-64.
Conell prosseguiu em seu discurso,
dizendo: “Não compreendi ao princípio, como agora julgo que compreendo o que
significava vir ao Pai, ou como era
que o Salvador havia de me salvar. Fui ter com o Padre Gasheen e contei-lhe
todas as minhas dificuldades e inquietação de espírito. Ele me repreendeu por
ter lido a Bíblia, e proibiu-me continuar a lê-la, e mandou-me praticar as
cousas que mereceriam a salvação — não havia perigo, disse-me ele, eu só devia
fazer o que a igreja ordena, — mas que a
Bíblia não manda! Pedi-lhe que me
dissesse em primeiro lugar, se a Bíblia era realmente a palavra de Deus e de
autoridade sobre os homens. Ele disse que a Bíblia católica era; roguei-lhe,
pois, que me mostrasse uma, o que ele fez depois de muitas objeções; mas qual
não fui minha surpresa, em achá-las semelhantes naqueles mesmos pontos que mais
me embaraçavam e inquietavam. Pedi-lhe que me explicasse, mas ele irou-se, e
somente me ameaçou. Separei-me dele mais miserável e perturbado do que nunca, e
mais em dúvida sobre o que devia fazer para me salvar; mas em seu próprio tempo
o Senhor enviou-me bons conselhos, e humildemente acredito que tenho aprendido
a crer no Senhor Jesus
Cristo
para a salvação de minha alma. Entreguei-me à Sua misericórdia só, e Ele tem
dito: “O que vem a Mim não o lançarei fora.” Isto é o que a Bíblia me tem
levado a sentir e fazer, meus amigos; é seu próprio e legítimo efeito: — “A
exposição das Tuas palavras alumia, e dá inteligência aos pequeninos,” diz a
Escritura; e isto é justamente o que nossos padres temem; e eis a razão porque
eles não nos permitem ler e julgar por nós mesmos — sabem que não podemos ficar
o que somos, e ter a Bíblia em nossas mãos. Há aqui um ponto que nunca posso
ceder — não posso largar a palavra de Deus, e, portanto não posso ser católico.
Louvarei a Deus até à morte, ou antes por toda a eternidade, por aquela Bíblia emprestada.”
Connell assentou-se sem olhar para
observar o efeito que seu discurso tinha sobre seu auditório rústico. Se o
tivesse feito, porém, ter-se-ia admirado do número dos olhos de que se
deslizavam lágrimas. Seu pai, porém, o tinha reparado, e tinha concluído que
para sua proteção não havia precisão das armas de fogo que trouxe escondido
debaixo de seu casaco. Mesmo os malvados, que tinham vindo de propósito para
fazer desordem, nada acharam nas caras uns dos outros ou na altitude de seus
companheiros, que os animasse a cumprir o seu intento. Um por um safaram-se
envergonhados, enquanto os mais sisudos e respeitáveis da assembléia
reuniram-se em grupos, para fazer seus comentos sobre o que acabavam de ouvir,
e indagar se estas cousas eram realmente assim. Connell tinha sempre sido muito
estimado pelos vizinhos, e mesmo agora poucos haviam que estivessem dispostos a
censurá-lo asperamente, ao passo que o Padre Gasheen e alguns dos padres vizinhos
foram severamente criticados pelo descuido de seus próprios deveras, do qual
diversos exemplos foram aduzidos como bem conhecidos por várias pessoas
presentes. Miguel desceu da plataforma, e uniu-se com os outros nestas conversas.
“Que outra cousa podia o rapaz fazer?”
disse um.
“Eu não vejo que ele esteja muito fora do
caminho,” disse outro.
“Se os padres não nos ensinam, quem o ia
de fazer?” questionou um terceiro.
“Devemos ter a Bíblia,” acudiu um quarto,
“e não me parece justo que ela nos seja proibida.”
“Eu gostaria ouvir mais a este respeito,”
observou um quinto.
“Eu queria que o Padre Gasheen ouvisse o
que nós temos ouvido, e respondesse por si,” murmurou um sexto.
“Porque não pôde o rapaz dar-nos uma
outra fala,” perguntou um deles ao afável Miguel.
“Que dizeis vós a esta proposta, meu
menino?”
disse
outro a Connell mesmo.
Quando Connell compreendeu o pedido
respondeu
Prontamente:
“Se quiserdes, lerei a Bíblia para vós
e podereis então julgar por vós mesmos se ela é própria para todos. E oxalá!
meus amigos, que pudesses todos lê-la por vós mesmos!”
O Domingo seguinte de manhã foi marcado para
outra reunião, e o povo separou-se sossegadamente, muitos levando em seus
corações pensamentos sérios de uma sorte nunca antes sentida por eles.
Connell de joelhos em seu sótãozinho deu
graças a Deus pelo resultado amigável e satisfatório desta ocasião que tinha
antecipado com tantos receios, e suplicou a sabedoria necessária para guiá-lo
em seus humildes esforços para trazer esse povo ingênuo ao conhecimento de Seu
poder e de Sua Santa Palavra.
Durante toda a semana o moço tinha razão
de alegrar-se na bondade e afeto que lhe mostrou toda a família. Seu pai estava
mais do que satisfeito, — e até o orgulho materno de, Isabel estava algum tanto
despertado pelo fato de ele ter agradado a todos, tanto ao contrário do que ela
esperava. Principiou a parecer uma cousa menos terrível ler a Bíblia; e quando,
uma noite. Miguel pediu a
Connell
que trouxesse o seu Novo Testamento e lhe lesse um capítulo pela simples
curiosidade da cousa, ela não fez muitas objeções, e escutou com paciência, e
até mesmo um interesse que não teria querido confessar nem a si mesmo.
Imprensa
Evangelica. Vol. VII, Nº 09.
Rio de Janeiro, 6 de Maio de 1871, p. 71-72.
Felizmente o Padre Gasheen se achava
ausente nesta ocasião em uma cidade distante, e, portanto não podia intervir
para obstar a reunião proposta.
Passou a semana, veio o Domingo, e logo de
manhã o povo tornou a juntar-se no pátio da casa de Miguel. O devoto coração do
jovem Connell abrasou-se e dilatou-se. Oh, como ele desejava dar expressão
adequada ao grande assunto da salvação pela livre graça de Deus, manifesta no
dom de um Salvador Todo-Poderoso! Oh, como ele desejava expressar a paz e
alegria de sua própria alma, e proferir uma palavra ou enunciar um pensamento que
pudesse induzir alguns destes amigos e vizinhos a procurar e achar o que ele
tinha procurado e achado!
Este fervor de sentimento comunicou uma
suave e bela solenidade e ardor à sua voz e maneiras, ao mesmo tempo que
excitou o brilho em seus olhos e ele deu facilidade em falar; e naquela memorável
manhã, foram lidas e proferidas palavras cujo indizível valor para algumas almas
só os registros da eternidade poderão adequadamente descobrir. A Palavra de
Deus nos lábios daquele jovem, e acompanhada por seus próprios comentos e
tocantes exortações, produziu um efeito inteiramente inesperado. Era como o fogo
e o martelo que quebra a pedra”. Lágrimas de arrependimento caíram de olhos que
antes escarneciam das lágrimas, tanto como dos mais meigos e susceptíveis.
E a muitos que, como o carcereiro de Filipos,
perguntaram ansiosamente; “Que é necessário que eu faça, para me salvar?” a
simples, mas sublime resposta: “Crê no Senhor Jesus, e serás salvo,” veio com
um poder e autoridade que não podiam questionar nem resistir. O Espírito de
Deus estava lá, — os mandamentos de Deus, tantas vezes inutilizados pelas
tradições dos homens, foram aplicados com energia divina às consciências
convictas; e formas, e doutrinas, e dogmas de homens, foram esquecidos. Ninguém
naquela reunião perguntou: “Que diz a igreja, o papa, ou o padre?”, mas “O que
diz o
Senhor?”
Entre os mais comovidos por esta simples explicação
da verdade revelada em Jesus Cristo, era Miguel Carrisforth. A espada do Espírito
tinha penetrada no íntimo da sua alma; e não passou muito tempo até que ele pudesse
claramente apreender e pela fé realizar a ventura dessa grande verdade: “Justificados,
pois pela fé, temos paz com Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo.” E
grande era a alegria para ele e para muitos de seus vizinhos, quando podiam
regozijar-se juntos na esperança da glória de Deus.
Reunião após reunião foi celebrada durante
a ausência do Padre Gasheen, e a Palavra de Deus se propagou e foi glorificada.
Quando afinal ele voltou à sua paróquia, o partido da Bíblia, e a influência da
Bíblia, eram já tão grandes e firmemente estabelecidas que ele não podia vencê-las,
apesar de todos os esforços que empregou para este fim. Uma ou duas vezes ele
conseguiu que fossem feitos pequenos distúrbios, mas estes foram prontamente
reprimidos pela prudente firmeza de Miguel e seus amigos, e dali em diante a Reforma Bíblica progrediu sem
interrupção, dirigida por nosso jovem amigo Connell, que ao passo que crescia
em idade, crescia em sabedoria, e em favor diante de Deus, e dos homens.
Afinal foi-lhe permitido regozijar-se na
conversãode todos os membros de sua família. Isabel, era a última a render o
seu coração ás influencias daquela graça que traz a salvação. Mas a submissão era
sincera e inabalável, uma vez que foi feita.
Desde o começo o bom Sr. Bentley tinha
observado com a maior solicitude o progresso desta singularmente interessante
reforma. Notou com devota admiração os simples meios que Deus tinha empregado para
realizá-la, e resolveu nunca perder ocasião de travar conversas sérias com os
que estivessem dispostos a ouvir, e lembrar-se mais praticamente do preceito: “Semeia
de manhã a tua semente, e de tarde não cesse a tua mão de fazer o mesmo; porque
não sabes qual das duas antes nascera: se esta ou aquela; e ou se ambas
crescerão igualmente bem.”
Ele resolveu mais e mais depender na eficácia
do Espírito de Deus acompanhando a Palavra divina, e fazer o que podia para estender
o conhecimento daquela verdade, que é como, “uma fonte d'água, que salta para a
vida eterna.” Ele procurou uma quantidade de Novos Testamentos, e forneceu a todas
as famílias na vizinhança dos Carrisforths
que de qualquer maneira os quisessem receber, e tinha
a satisfação de saber que eles concorreram muito para aumentar e estimular o
sentimento religioso da comunidade, e ministraram a muitos ardentes inquiridores
pela verdade uma base sólida e segura em que edificassem uma firme fé
religiosa, em vão o Padre Gasheen irritou-se, proibiu, denunciou, e ameaçou; a
verdade que torna o homem livre tinha sido revelada entre aquele povo, e foram
se tornando verdadeiramente livres, na liberdade dos filhos de Deus.
O progresso do movimento religioso, do qual
esta
“Bíblia
emprestada” era a origem e instrumento, desenvolveu em nosso jovem amigo
Connell dotes de uma ordem pouco comum; os quais associados com um zelo
acertado e maneiras simpáticas, pareciam combinar elementos especiais de
utilidade e adaptação para a vida pública. Pela recomendação cordial, pois, do
Sr. Bentley, e o livre consentimento de seus pais, ele entrou em um curso de
estudos preparatórios para o ministério do Evangelho, e em poucos anos começou
seus trabalhos como um embaixador de Cristo. Por mais de vinte anos trabalhou
no serviço de seu Mestre com uma diligência e prudência que foram premiadas com
abundante sucesso. Aos pobres e humildes entre seu próprio povo ele dirigiu
principalmente seus esforços; e destes foi colhida uma grande seara de almas regeneradas,
as quais um dia resplandecerão como o sol no reino de seu Pai, posto que desconhecidas, desprezadas, ou menoscabadas na terra.
Porém, os que querem viver piamente em
Jesus Cristo, padecerão perseguição.” Deus muitas vezes permite que seus servos
mais devotos e fiéis sofra as mais cruéis provações, e por meio de muita
tribulação os conduz à herança dos santificados. Assim era com o nosso amigo
Connell Carrisforth. Havia ocasiões durante seu ministério em que ele podia quase
literalmente ter adotado a descrição que S. Paulo dá das tribulações e perigos
que o cercavam. Vide 2 Cor. 11:26, 27. A igreja romana tentou tudo quanto podia
fazer para frustrar seus esforços e subverter a influência da Bíblia que ele
tanto exaltava: opuseram-se-lhe todos os obstáculos. que a malícia podia
inventar ou a astúcia descobrir; porém ele prosseguiu tranquilamente em seus
deveres, lembrando-se de que a ira do homem será para o louvor de Deus, como de
fato ele o realizou. Aflições e perdas eram entre os meios mais sensíveis pelos
quais o Pai dos espíritos elegeu provar a constância de seu servo. Um por um,
os membros de sua família, que amou tão ternamente, e, que agora mais do que
nunca lhe eram queridos quando podia dizer: “O teu povo é o meu povo e o teu
Deus é o meu Deus.”, passaram da terra, até ele só ficou, — e contudo não
estava só, porque foi-lhe realizada a promessa: “Eis que estou convosco todos
dias, até a consumação do século.”
Queira Deus que o seu exemplo sirva para
animar a todos os fiéis, que lêem esta história, nas tribulações, contrariedades
e perigos de sua peregrinação, que os estimule a maior constância e zelo nos
trabalhos e esforços para o bem espiritual de seus semelhantes e confirme-os no
propósito de manter uma boa profissão de sua fé em seu Salvador Jesus Cristo.
Imprensa
Evangelica. Vol. VII, Nº 10.
Rio de Janeiro, 20 de Maio de 1871, p. 75-76.
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