O PODER DA VERDADE Ou a Bíblia emprestada: Sara H. Browne



     

O PODER DA VERDADE
Ou a Bíblia emprestada
(The Borrowed Bible)
Author: Sara H. Browne

      Miguel Carrisforth pertencia à melhor classe dos rendeiros islandeses no condado de S... Cultivava algumas férteis geiras de terra, com tanta perícia, esmero, ciência, proveito e economia que suas colheitas eram mais belas e abundantes do que as da maior parte de seus vizinhos. Verdade é, que, a cultura de Miguel foi muito falada, e seus frutos sempre foram procurados, e alcançaram o maior preço no mercado.

    Ele desejava ser bom homem, segundo seu modo de entender o que isto significa. Ele pagou os rendimentos e impostos prontamente; cuidava bem em sua família, era marido bondoso e pai indulgente. Ele ia para a igreja aos Domingos e dias de festa, guardava a quaresma, não comia carne nas Sextas-Feiras e confessava-se uma vez cada ano.

    Com esta conformidade exterior, ele estava inteiramente satisfeito — recebendo como milhares de outros, as doutrinas, e observando as cerimônias da igreja romana, com a maior indiferença, mas sem questionar ou criticar.

    Sua mulher, Izabel, pelo contrário , era imbuída profundamente nas superstições religiosas de seu povo.
Ela tinha muita reverência pelo caráter sacerdotal, cegamente atribuindo-lhe todo o poder e santidade, que, há tanto tempo ele tem tido a presunção e impiedade de arrogar para si. Ela estava persuadida em seu coração, que a igreja católica romana possuía os únicos verdadeiros meios da salvação e graça de Deus, e na realidade, compadecia-se daqueles que estavam fora de seu grêmio, e orava por eles. Ela confessava, como grande transgressão, a menor falta em cumprir com as regras prescritas; e com fervor procurou restaurar-se ao favor do céu e de seus diretores espirituais pelas mais rigorosas penitencias. E do mesmo modo procurava educar seus filhos inculcando em seus corações os sentimentos e a fé, que eram tão altivamente dominantes em seu próprio coração.

       Podíamos, agora falar destes e muitos outros princípios e práticas perniciosas da igreja romana; mas desejamos antes deixar que nossa pequena historia conte sua própria moral aos jovens leitores. Bastante tem
sido escrito para expor e condenar estas inúteis e nocivas doutrinas, que tem aplacado os temores o estimulado as falsas esperanças de milhares sobre milhares, até que afinal, seus pés tropeçaram nos montes tenebrosos, e a luz da eternidade revelou seu terrível erro.

     Passaram-se anos, e Miguel e Izabel já eram pais duma bela família de robustos filhos e filhas. Miguel orgulhava-se de ver que foram bem vistos e gabados por todos, em razão de suas limpas e coradas faces, nítido vestuário, e maneiras respeitosas.

       Izabel apreciava mais que tudo os encômios do pároco, Padre Gasheen, por sua pontualidade e bom procedimento na igreja; e pela prontidão com que recitavam o catecismo, o credo, e as orações.

      Era a Connell, o mais velho, que ele sobre tudo, elogiava, e prodigalizava altos louvores. Connell era de fato, um menino particularmente atrativo e inteligente, e, visto as poucas vantagens de que gozava, notável por sua inteligência e instrução. Na escola paroquial ele era sempre o primeiro em sua classe, e não raras vezes, mostrou-se igual ao mestre mesmo. Porém sua disposição era tão dócil e amável, que era bem quisto de todos, e sua superioridade e conhecimentos não excitaram contra ele inveja nem má vontade.

       Quando chegou à idade de quinze anos, era alto, robusto e vigoroso, e seu espírito ativo e ardente correspondia com seu lindo corpo. Podia trabalhar todo o dia, na granja, sem cansar-se e antecipar algumas horas vagas da noite, para se recrear com sua pedra, seus livros e jornais.

     Nas casas das pessoas de sua condição na Irlanda, os livros não se acham em abundância; mas por meios inteiramente inexplicáveis aos outros da família, o jovem Connell conseguiu fornecer-se de leitura. Dotado de muito boa memória, em pouco tempo ele tornou-se um prodígio de conhecimentos na aldeia. Ele foi reputado inteligente e sábio, e desejava provar que mereceu este conceito.

      Já na idade de quinze anos, não gostava de dizer “não sei”, sobre qualquer assunto ordinário.

     Mas seus estudos todos foram feitos nas horas vagas, ou nas ocasiões em que outros rapazes de sua idade costumam gastar em divertimento. Connell trabalhava com diligência na lavoura junto com seu pai e irmãos. Sabia arar, semear e segar. Ele foi para o mercado e era muito apto em toda a sorte de negócios, que pertenciam a sua ocupação. Era ele que fazia as contas; e, sendo hábil em calcular, era muitas vezes encarregado com os negócios pecuniárias da família, — como comprar, vender e trocar.

       Tinha principiado o tempo da ceifa; e o primeiro trigo maduro tinha sido já segado, as frutas temporãs e hortaliças estavam prontas para o mercado. Um dia de manhã tudo estava em movimento na casa dos Carrisforths. A mãe e as filhas levantaram-se de madrugada, umas para tirar o leite, outras para fazer a manteiga e outras para aprontar o almoço bem cedo.
Miguel e seus filhos encheram o carro para o mercado com os vários produtos dos campos e do jardim. Tudo estava pronto antes de almoçar, e logo depois, Miguel e seu filho partiram para o mercado da cidade mais próxima; — Miguel para fazer as cobranças, e Connell para vender o que levavam no carro.

Imprensa Evangelica. Vol. VI, Nº 19.
Rio de Janeiro, 17 de Setembro de 1870, p. 150-151.
    Connell estava acostumado ao negócio, e em pouco tempo tinha disposto vantajosamente de suas hortaliças, manteiga, queijo, etc. Muitos homens que passavam pelo mercado saudavam afavelmente o rapaz, mesmo quando não tinham negócios com ele, porque sua probidade e porte varonil, tinham sido antes notados e apreciados como alguma cousa desusual em um rapaz de sua idade e condição. Sua aptidão em calcular, e sua exatidão nas contas, tinham sido muitas vezes notadas. Um indivíduo chamado o Senhor Bentley, tinha por algum tempo, contemplado o rapaz com interesse. Ele tinha uma quitanda de hortaliças, e muitas vezes tinha negociado com Miguel e seu filho, e sempre gostava de conversar com Connell quando seus negócios o permitiam. O Senhor Bentley era um bom homem, Protestante e Cristão muito ardente.

     Neste dia Connell teve a fortuna de vender todos os seus gêneros ao Senhor Bentley, com quem ele preferia negociar mais do que com qualquer outro no mercado. Aconteceu que o Senhor Bentley estava muito ocupado com os fregueses quando pagou a conta, e Connell examinando a conta e o dinheiro, logo descobriu que tinha recebido alguns mil réis demais.

      Esperou até que o Senhor Bentley estivesse desocupado e aproximando-se dele, disse respeitosamente: “Senhor, este dinheiro não está bem certo. Tenha a bondade de ver por si mesmo.”

    “Não está certo! Como é isso! Não lhe paguei bastante? Deixe-me ver a conta outra vez.”

        Connell lha apresentou, e depois sorrindo entregou-lhe o dinheiro. “Há um erro, Senhor, como verá, aqui estão doze mil réis e duas patacas, e a conta chega somente a dez mil réis. Creio que a diferença é a seu favor.”

       O Sr. Bentley mostrou-se muito agradecido.

       “Uma pequena diferença a meu favor! É verdade. Bem! Não esperava um erro destes. Meus fregueses não estão acostumados a mencionar tais erros, mas se fosse o contrário estaria certo de sabê-lo logo. Dois mil réis e duas patacas! Bem! Não me admiro que eu faça erros de vez em quando. Mas como senhor o descobriu e tão honradamente mo participou dou-lhe o direito à diferença.
    “Não, senhor, eu lhe agradeço,” disse Connell resolutamente. “Não quero receber recompensa por fazer somente o que é justo. Faça o favor de guardar o restante.”

     O Sr. Bentley ficou ainda mais admirado; e tomou o dinheiro porque viu que o melindre do rapaz seria ofendido se ele recusasse. Mas determinou aproveitar a ocasião para aprender alguma cousa de sua história e esperanças pelo futuro.

     Convidou, pois, Connell a assentar-se; e nos intervalos de servir os fregueses fez-lhe muitas perguntas, que elicitaram um grau de bom senso, conhecimento e inteligência inteiramente inesperados. Soube dele quão poucas eram as vantagens intelectuais de que gozava, e quais os meios de sua instrução religiosa, e levou-o pouco a pouco, e de uma maneira delicada a manifestar seus sentimentos, esperanças, planos e desejos.

    “Bem, meu rapaz,” continuou o Sr. Bentley, “Vejo que você é capaz de tornar-se um homem prestante e útil no mundo. Não gostaria de fazer muito bem a seus semelhantes antes de morrer?”

     “Sim, senhor, gostaria muito”, respondeu Connell, seus olhos brilhando com esta nova ideia. “Como posso fazer isso? Faça o favor de mo dizer, senhor.”

     “Tem grandes talentos que muito vos ajudarão, mas ainda falta-lhe uma cousa da maior importância.”

      “O que é isso senhor? Desejo muito sabê-lo,” disse
Connell modestamente.
     “A religião,” respondeu o Sr. Bentley com solenidade. “Precisa de um novo coração, e a graça de Deus que traz a salvação.”

     “Oh! Eu já sou cristão, senhor. Já fui batizado, e...”

      “Eu lhe compreendo perfeitamente, meu jovem amigo. Quer dizer que é cristão no sentido católico Romano. Nós protestantes cremos que ninguém é cristão, senão aquele que tem recebido a graça de Deus por si mesmo, em seu coração, e com verdadeiro arrependimento pelo pecado, se abraça com Cristo pela fé como seu único Mediador e Redentor. Pensa que na realidade tem feito isto Connell?”

      Connell achou difícil responder a esta pergunta inesperada, e o Senhor Bently proseguiu.

   “O Cristão além disso, deve fazer a regra de sua crença, aquele ensino puro e simples que Cristo veio nos trazer. Tem já lido a Bíblia meu rapaz?”

     O Senhor Bently tinha falado com o fervor e a ternura, que totalmente desarmam os prejuízos e a oposição. Connell pôde somente responder que ele nunca tinha visto uma Bíblia.

     “Julguei isto provável, disse o Senhor Bentley, e agora, porque é assim? Diga-me, se pode, porque este depósito precioso de verdades divinas, este diretório simples e belo da fé e esperança humanas, devia ser tão ansiosamente vedado ao vulgo por seus sacerdotes e prelados?”

     “Não podemos entendê-lo, Senhor. Somos por demais ignorantes — os padres nos falam acerca dele e nos explicam o que é preciso que nós creiamos.

     “Será verdade que eles o fazem?” Disse o Sr. Bantley. Duvido muito. Eu assim pensava outrora — fui criado nessa crença; mas quando finalmente li a Bíblia por mim mesmo, achei que tinha sido enganado e iludido. Gostaria de ver uma Bíblia?

       “Sim senhor, muito,” respondeu Connell avidamente.

        “E se a tivesse, lê-a-ia?

         “De certo, Senhor, estimaria muito examinar a
Bíblia por mim mesmo.”

          “Bem tenho só uma, e ela me custou caro, mas se promete lê-la toda, com sinceridade e atenção vo-la entregarei. Não vo-la dou para que ninguém a possa destruir, porque bem sei como os padres opõem-se a sua circulação; e isto não me admira porque onde a Bíblia é conhecida, seu poder e influência acabam-se. Digo que lhe emprestarei minha Bíblia preciosa; e quando a tiver lido traga-ma.”

     Connell prometeu que a leria com atenção, guardaria bem, e não se esqueceria de trazê-la a seu dono.

    O Sr. Bentley então tirou de uma escrivaninha uma Bíblia, ainda que muito usada com tudo bem preservada, e a entregou ao rapaz.

     Ele a recebeu com um sentimento de reverência, e embrulhando-a em papel limpo, a pôs no fundo dum cesto em que vieram as hortaliças para o mercado.

     Ele apenas tinha feito isto quando seu pai chegou à porta com o carro, e partiram juntos para casa.

    Connell esperou até que toda a família se deitasse para tirar a Bíblia do cesto.

     Ele conhecia muito bem a antipatia violenta de sua mãe para com tudo que cheirasse a Protestantismo, para se expor ao perigo ainda que seu pai não se importasse; e como costumava ocupar as noites em ler, sabia que este modo o tempo de indagação, não causaria nem surpresa nem inquirição.

     Poucos de nossos jovens leitores, que sempre possuíram Bíblias, podem apreciar o estado de espírito com que nosso amigo Connell assentou-se ao fogo da cozinha e arranjou a lenha meio queimada procurando melhor luz para examinar a sua Bíblia.

     A luz é fraca e vacilante, mas serve para lhe mostrar que tem um livro mui maravilhoso.

    Depois de ler o título, o prólogo, e o índice, como se devia sempre fazer para ter uma idéia clara do plano e desígnio dum livro; ele entra no texto sagrado e fica admirado pelo modo sublime com que o historiador sagrado começa:

     “No princípio criou Deus o Céu e a terra. A terra porém era vã e vazia; e as trevas cobriam a face do abismo.” Gen. 1:1, 2).

Imprensa Evangelica. Vol. VI, Nº 20.
Rio de Janeiro, 1 de Outubro de 1870, p. 158-159.
     Connell continuou a ler adiante com admiração e interesse sempre crescentes. Quando tinha acabado a história da grande obra da criação, parou e deu um profundo suspiro. “Pois este é o modo porque o mundo e todas as cousas foram feitas,” disse ele consigo. Quão grande e poderoso ente deve ser Deus!

     Eu nunca soube isto antes, senão por ouvir dizer; por que devia ser escondido de nós? Por que não devemos lê-lo por nós mesmos, e sabê-lo todo em lugar de ouvirmos de vez em quando uma simples noção dele, tal qual os padres nos querem dar?

     Continuou a ler. O fogo ia-se acabando. Ele acendeu uma vela e prosseguiu rapidamente. A primeira transgressão, a expulsão do Paraíso, o assassino de Abel, e o desterro de Caim, o dilúvio, a edificação de Babel, a história de Abraão, etc. prenderam-lhe de tal modo a atenção, que ele não reparou como iam passando as horas da noite. A vela ia-se gastando cada vez mais, e finalmente expirou no castiçal. Connell deu um salto com isto, e olhou ao redor de si; o primeiro raio da madrugada vinha aparecendo. Ele procurou silenciosamente sua cama no sótão afim de dormir um pouco antes que os outros na casa acordassem. O conteúdo, porém, do livro admirável que tinha estado lendo com tanta atenção, de tal maneira ocupava seus pensamentos que não lhe era possível conciliar o sono. Depois de fechar seu tesouro em seu próprio pequeno baú, desceu para começar os deveres ordinários do dia.

    Era duro e exigente o trabalho da ceifa durante todos aqueles longos e quentes dias de Agosto e Setembro. Ela chamou o lavrador bem cedo de sua cama e mandou-o para ela de noite, tarde e cansado. A casa de Miguel Carrisforth, não deu abrigo a ociosos nesse tempo tão ocupado. E ninguém trabalhou com melhor vontade, ou diligência mais perseverante, do que o jovem Connell, dia após dia, enquanto era empregada uma grande parte da noite à maneira já indicada.

     Assim passou o tempo da ceifa e o outono — mas muito antes de seu fim, Connell tinha acabado a leitura de seu admirável livro.

      Parece, como já foi observado, que os romanos bem sabem o efeito que a livre difusão da Bíblia entre seu povo devia produzir. Tão certos estão eles deste efeito, que pouco nos deve admirar o cuidado cioso com que está vedada ao vulgo, estando assim guardando uma grande avenida à liberdade, luz e ciência religiosas. “A exposição das Tuas palavras alumia” diz o Salmista, (Sl. 118:130), e eles bem sabem que a declaração é verdadeira.

       Em um coração como o do jovem Connell Carrisforth, as sementes da verdade assim semeadas, não podiam ficar por muito tempo dormentes. Produziram nele um mar de dificuldades, dúvidas e incertezas. “Se este livro é verdadeiro,” disse ele, e com razão, “se ele é realmente a palavra de Deus, se estas são deveras as doutrinas e os deveres que o bendito Jesus veio ensinar, então temos sido enganados; porque temos sido ensinados bem diferentemente — temos sido instruídos a crer em cousas e conformarmo-nos com ritos e observar cerimônias, que não só não são mandados aqui, mas mesmo não são permitidos. Não sei como é — estou em grande perplexidade— talvez não compreendo bem; mas uma cousa sei, que se esta é certa, então nós estamos em erro. Isto não padece dúvida. Como porém posso eu averigua- lo”? Hei de perguntar ao Sr. Bentley. Ele pode-me dizer alguma cousa mais sobre o assunto. Porém ele é protestante! Porque ir para ele? Minha mãe entende que os protestantes são gente má.”

     Aconteceu que o Sr. Bentley não apareceu, ou estava ocupado demais para conversar todas as vezes que Connell foi para o mercado por muitas semanas, e não tinha oportunidade alguma para falar com ele, como muito desejava : porque sentia que precisava muito de auxílio para resolver suas dúvidas e sossegar suas ansiedades.

     Outro sentimento começou a dominar seu coração. Se a Bíblia falava a verdade então tornava-se claro que Connell Carrisforth, era grande pecador diante de Deus. Não diz a Bíblia isto? Não declara que a todos pecaram e necessitam da glória de Deus.” (Rom. 3:23.) Não diz que “a alma que pecar, essa morrerá?”(Ezeq. 18: 4, 20.)

     Era esta convicção fixa e crescente que mais o perturbou. Fez com que ele se sentisse desgraçado e pouco seguro, e às vezes em angústia e desespero.

     O que podia fazer? Bom sabia o que a igreja romana prescreve em suas doutrinas de confissão e penitência e atos meritórios para o penitente: mas seja como for, virou-se com repugnância e aborrecimento de um sistema que não podia de maneira alguma satisfazer o seu caso.

     Foi abalada inteiramente sua fé no romanismo: porém ainda não tinha achado uma âncora para sua alma.

      Ainda não sabia o que era o protestantismo ou cristianismo.

      Uma espécie de vaga incerteza fez com que seus pensamentos ficassem em perturbação perpétua. Ele continuava a ler a Bíblia emprestada, e procurava aprender seu sentido; e quanto mais lia tanto mais convencido ficava da diferença entre seu ensino, e o da sua igreja. Qual destes, pois tinha razão? Qual estava em erro? Qual o verdadeiro? Qual o falso? Por que ambos não podiam ser bons?

Imprensa Evangelica. Vol. VI, Nº 21.
Rio de Janeiro, 15 de Outubro de 1870, p. 163-164.

      O estado inquieto de seu espírito, principiou a mostrar- se no rosto de Connell. Tornou-se pálido e magro e ia perdendo as forças e o apetite. Isabel era mãe boa e terna, e começou a assustar-se da mudança em seu filho, e julgando que ele tinha sido sobrecarregado de trabalho, insistiu que ele devia ter tempo para recobrar as forças. Connell protestou que estava bom, e não precisava de recreação; ele gostaria mais trabalhar como estava acostumado. Isto nada valeu com Isabel.

       “Ora menino não vale a pena ficar lá questionando. Não heis de trabalhar hoje. Agora ide descansar e divertir-vos!”

       “Mas, mamãe, as batatas —

        “Eu e as meninas iremos cuidar das batatas antes de deixarmos-vos fazê-lo, querido Connell,” interrompeu a bondosa Isabel com decisão. “Estais incomodado, ou não haveis de parecer tão descarnado. Ide para o pátio ou para onde quiserdes.”

      Connell sorriu-se, e ia oferecer mais algumas objeções. Isabel, porém bateu com o pé.

       “Nem mais uma palavra, nem uma palavra mais! Sei melhor do que vós mesmo como deveis parecer! Não tenho eu vigiado aquele vosso rosto desde que não estava maior do que a palma de minha mão? Não vale a pena dizer mais uma palavra; mas eu digo: Ide divertir-vos até que a cor volte às faces e a luz aos olhos. Sai, digo-vos!”

      Connell porém moveu-se com relutância para obedecer o seu mando. Desejava ardentemente dizer-lhe que era o espírito e não o corpo que precisava de remédios e descanso. Sabia, porém muito bem que isto só provocaria sua mais severa censura e indignação. Por isso resolveu-se ainda guardar seu segredo, e obediente saiu da casa. Mas um dia livre de trabalho não trouxe, como podemos bem supor, a menor exempção do pesar interior. Antes o sujeitou mais direta e constantemente a seu poder; e Connell quanto menos tinha que fazer, mais aflito se tornou.

    “Como posso gozar-me,” disse ele consigo, assentando-
se sobre uma pedra ao lado da estrada. “Oxalá! que eu nunca tivesse visto a Bíblia! Era feliz antes, e alegre todo o dia. Agora, oh, como tenho de pensar e pensar sem parar! Quão miserável me faz, e então ter pressentimentos tão terríveis “depois da morte o juízo!”Oh, temo que hei de cair na perdição dos ímpios. De certo não tenho feito nada senão pecar, pecar, pecar, toda a minha vida! Oh para onde irei, ou o que farei?”

      As lágrimas caiam dos olhos do pobre Connell, mas logo ocorreu-lhe aquele belo e animador convite do querido Salvador: “Vinde a Mim todos os que andais em trabalho e vos achais carregados, e Eu vos aliviarei.Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de Mim que sou manso e humilde de coração, e achareis descanso para as vossas almas.” (S. Mat.11 : 28, 29)

   “Isto é o que preciso, isto é o que quero!” disse ele, levantando-se com um pulo: “mas como, como irei, e para onde!”

   Neste momento ele ouviu vozes num campo próximo, e logo um homem atravessando a cerca, entrou na estrada real perto dele, o passou adiante sem o ver.

   “Lá vai o Padre Gasheen, e deixou cair um embrulho ao passar da cerca. Apressar-me-ei, e lho entregarei antes de ele dar falta.”

    Connell pegou no pequeno embrulho, que parecia ser um livro, e foi à pressa atrás do Padre Gasheen. Em poucos minutos o alcançou.

     “Isto é do Senhor?” perguntou-lhe, tirando o chapéu com respeito e estendendo o pacote.

       “Oh! Connell Carrisforth! Como está? Sim, sim, este pacote é meu! Onde o achou, meu filho? É muito bondoso, muito, na verdade!”

    “Vi-o cair quando o Senhor Padre passava por cima da cerca,” respondeu Connell, entregando-o ao padre.

     “Sou-lhe muito obrigado. Sentiria deveras ter perdido
minha Bíblia.”

      “A Bíblia,” repetiu Connell, pois a palavra era elétrica para ele. “Oh, estou muito contente de ter podido restituí-la ao Senhor!”

      Alguma cousa no tom ou nas maneiras do moço, ao dizer ele estas palavras, fez com que o Padre Gasheen olhasse mais atentamente para seu rosto. Padeceu-lhe haver uma expressão desnatural.

       “Está incomodado hoje, não é assim, meu filho?” perguntou o Padre benignamente.

        “Estou bom, Senhor, mas...” Connell hesitou. O Padre Gasheen tornou a observá-lo com muita atenção.

        “Mas que, Connell? Alguma cousa vai mal convosco hoje. Diga-me o que é. Pareceis doente! O que vos incomoda, meu filho?

Imprensa Evangelica. Vol. VI, Nº 22.
Rio de Janeiro, 5 de Novembro de 1870, p. 174.
     O padre Gasheen falou com ternura, e o nosso pobre moço ficou muito comovido. Não pude mais reprimir suas emoções por tanto tempo abafadas. Desfez-se de novo em lágrimas, e pondo a mão sobre o coração, respondeu: “Estou perturbado aqui senhor!”

     O Padre ficou pasmado. Era caso novo achar um de seu rebanho em tal estado. Nunca antes tinha conhecimento dum exemplo semelhante.

      “O que quereis dizer, Connell? Quase não compreendo. O que tendes feito? Deveis vir à confissão! Estou certo que um rapaz tão bom como vós, não pôde ter cometido pecados muito graves. Vinde, meu filho; a nossa santa igreja achará meios bem prontos para confortar e alegrar vosso coração.”

      E o Padre Gasheen levou-o sem resistência para dentro da sua casa, a qual tinham já chegado.

       “Agora, assentai-vos, meu menino, e contai-me tudo
O que é que vos perturba?”

         Connell, porém, não respondeu. Não sabia como principiar.

          “Já tendes idade bastante para a confirmação,” começou o Padre Gasheen, depois de esperar por alguns minutos. “Acho que o cumprimento daquele dever há de concorrer para vosso conforto. Suponho que quereis fazer o que outros cristãos fazem. Não é assim?”

      “Quero antes ser cristão, para poder obrar como cristão,” respondeu Connell, com modéstia.
       “Sim, muito bem, meu querido, mas fostes batizado na infância.”

        “Temo que não sou cristão, ainda que fosse,” persistiu Connell. “Tenho consciência e certeza disto,
Senhor.”

          “Mas não supondes que nós sabemos melhor a respeito disto? A igreja declara. — ”

           “Mas o que diz a Bíblia a este respeito, Senhor?” interrompeu Connell com mais coragem.

            “A Bíblia, Connell, a Bíblia! repetiu o padre Gasheen, abrindo seus olhos com espanto: “o que sabeis vós da Bíblia?”

             “Já a li, Senhor, toda”, respondeu ele.

           O rosto do padre perdeu num instante a expressão branda. Parecia pasmado e ofendido, mas guardou silêncio por alguns minutos, olhando fitamente para seu jovem companheiro. Enfim falou em tom mudado e austero.

           “Que qualidade de Bíblia é que tendes lido, e onde a achastes?”

           Connell sabia que tinha dito tanto, que agora o silêncio não lhe valeria nada, e resolveu falar francamente.

            “Não quero dizer como a obtive, Senhor, mas a Bíblia era Protestante.”

   “Vossos pais sabem disto, Sr. moço ?” perguntou o padre Gasheen severamente.

   “Não, Senhor. Nunca contei a ninguém, senão ao
Sr. mesmo.”

     “Nisto tendes feito bem”, respondeu ele. “Sim tendes
feito bem em vir para mim, e não estranho mais a sua inquietação de espírito. Aqueles que se desviam cega ou presunçosamente, do aprisco seguro, acham abrolhos e espinhos, se não lobos ferozes, prontos para estragar ou destruir. Meu filho, porque fizestes assim? Quem vos tem seduzido os pés do caminho do dever? Vós, em quem tanto tenho confiado! Vós, que tendes sido instruído tão fielmente por uma pia mãe. Não esperava isto de vós, Connel Carrisforth!”

      “Mas quero mais instrução, Senhor,” respondeu Connell com fervor. “Quero saber o que é a verdade, e onde posso achá-la. E sinto-me, obrigado a dizer, e digo-o com toda rever~encia e respeito para com o Sr. Padre, que se a Bíblia é verdadeira, algumas das doutrinas e dos usos de nossa igreja, são errados.”

    Esta era uma atitude corajosa para um rapaz como Connell tomar: e ele logo o percebia pelo efeito que produziu no padre.

   “Isto é muito atrevimento” disse o padre irado; “e não o hei de permitir. Heis de deixar deste modo de pensar e falar, e voltar para vosso dever! Heis de entregar-me vossa Bíblia ! Heis de dizer-me por que meios ela veio às vossas mãos, e quem tentou afastar-vos da fé verdadeira ensinada unicamente pela santa igreja católica.”
      Por um instante estava Connell dominado pelo tom de autoridade com que o padre Gasheen proferiu estas palavras, e seus olhos se abaixaram ante seu olhar indignado. Desde os mais tenros anos tinha sido ensinado a venerá-lo, e até quase considerá-lo como um ente superior. É assim em todos os países e comunidades em que o romanismo tem o predomínio.

      Os padres têm uma influência quase ilimitada sobre o povo, que é levado a crer que eles são os sucessores diretos de Cristo e dos apóstolos, e estão, por conseguinte, revestidos de grande santidade tanto como de poder. Mas nosso jovem inquiridor pela verdade não podia ser assim frustrado, nem por muito tempo desanimado. Fitou os olhos diretamente na face carregada e sombria do padre Gasheen, e respondeu:

     “A Bíblia não é minha senhor: não posso entregá-la a ninguém senão ao dono, cujo nome não posso proferir. Não desejo, Senhor, desviar-me da fé verdadeira. Estou unicamente procurando saber qual é a verdadeira fé, e como posso achá-la. Sinto-me peccador, em perigo da morte eterna, e venho vos perguntar, Sr. Padre, o que hei de fazer para me salvar?

     Connell, disse isto com ar solene e ansioso, e o Padre Gasheen julgou melhor tratá-lo com menos severidade. Era evidente que o moço estava num estado crítico de espírito — talvez seria melhor usar da persuasão em lugar de autoridade ou ameaças. Sabia que Connell era um rapaz de espírito, e de susceptibilidades delicadas — talvez não fosse prudente exasperá-lo no princípio.

    “É fácil dizer-vos isto, meu filho. Estimo saber. Estimo saber que sentis assim. Nossa santa igreja recebe todo o penitente com os braços abertos. Sois mandados reconciliar-vos com ela por contrição, confissão e satisfação, e recebereis a remissão de vossos pecados, por mais graves que sejam.”

      “Mas não compreendo o que o Senhor quer dizer. O que é contrição?”

    “É sentir tristeza pelo pecado cometido, odiá-lo e fazer um propósito de nunca mais pecar. É estar pronto para espiar as culpas pelas penitências que o padre prescrever; e para que este possa julgar do caso, deve ter conhecimento dessas ofensas — daqui a necessidade da confissão. Nenhum pecado cometido depois do batismo pode ser perdoado de qualquer outro modo”.

    “Mas quem me salvará? Quem me assegurará do perdão?” perguntou Connell ansiosamente.

“Parece-me que tendes esquecido o catecismo. Não, diz ele: No ministro de Deus que se assenta no tribunal da penitência, como seu juiz legítimo, o penitente sincero venera o poder e a pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo; pois o padre representa o caráter, e preenche as funções de Jesus Cristo. E em outro lugar em nossos cânones declara-se, que em virtude de sua consagração, o padre se torna intérprete e mediador entre Deus e os homens. Vedes, pois, que o padre pode fazer muito pelo pecador penitente, se este continuar fiel em seus deveres. Pode contar também com a intercessão de Cristo, da Santa Virgem, e dos Santos, quando pratica as penitencias em satisfação de seus delitos.”

     “Mas, Senhor,” disse Connell com voz trêmula, “diga-me primeiro, se a Bíblia é verdadeira! É o Novo Testamento a regra de nossa fé? Devemos crer e confiar nele?”

Imprensa Evangelica. Vol. VI, Nº 23.
Rio de Janeiro, 19 de Novembro de 1870, p. 179-180.
    “A Bíblia! respondeu o padre petulantemente. O que tendes vós que fazer ou dizer a respeito dela? Digo-vos que a Bíblia, é para o clero; e este tem de instruir o povo no que ensina, tanto em doutrina como em prática.

      Não faleis mais da Bíblia, Connell Carrisforth! Vosso maior pecado é terdes secretamente desobedecido as injunções da Santa Igreja, tendo nas mãos a que é proibida tão positivamente, e o que é mais, uma Bíblia Protestante.”

     Mas diga-me, Senhor, eu lhe rogo, se a Bíblia é verdadeira? Por que não acho nela nada sobre o modo de penitência e perdão, em que o senhor fala. Ela me diz que ha um só Mediador entre Deus e os homens, e que este é Cristo mesmo. Nada diz da penitência nem da satisfação da intercessão dos santos ou dos anjos ou dos padres — nada do poder da Virgem. Diz: “Porque assim amou Deus ao mundo que lhe deu a seu Filho Unigênito, para que todo o que crê Nele não pereça, mas tenha a vida eterna.”
(S. João 3:16.) Diz: “Não por obras de justiça que tivéssemos feito nos outros, mas segundo a Sua misericórdia, nos salvou, pela fé em Jesus.” (Tito 3:5.)
Diz-me—

     “Calai-vos, eu vos mando,” disse o Padre Gasheen em tom duro e imperativo. “Nada mais disto, nem mais uma palavra! Vejo que sois já contaminado pela heresia daquele livro corrupto. Se recusardes entregá-lo nas minhas mãos, e voltar a vosso dever pelo modo que hei de ordenar, julgarei ser o meu dever proceder contra vós como herege e cismático. Ouvis, Connell?”

    Connell ouviu, sim, e o sangue subiu-lhe às faces, e até à testa. Temia o padre, porque assim, tinha sido instruído a fazer, e não podia de uma vez, despojar- se dos sentimentos com tanto cuidado insinuados no seu coração infantil. Mas aqueles sentimentos iam perdendo seu poder sobre ele. A verdade de Deus revelada em sua Santa Palavra já principiava a desfazer os laços do prejuízo e da superstição. Ia tornando-o livre.

    “Ouvis?” repetiu o padre mui irado. “Quereis submeter-vos as minhas ordens, ou não?

     O moço esperou ainda alguns minutos como irresoluto sobre o que devia dizer. O padre Gasheen pensou que o tinha vencido. Havia um cintilar triunfante em seus olhos pardos, que parecia dizer: “Eu sei bem sujeitá-lo!”

     “Respondei-me”, insistiu ele severamente.

      “Primeiro diga-me, Senhor, se a Bíblia é verdade,” replicou Connell, modesta, mas firmemente.

       Era resposta muito inesperada, e o Padre Gasheen percebeu mais claramente, que tinha um caso para tratar, que requeria toda a astúcia e todo o jeito que possuía. Seu primeiro impulso era enfurecer-se. Mas logo assentou consigo que seria melhor encarar o ponto que parecia tão importante ao moço com mais candura do que ao começo, queria mostrar.

    “É a Bíblia verdade?” Sim — não — principiou — não a que vós tendes lido. A única tradução da Bíblia digna de confiança é a Vulgata, que é sancionada pela Igreja e pelos padres antigos. Esta contém a verdade, e nenhuma outra a tem.”

   “Desejo ver um exemplar,” disse Connell. “Tenha
a bondade, Senhor, de me mostrar uma Bíblia Vulgata?”

     O Padre Gasheen ficou bem desconcertado; mas depois de hesitar por alguns minutos, foi a sua livraria e tirou um grande livro antigo, o qual deu a Connell sem dizer uma palavra. Este o abriu avidamente, mas logo achou que não sabia lê-lo. Era em Latim. Connell levantou os olhos desapontado.

      “É esta a Bíblia, Senhor? Não sei lê-la!”

       Sim! Este é o depositário dos mistérios sagrados da nossa santa religião. É assim que a igreja tem decretado guardá-los da familiaridade profana dos ignorantes,” respondeu o padre Gasheen.

      “Mas por que esconde a verdade do povo? Por que não deve ele ler e entender por si mesmo? A Bíblia diz, “a verdade vos livrará,” (João 8:32,) e nos manda examinar as Escrituras porque nelas estão as palavras de vida eterna. Não posso entender a razão da proibição, Senhor Padre.”

    “Nem vos é necessário estendê-la — isto pertence a vossos instrutores religiosos, não a vós.”

    “Mas desejo ler esta Bíblia, Senhor, e ver em quão
difere daquela que já li. O Senhor não tem uma Vulgata traduzida para o Inglês? Faça o favor de me emprestá-la por alguns dias.”

     O Padre Gasheen era bondoso por natureza, e o comportamento amável de Connell, juntamente com as suas instâncias ardentes começou a abrandá-lo muito.

    “Sabeis, meu filho,” disse ele depois de alguma reflexão sobre o pedido de Connell, “que é contrário às regras e à constituição de nossa santa igreja. Espero, porém que seja neste caso o meio de levantar um defensor hábil de suas verdades e doutrinas. É possível, Connel, que um dia sejais padre. Como gostareis de pregar o Evangelho?”

     “Quero conhecer a verdade — quero saber o que hei de fazer para me salvar!” respondeu o moço com lágrimas nos olhos. Não poderia ensinar aos outros, cousas de que eu mesmo estivesse em dúvida.”

      “Bem, meu querido, sois tão exigente que vos emprestarei este por alguns dias,” disse o padre, pegando no pacote que Connell tinha achado no caminho. Não a guardeis por muito tempo, e quando voltardes trazei-me a outra. Agora, lembrai-vos!”

      “Isto não posso fazer, Senhor. Aquela Bíblia não é minha. Não posso aceitar esta sob uma tal condição”, e Connell estava para deitar na mesa o livro, que acabava de receber do padre.
     “Pois bem veremos! Podeis examinar este livro, e dizer-me o que pensais dele.”

      Obrigadíssimo, Senhor. — é muito bondoso! Hei de cuidar bem dele, e trazê-lo quando o Sr. quiser; e agora, adeus, Senhor. Espero que não o incomodasse.

      O Padre Gasheen despediu-se dele benignamente à porta. Sentia-se convencido que uma natureza como esta devia ser atraído ao aprisco, antes que levado a força.

Imprensa Evangelica. Vol. VI, Nº 24.
Rio de Janeiro, 3 de Dezembro de 1870, p. 190-191.
        A excitação de sua entrevista com o padre Gasheen deu às faces de Connell uma cor viva que muito agradou a sua mãe, quando ele voltou para casa.

         “Vinde cá, meu coração, eu sabia que precisáveis somente de divertir-vos um pouco; e tereis só divertimento e nada mais, por toda esta abençoada semana! Nunca será dito que filho meu foi morto pelo trabalho!”

         Connel desejava demais aproveitar a ocasião para a leitura de sua Bíblia vulgata, para se opor muito ao plano de sua bondosa mãe.

    Ele começou naquela mesma noite, e leu como antes até quase ao amanhecer. De dia em dia continuava a leitura. No Domingo ausentou-se da igreja para poder ler; mas com toda a sua diligência não pode acabá-la no tempo marcado. Todavia leu e comparou bastante para descobrir que em algumas cousas era diferente da Bíblia protestante. Algumas delas significavam o mesmo em linguagem diferente; outras eram exatamente semelhantes. Algumas pareciam-lhe ensinar doutrinas e deveres aos quais o padre Gasheen dava pouca consideração, posto que pareciam a Connell muito importantes. Mas o estilo era estranho, o sentido muitas vezes além de sua compreensão. Não era tão simples e inelegível como a Bíblia do Senhor Bentley, e ele não podia deixar de admirar que alguém lhe desse a preferência. Enfim, quanto mais lia tanto mais ficava perplexo e incerto –

     “Oh! Se tivesse alguém para me ensinar!” disse frequentemente o pobre rapaz, fechando os livros desesperado, enquanto lhe caíam as lágrimas sobre as mãos enlaçadas. “O que farei? Não posso ver um só raio de luz, e torna-se cada vez mais escuro!”

     Então alguma preciosa e animadora passagem das
Escrituras Sagradas veio-lhe à memória.

    “E se algum do vós necessita de sabedoria peça-a a Deus, que a todos dá liberalmente e não impropera: e ser-lhe-á dada.” (S. Tiago 1:5).

    “Vinde a Mim todos os que andais em trabalho e vos achais carregados, o Eu vos aliviarei.” (S. Matheus 11:28).

     “Buscai, pois primeiramente o reino de Deus, e a
Sua justiça, e todas estas cousas se vos acrescentarão.
(S. Matheus 6:33)

    Connell sentia a beleza e conveniência destas e de outras passagens semelhantes, e já tinha decorado muitas delas para o tempo em que não teria uma Bíblia; (sabia que não podia guardar a do Senhor Bentley por muito tempo sem perigo;) mas contudo elas não lhe deram conforto algum. Tudo era névoa, dúvida, incerteza. Parecia-lhe que estava flutuante sobre um mar tempestuoso, sem carta, bússola, leme ou âncora. — longe da terra, coberto da sombria escuridão de meia-noite. Oh! Quanto sentia-se infeliz! Mas recorreu à origem da luz eterna, aquela fonte de vida espiritual da qual jamais voltará vazio ninguém que a procura em verdade.

       Aprendeu a orar nestes dias dolorosos, como nunca antes tinha orado.

        As fórmulas prescritas no catecismo, que lhe tinha sido ensinado a repetir desde a meninice, não exprimiam as necessidades de sua alma, posto que continham muitas petições apropriadas e belas. Nada, porém ainda ministrava a paz às aspirações e à inquietação de seu espírito. Havia uma falta que nada podia suprir — uma apreensão de perigo e desamparo que continuamente o agitava e assustava. O Espírito de Deus estava fazendo sua própria obra em convencer do pecado e em mostrar o estipêndio e o justo merecimento do pecado, tanto como a sua natureza. Connell sentia que era cousa terrível cair nas mãos do Deus vivo, que “não poderá olhar para a iniquidade. » (Hab. 1:13). — em cuja vista o próprios
“Céus não são puros.” (Jó 15:15). Sentia a necessidade de alguma cousa melhor do que as boas obras com que apresentar-se diante dele, — de uma mediação mais poderosa e segura do que a dos santos ou mesmo da Santa Virgem. Via o absurdo profano daquele sistema que atribuía mérito aos castigos corporais ou às observâncias cerimônias, e virou-se desesperado destes refúgios da mentira e da superstição. Mas nada estava claro ou certo; seu caminho estava obstruído, e não tinha ninguém para o aconselhar.

     Chegou de novo o dia do mercado. Connell ofereceu-se para ir, e a sua proposta foi aceita com muito gosto. Assentou consigo que seria prudente restaurar a Bíblia primeiramente emprestada, para que não caísse em mãos pouco escrupulosas quanto a sua disposição.

     Tirou-a do lugar oculto em seu pequeno baú, e a colocou com cuidado no carro; não, porém, sem lágrimas saudosas; e ao passo que os mansos cavalos caminhavam lentamente com o carro, aproveitou-se desta última oportunidade para lê-la ainda outra vez e imprimir mais profundamente na memória algumas passagens favoritas.

    Com grande prazer Connell achou o Sr. Bentley em seu lugar acostumado e sem estar muito ocupado. Depois de tratar dos negócios foi entregue a Bíblia a seu dono.

    “Mas porque quereis devolvê-la, meu jovem amigo?” perguntou o Sr. Bentley. “Tendes lido-a tão ingênua e fielmente como prometestes ?”

     “Sim, senhor, tenho na verdade,” respondeu Connell.

      “Tenho a lido toda por diversas vezes.”

      “E não quereis guardá-la por mais tempo?”

      Esta pergunta levou a uma explicação minuciosa. Com simplicidade infantil Connell lhe contou o efeito que a palavra tinha produzido em seu espírito — suas dificuldades, suas dúvidas, seus temores — suas entrevistas com o padre Gasheen.

     Não podemos narrar toda a conversação que se travou entre eles, mas foi tal que nosso novo inquiridor nunca só esqueceu dela.

Imprensa Evangelica. Vol. VI, Nº 25.
Rio de Janeiro, 17 de Dezembro de 1870, p. 194-195.
       O Sr. Bentley era um daqueles cristãos que de boa vontade perdem uma hora de negócio se a obra do divino Mestre o requer. Percebia o estado crítico do espírito do rapaz, e como Priscila e Áquila noutro tempo fizeram a Apolo de Alexandria: o levou consigo e lhe declarou mais particularmente o caminho do Senhor. (Atos 18:26). Aplainou-lhe as suas dificuldades e resolveu-lhe as suas dúvidas.

      Mostrou-lhe o plano simples e belo do Evangelho sobre a salvação — Jesus, o caminho, a verdade e a vida. João 14:6, o qual foi o mesmo que levou os nossos pecados o justo pelos injustos para nos oferecer a Deus. 1ª Pedro 3:18; que, “foi ferido pelas nossas iniquidades, foi quebrantado pelos nossos crimes. O castigo que nos devia trazer a paz caiu sobre  Ele e nós fomos sarados pelas Suas pisaduras. Is 53:5

      Brandamente o levou ao pé da cruz e pediu-lhe que depusesse aí a sua carga de pecado e delito. Aí e só aí se acha o médico e o bálsamo que podem sarar a chaga pestilenta do pecado. Eles conversaram muito tempo, e pelo auxílio das exposições claras e bem dirigidas do Sr. Bentley, o glorioso plano da livre graça e redenção mostrou-se da escuridade confusão das opiniões contraditórias e das investigações especulativas. Viu que um grande sacrifício foi feito uma só vez e para sempre, e que sua graça pode ser recebida somente pela fé. Desembaraçado das formalidades e dos absurdos do romanismo, esta verdade preciosa penetrou em sua alma o encheu perfeitamente o vácuo que lá havia. A resposta que saiu do íntimo de seu coração foi sim. Senhor, eu creio; ajuda tu a minha incredulidade S. Marcos 9:24. Seu coração saltou de um gozo até então desconhecido para ele; e em sua volta para casa, ajoelhou-se no carro que ia vazio e entregou-se solenemente ao serviço de seu recém-achado Senhor o Salvador, e com insistência pediu sabedoria para que pudesse dignamente honrar seu nome em todas as circunstâncias e sob todas as sortes de provações e tentações.

     Tinha muita razão para esperar provações e tentações fortes. Pois sabia que tinha de lutar contra uma corrente de oposição em procurar afastar-se da sociedade e da influência daquele corrupto sistema de religião em que havia sido criado; e sentia a necessidade da força e da sabedoria de cima.

     O Sr. Bentley obrigou-o aceitar um Novo Testamento de algibeira em lugar da Bíblia remetida. Deu-lhe também alguns folhetos apropriados a seu caso, os quais Connell lia-os com tanta avidez enquanto ia no carro que só deu fé de si quando os cavalos se aproximavam da porta de seu pai.

    Seu pai e seus irmãos ainda não tinham voltado do trabalho; sua mãe, pois foi ao seu encontro quando ele entrava pela casa a dentro com uma expressão bem singular no rosto. Suas faces estavam coradas e as suas pálpebras vermelhas e intumescidas como se tivesse chorado muito. Ela parecia encará-lo com dificuldade, e virou o rosto de seu olhar inquiridor: “O que tem, mamãe? perguntou ele, posto que estava quase certo que o sabia. Isabel ficou calada.

    “O que tem, querida mãe? Repetiu. Está triste ou incomodada?”

    Isabel virou-se para ele com um rosto severo.

   “Sois um filho mau e hipócrita,” prorrompeu ela ao tempo que as lágrimas lhe caíam. “Sei tudo, e não me podeis cegar mais os olhos.”

    “Mamãe, o que quer dizer.”

      Não perguntei o que quer dizer, retorquiu ela com indignação. Sabeis o que tendes feito, e o padre Gasheen também o sabe, ele nos visitou e nos contou tudo... tudo... Os soluços não lhe deixaram dizer mais.

    Connell tinha bem conjecturado o caminho que o padre Gasheen provavelmente arranjaria para ele, e receava muito que o primeiro conhecimento que sua mãe obtivesse da mudança operada nele não viesse duma pessoa que excitasse ao princípio os seus mais violentos prejuízos. Mas contando com toda a parcialidade e mimo com que ela sempre o tinha tratado, como seu primogênito, resolveu consigo fazer uma forte tentativa para conciliá-la.

    “Ora, querida mãe, peço-lhe que se sente e deixe-me contar-lhe tudo, e veja se eu tenho feito mal.

     “Já sei, já sei demais,” disse ela suspirando.

      “Ai de mim! Se eu visse meu filho, meu Connell, um... um... uma nova torrente de lágrimas a impediram de falar. Não! Não! Continuou ela logo que pode articular; não me faleis mais; não quero ouvir uma só palavra; mas o padre Gasheen disse-me que fôsseis lá e tendes de ir hoje mesmo e de submeter-vos a ele.”

     “Bem. Devo levar-lhe a sua Bíblia. Já a tenho em meu poder por mais tempo do que ele me deu licença.” respondeu Connell invasivamente.

       Bíblia! Não disse ele que possuías uma herética.

       E não pesquisou por toda a casa para ver se achava? Onde a tendes escondido, menino malvado?

       Isto vos há de levar à perdição.”

       “Está bem guardada, mamãe.” respondeu Connell sob um ressentimento que lhe subia do coração por causa do procedimento tão desonroso e contemptível do padre curioso. O padre Gasheen pode ter a sua própria Bíblia, mas não a outra.

Imprensa Evangelica. Vol. VII, Nº 01.
Rio de Janeiro, 7 de Janeiro de 1871, p. 6-7.


     Neste momento entraram para aprontar o jantar, as suas irmãs, Catharina e Maria, e a conversação foi interrompida. Mas de algumas palavras que elas proferiram, e do seu comportamento mudado para com ele, era evidente que Connell acharia nelas pouca simpatia. Sem dúvida o padre Gasheen teve o cuidado de prescrever à família todo o procedimento que devia ter para com ele até que com alegria, tornasse a voltar para o aprisco em que foi criado.

    Seu pai e seus irmãos mostraram-se comunicativos sobre o negócio da quinta e o estado do mercado; mas não fizeram alusão às revelações da manhã. Todavia Connell julgava achar mais aspereza e falta de familiaridade que dantes, mesmo da parte deles, e não se achava bem preparado para uma manifestação tão inesperada de hostilidade que oprimia o seu coração como uma mó de moinho, e custava-lhe a refrear as lágrimas. Isto é somente o princípio, dizia ele; mas “não se turbe o vosso coração”. (João 14:1) “Vós haveis de ter aflições no Mundo, mas tende confiança, Eu venci o Mundo.” João 16:33

    Acabado o jantar Isabel insistiu para que a ordem do padre Gasheen fosse obedecida. Connell devia ir a sua casa e submeter-se ao que o padre lhe impusesse. Pouca apreensão tinha Isabel que um filho seu ousasse resistir à autoridade ou desprezar as instruções de um padre romano, por cujo ofício e poder sua própria veneração não tinha limites; e sentiu-se reassegurada quando Connell saiu ao seu mandado.

      Connell parou por um momento no limiar da porta do padre para dirigir ao Céu uma petição breve e muda, a fim de alcançar a força e a sabedoria necessárias para se haver e fatiar bem, e então bateu à porta e foi admitido à presença do padre Gasheen.

      Aquele bem nutrido senhor estava sentado a sua mesa de estudo, lendo um jornal. Ele levantou os olhos e fez-lhe um aceno de frio reconhecimento, e pôs-se de novo a ler. Connell teve de ficar de pé à porta, com o chapéu na mão, até que tivesse acabado de ler o parágrafo. Quando o padre o havia concluído e posto ao lado o jornal, como se
estivesse pronto para atender a visita, Connell aproximou-se e pôs sua Bíblia em cima da mesa.

     “Estou-lhe muito agradecido, senhor, por me tê-la emprestado. Há muito que pretendia trazer-lha,” disse
Connell, algum tanto agitado.

     Durante alguns instantes havia um profundo silêncio. Enfim, porém o padre dirigiu-lhe um olhar severo e ameaçador e disse-lhe: Onde está a outra?

     Não mandei eu que vós ma trouxésseis? Como ousastes escondê-la apesar das minhas ordens .

     “Disse-lhe, senhor,” respondeu Connell,  “que a Bíblia não era minha, e que eu não tinha o direito de entregá-la nas mãos de alguém a não ser o dono, a quem já a entreguei.”

    “Quem é o dono?” perguntou o padre Gasheen asperamente.

     “Isso não digo, pois não importa a ninguém conhecê-lo.
    “Mas haveis de me contar tudo, e prometer-me nunca mais pegar nesse livro pernicioso em quanto viverdes. Vossos pais hão de concordar comigo em fazer com que vos submetais, senhor moço e esta cousa é a primeira que requeiro. Estais disposto a obedecer-me?”

        O ingênuo rosto, meio varonil, meio infantil, de Connell de repente enviou-se, e olhou no chão refletivamente.

         “Obedeceis ou não? reiterou o padre em tom mais alto e arrogante, porque pensava perceber que a coragem do rapaz diminuía.

           “Não posso fazer nem uma, nem outra cousa,
senhor,” disse ele firme mas modestamente.

             Excitada a indignação do padre Gasheen por esta resposta calma e determinada, ele rompeu em exprobrações e ameaças violentas.

            “Deveras não podeis, senhor”! E porque razão? Eu vos peço! Não permitirei tal impertinência de um moço travesso como vós, senhor! Tendes de obedecer- me ou sofrer consequências graves e inesperadas. É meu dever tirar-vos como um tição de um incêndio, Amós 4:11 e eu hei de fazê-lo em virtude da minha autoridade como vosso pai espiritual: ficai certo que hei de fazê-lo!

     O rosto de Connell corou, mas ele dominou as suas paixões; e depois de um breve silêncio respondeu meigamente: “Senhor padre, vim para ser instruído não para disputar com vossa reverendíssima. Não tinha a intenção de faltar-lhe ao respeito, e peço-lhe que me desculpe tudo o que parecesse inconveniente a um rapaz tal como eu; mas quero fazer algumas perguntas, às quais se tiver a bondade de responder, dar-me-á muita satisfação.”

    “Não é de vosso direito fazer perguntas, mas sim responder a elas. Redarguiu o padre Gasheen severamente. O povo tem de receber a verdade tal qual é ensinada pelos santos ministros da igreja. São proibidos de embaraçar seus espíritos com pontos obscuros e difíceis, os quais estilo reservados para o clero, que é instruído e habilitado em tais cousas. O único dever do leigo é ouvir, crer e obedecer.”

Imprensa Evangelica. Vol. VII, Nº 03.
Rio de Janeiro, 4 de Fevereiro de 1871, p. 19-20.
      “Mas faça o favor de dizer-me, interrompeu Connell, sem se importar muito com a regra prescrita para o povo, se esta Bíblia sua é a que tem sido usada por muito tempo na igreja católica?”

       “A vulgata? Sim, é a única tradução que admitimos como verdadeiro. É muito antiga — mais antiga do que qualquer outra em uso geral,” respondeu o padre.

     “É, pois, a mesma que Lutero achou na livraria do mosteiro em Erfurt?”

     “Sim; mas que tem isso?” perguntou o padre Gasheen.

       “Ele era padre também, não era, senhor? E nunca tinha visto uma Bíblia até a idade de vinte e quatro anos?

        “Bem!
       “E ele a leu e tornou a lê-la dia e noite, até quase a sabia de cor, e — e —” Connell hesitou, incerto se devia continuar ou não.

       “Pois bem! Que mais?

       “Convenceu-se que a Bíblia de nenhum modo concordava com as doutrinas e usos da igreja romana, à qual ele pertencia, de sorte que sentia que lhe era forçoso abandonar uma ou outra; e, perdoe-me, senhor,” disse Connell olhando timidamente para o rosto vermelho e carregado do padre Gasheen, “mas é assim que eu tenho sentido desde que li a Bíblia — tanto a sua como a outra, pois são iguais em geral.”

    “É isto justamente o que eu antecipava,” disse o padre dando violentamente com o punho na mesa. “Não falo mais — mas hei de — ”

     “Permita, senhor, por favor, que lhe pergunte mais uma cousa,” interrompeu o moço com uma coragem que inteiramente desconcertou o irritável padre. “Que quer dizer S. Paulo quando fala de um tempo em que haverá uma apostasia da verdadeira fé? Ele diz: “O Espírito manifestamente diz, que nos últimos tempos apostarão alguns da fé, dando ouvidos a espíritos de erro, e a doutrinas de demônios, que com hipocrisia falarão mentira, e que terão cauterizada a sua consciência, que proibirão casarem-se, que se faça uso dos viandas que Deus criou, para que com ação de graças participem
delas os fiéis, e os que conheceram a verdade.” (I Tim. 4:1, 2, 3.) “Quem são estes em que se fala aqui, Sr. Padre?”

      Se o Padre Gasheen poderá ter-se persuadido que sua fama de homem ilustrado não seria comprometida pela recusa de responder a esta última pergunta, teria manifestado a indignação que sentia em estar apertado com tanta insistência, e talvez teria despedido seu jovem pároco sem mais cerimônia de sua casa; mas havia razões particulares que fê-lo julgar mais prudente suportar a impertinência e responder com calma. Podia-se dizer que ele evitou ou recusou responder a perguntas sinceras, o que não seria muito airoso para um homem cujo ofício era dar instrução em tudo que diz respeito à religião. Ele respondeu, portanto mui breve e positivamente, que estas palavras de S. Paulo se referiram aos gnósticos, uma seita herética, que floresceu no primeiro século da era cristã, e cujas doutrinas e costumes muito se assemelhavam com a descrição citada.

      Connell refletiu um momento, e disse: “Mas Sr. Padre, S. Paulo diz: nos últimos tempos.

      “E julgo que ele não havia de chamar a época em que escreveu os últimos tempos. Que diz o Senhor? Se não me engano ele escreveu no primeiro século. Não será possível, senhor, que ele se referia a outros apóstatas além dos gnósticos?

      “Como o meu jovem amigo está se tornando sábio!” retorquiu o padre Gasheen com ironia. “Um modelo de modéstia, sem dúvida, quando ousa questionar as explicações dos padres da Igreja sobre uma das mais claras passagens da Escritura. Este é de certo o feliz resultado de ler a Bíblia: vemos como faz a gente humilde. Vossos perniciosos mestres protestantes provavelmente vos dirão que S. Paulo na passagem citada, fala na igreja católica romana, e não duvido que sois bastante tolo para acreditar nisso ou em qualquer outro absurdo, mas lembrai-vos, rapaz,” e o padre levantou-se e tomou seu ar mais severo. “Lembrai-vos que com risco de vossa alma que deis ouvidos a tais persuasões — são laços para vos atirar no inferno!

      Connell não respondeu imediatamente. Não podia negar que o Sr. Bentley tinha dado esta interpretação à passagem em questão. Era uma das muitas que ele tinha indicado como descritivas daquela igreja corrupta e decaída, como há séculos ela já existe; nem podia o moço deixar de reconhecer quanto eram justas, exatas e notáveis. Ele desejava fazer mais algumas perguntas, mas o padre Gasheen mostrou-se tão impaciente para acabar com a conversa, que ele levantou-se para se retirar.

     “Vinde ter comigo outra vez antes do Domingo, e estai pronto para de joelhos confessar o vosso erro e dizer-me quem são os que vos estão desviando do caminho, e o que mais for necessário, e tudo isto será esquecido,” disse o padre com solenidade.

       Connell ia sair do quarto, mas parou, e depois de hesitar um momento, disse: Sr. Padre Gasheen, eu lhe agradeço os seus conselhos, instruções e avisos. Mas estou resolvido, venha o que vier, seguir a Bíblia, quer isto me torne protestante quer me faça ficar católico. Se ela é palavra de Deus – a vontade revelada de Deus, como o Senhor diz – posso confiar no ensino dela, porque é muito mais claro e simples do que o ensino dos homens.
Tenho achado nela um Salvador tal qual minha pobre alma perturbada e pecaminosa precisa. Estou persuadido que eu o tenho recebido pela fé. Creio que o amo, e pretendo servi-lo todos os dias de minha vida; e agora se a tribulação, ou mesmo a perseguição, me sobrevier em consequência desta minha resolução, aturá-la hei do melhor modo que me for possível por amor de Cristo. Não sei que penas, o senhor tem o direito de me impor, visto que nunca fui regularmente admitido como membro da comunhão católica; mas poderá, sem dúvida, persuadir meus pais, amigos e vizinhos a maltratar-me: — poderá fazer o que quiser; tenho animar-me para essa bela promessa : “Quando meu pai e minha mãe me deixarem, o Senhor me recolherá.”

    Connell admirou-se de sua própria coragem, quando acabou de falar. Padre Gasheen nada respondeu ao que ele acabava de dizer, e somente o mandou lembrar-se do que lhe tinha dito, porque não tinha mais que dizer; e assim eles se separaram.

Imprensa Evangelica. Vol. VII, Nº 04.
Rio de Janeiro, 18 de Fevereiro de 1871, p. 27-28.
       No domingo seguinte o Padre Gasheen pregou um sermão muito notável. Era uma mistura de mão humor, censuras, sarcasmo e queixas, sem cousa alguma daquela alegre mensagem evangélica, que tem sido confiada aos embaixadores de Cristo. Expôs o crime e a desgraça de apostatar da santa igreja católica.

      Era este um desses pecados mortais, que não se perdoará “nem neste mundo, nem no outro.” Ele declamou sobre a relaxação da disciplina doméstica, que não guardava os filhos da companhia e da influência daqueles que queriam subverter seus princípios religiosos, por mais cuidadosamente que estes fossem insinuados; e finalizou com uma exortação apaixonada a todos os bons católicos a não deixar passar sem uma reprovação conveniente um caso flagrante, que existia presentemente entre eles. Seria agradável a Deus, disse ele, se por quaisquer meios razoáveis eles pudessem tirar um obstinado ofensor do erro de seus caminhos; e que assim haviam de “salvar uma alma da morte e cobrir uma multidão de pecados.”

        A natureza irlandesa é proverbialmente suscetível; e logo se manifestou o efeito desta arengra inoportuna nos rostos carregados, que se viraram para a família Carrisforth de toda a parte da igreja paroquial.

      Todos souberam em quem se falava, por que a mudança no jovem Connell tinha sido propalada pela comunidade com grande descontentamento. A pobre Izabel ouviu as amargas palavras do Padre Gasheen com mágoa e terror não fingidos; mas como ela nem de leve pensou que seu guia espiritual pudesse errar, sentia-se obrigada a aceitar a sua opinião sobre a reclamação de seu “desvairado filho,” como ela sinceramente o considerava.

      Chorou amargamente, e sentia-se a mais infeliz das mães. Miguel ouviu com surpresa, e ficou muito incomodado. Ele tinha, é verdade, dado pouca atenção ao negócio, mesmo quando Isabel lhe tinha faltado dele em casa com todo o fervor possível. “Tudo seria bom com o rapaz,” disse ele; “não há que recear; a mocidade sempre tinha suas noções; e além disso, ele sabia que um rapaz tão bom como Connell sempre fora e ainda era, não podia estar muito fora da regra; ele o afiançava.”

     Mas para ser assim apontado no meio de uma congregação inteira e feito deste modo um espetáculo e ter a má vontade de seus vizinhos e amigos invocada contra ele e sua família, era um pouco mais do que ele estava disposto a ouvir.

      Talvez ele tinha-se mostrado por demais indiferente, quando o Padre Gasheen falou do negócio, havia alguns dias, e este era o plano que sua reverendíssima tinha escolhido para trazê-lo a seu dever; um plano ignóbil e covarde, ele não podia senão considerá-lo; mas ninguém devia contender com o padre, ou questionar sem direito de usar dos meios que lhe parecessem próprios para a edificação de seu rebanho, ou para recolher os que por ventura iam-se extraviando.

      A família inteira voltou da igreja num estado de grande excitação. Connell, naquele dia pela primeira vez, tinha partido cedo, para assistir ao culto protestante mais próximo, distante meia légua ou três quartas, em uma capela metodista. Quando vinha voltando encontrou várias pessoas da congregação do Padre Gasheen; algumas das quais o insultaram e injuriaram, e até o trataram com alguma violência, com ameaças de mais, se ele não deixasse o caminho que ia seguindo. Por estas cousas ele soube o tenor do procedimento do Padre Gasheen, mas não esperava pela tempestade que se desfez sobre ele o momento que entrou em casa.

    “Onde fostes, senhor?” demandou seu pai, seu rosto corado, e todo trêmulo de cólera.

    Connell hesitou um momento; todo o jeito das cousas na família, mostrava que tinha acontecido alguma cousa desusual.

    “Onde fostes?” repetiu Miguel com voz rouca de paixão.

     Connell francamente lhe contou. Mas a informação de modo nenhum lhe aplacou a ira. Agarrou nele pelo pescoço, e o sacudiu rudemente.

      “E quem vos deu licença de andardes à toa na companhia dos hereges? Foi vosso pai? Foi vossa mãe? E o que não tivemos nós de sofrer por vossa causa? Não temos sido apresentados como alvo de censuras e insultos? Não temos sido ameaçados e injuriados, e os nossos vizinhos e amigos incitados contra nós, e tudo por vossa causa? Quereis ser a ruína de nós todos? Quereis que a casa seja queimada sobre nossas cabeças? Quereis que sejamos motejados e ludibriados onde quer que aparecermos ? Digo-vos, rapaz, tendes de mudar de rumo. Digo-vos que já chegou o tempo em que estas cousas têm de ser largadas, ou não haverá lugar para vós sob meu teto.”

    “Meu pai...” começou Connell brandamente.

    “Nem uma palavra! — Não a permito! — Não admito discussão! A minha decisão está feita, e dar-vos-ei tempo para fazer a vossa; não serei precipitado convosco, porque tendes sido um bom filho para mim, e espero que continuareis a sê-lo. Mas não posso deixar as cousas caminhar assim. Tendes um mês para decidir se quereis ir submeter-vos ao Padre Gasheen e fazer o que ele vos mandar ou deixar a minha casa para sempre! Escolhei: dou-vos um mais deste dia.”

    “Eu não lhe daria a metade desse tempo, de modo nenhum,” acudiu Isabel, toda excitada. “Ai de mim! o que será de nós?

     “Nem eu” — “Nem eu” — acrescentaram Catharina e Maria muito descontentes.

    “Seremos todos vítimas de um motim antes desse tempo,” sugeriu Dermot, o filho mais moço.

     “Calai-vos, todos!” disse Miguel asperamente.

      “Será justamente como eu digo. Ele terá um mês para considerar seus caminhos: e não duvido que naquele tempo ele há de reconhecer que está em erro; mas ele nunca terá que dizer que seu pai o tratou inconsiderada ou precipitadamente. Um bom filho ele tem sido para mim, como todos vós sabeis, e far-lhe-ei justiça. Agora calai-vos, todos, sobre este assunto, até acabar o tempo, e então
trataremos dele. Não o molesteis de modo nenhum!”

     Era raras vezes que Miguel Carrisforth fez sentir a sua autoridade como chefe de sua família — era afável e de bom gênio, e deixou muito ao cuidado de Isabel. Mas quando ele estabeleceu quaisquer regras, lê-lo de tal modo que assegurava obediência pronta. Todos os lábios emudeceram; e ao pobre Connell foi permitido retirar-se para o seu sótão, onde seu coração aliviou-se de suas violentas emoções debulhando-se em lágrimas.

Imprensa Evangelica. Vol. VII, Nº 05.
Rio de Janeiro, 4 de Março de 1871, p. 35-36.

    O mês que sucedeu era bastante longo e enfadonho. Os olhares desviados, e as maneiras frias e repulsivas da família, onde antes tinha existido tanto afeto e ternura, atribularam muito uma natureza afetuosa, como era a de nosso jovem herói. Parecia estar inteiramente excluído das simpatias da família. Os trabalhos continuaram como
de costume. Connell se esforçou para exceder-se a si mesmo em fidelidade e diligência. Levantou-se cedo e trabalhou até tarde, e procurou fazer tudo de melhor mudo para agradar a seu pai. Mas tudo era em vão. Sentia-se sob a proscrição da família, tanto como do padre, que ele sabia era o principal promotor das provações que estava sofrendo. Uma ou duas vezes, quando se achava sozinho com seu pai, ousou tocar de leve no assunto proibido. Julgou possível alistar suas simpatias a seu favor; porem Miguel só bateu com pé no chão e lembrou-lhe a sua ordem.

    Não se deve pensar, porém, que este longo e triste mês não tinha consolações nenhumas para nosso jovem peregrino, que há tão pouco tempo se achava no caminho estreito para a cidade celeste.

   Era um mês de muitas dúvidas e receios, e de desânimo, é verdade, mas era também um mês de sincera e fervorosa oração, de exame de si mesmo, de firmes resoluções, de fé e de alegria. Sim, tão claras e fortes eram suas esperanças celestes, tão seguramente tinha ele se pegado ao Onipotente Salvador, que sua Bíblia emprestada lhe tinha revelado, que às vezes podia esquecer-se inteiramente de suas tributações mundanas, ou lançá-las sobre aquele que tomou sobre si as nossas fraquezas, e carregou com as nossas dores. Ninguém da família podia conceber o sossego e gozo interiores que ele às vezes sentia, em quanto seu quartinho ecoava essas belas linhas:

“Ó meu amante Jesus,
Abriga minh’alma aflita.
Enquanto bramo a procela,
E revolto o mar se agita!
Salvo em quem ao porto guia.
Não há mais temor em mim;
O Criador me protege,
Estou seguro e salvo enfim.”

     Muito antes da madrugada da segunda-feira, o último dia do mês, Connell estava já vestido e de joelhos ao lado de sua cama. E oh! com que fervor orava, com que ternura se lembrou de cada um da querida família ante aquele trono de graça que é sempre acessível ao coração devoto! Com que instância pediu para todos a graça vivificadora que traz consigo a salvação! E então pediu para si mesmo, que fosse guiado por aquela sabedoria que não pode errar, que pudesse honrar o nome de seu Salvador, por infâmia, e por boa fama, que seu caminho lhe fosse mostrado, e que ele tivesse coragem para suportar qualquer provação que o esperava, especialmente a de deixar a casa de seu pai e ir ele não sabia para onde, por amor de Cristo.

       Levantou-se e enxugou as lágrimas. Entrouxou de sua roupa a que julgou mais necessária e aproveitável, e assentou-se para esperar que a família se levantasse, e para pensar no que seria melhor que fizesse. Pobre rapaz! custou-lhe muito decidir, porque dificuldades e obstáculos pareciam fechar-lhe todos os caminhos. Quando foi chamado parti almoçar, Connell desceu com a trouxa na mão, como se estivesse pronto para partir; o que muito admirou a todos os membros da família.

      Tinham contado com toda a certeza com um resultado o contrário disto; e quando Connell assentou-se em seu costumado lugar e os saudou amavelmente, é mais fácil imaginar do que descrever o que cada um sentia. A expressiva cara de Isabel logo traiu a agitação de seu ferido coração. Miguel lançou um olhar quase incrédulo do rapaz para o pacote, e então com a cara mais grave possível tentou comer. Porém aquele almoço na casa dos Carrisforths era mera pantomima, e levantaram-se um após outro para escaparem da tristeza da ocasião. Afinal Miguel arredou a cadeira para trás, e depois de um esforço violento para firmar a voz, principiou:

     “Pois, Connell, meu filho, lembrai-vos do que vos disse há um mês?”

     “Sim, meu pai.”

     “Suponho que tendes decidido então o que ides fazer?”

      “Tenho, sim, senhor.”

      “E espero que pretendeis voltar para o bom caminho velho, sem nos causar mais incômodo ou ansiedade. Como é?”

      “Meu pai,” disse Connell comovido, “não quero causar-lhes incômodo nem ansiedade — mas, meu pai, nunca posso ser católico, nunca! Tenho lido a Bíblia, e não acho ali o que a igreja romana ensina, e estou resolvido pela ajuda de Deus deixar tudo pela Bíblia. Não tenho feito mal algum ao Padre Gasheen, nem lhe dei ocasião de ofender-se, e não posso consentir em submeter-me a seu domínio; se, pois, meu querido pai, o senhor não pode permitir que eu fique em casa e creia e proceda segundo as minhas convicções, vou-lhe deixar, como disse o senhor — para sempre.”

    “Ai de mim! Ai de mim! Gritou Isabel do quarto próximo, onde tinha ouvido tudo:

    “Nossa alma será perdida — não heis de ir para a perdição se eu posso preveni-lo. Mande chamar o padre, Miguel Carrisforth.

    “Não, minha mãe, tenho achado um salvador. A minha alma está segura. E oh! se fosse dado a todos vós buscar e achá-lo, seria respondia a minha oração mais fervorosa. Mas não quero ver o padre Gasheen — deixai-me ir em paz — sempre hei de amar-vos e orar por vós.

   “Tinha aqui um domicílio agradável, mas o Senhor cuidará em mim, porque deixo tudo por amor da sua verdade. E agora, minha querida mãe, e meu querido pai, adeus — adeus ! Catharina e Maria — adeus! Demas e Thiago — não vos esqueçais de mim, eu vos rogo a todos!”

     Conell pegou em seu embrulho e caminhou para a porta. Seu pai ficou em pé irresoluto e perturbado, não sabendo o que fazer. Tirou do bolso dois soberanos e pô- los na mão de Connell.

    “Não sabeis o que estais fazendo, meu filho,” disse ele com voz trêmula.” Não sabeis qual é o mundo com que ides lutar.”

   “É verdade, meu pai. Não sei, mas não vou sozinho. —Quando meu pai e minha mãe me deixarem o Senhor me recolherá? Sl 27:10. “Estai certos de que Eu estou convosco todos os dias, até à consumação do século? S. Mat. 28:20 . Estas palavras me dão confiança e coragem. Adeus, mais uma vez, meu querido pai!”

   Connell tinha dado poucos passos da casa quando um grande grito o assustou, e ouviu suas irmãs clamando: “Ela vai morrer? mamãe vai morrer!” Ele não pôde resistir ao impulso de correr para a casa.

     Ali, deveras, estava Isabel desmaiada sobre o chão, e a família toda quase fora de si com susto. Apressou-se a trazer água para lançar no rosto de sua mãe, quando Catharina arrebatou o jarro de sua mão— “Deixai-a,” disse ela, “sai daqui”; sois vós quem a tendes morto, e tereis de dar contas disso; sereis a morte de todos nós ainda, miserável malvado que sois !

     “Isso é verdade assentiu Maria — vede lá o mal que tendes feito. Oh, minha pobre mãe!”

     Estas amargas exprobrações feriram o coração de
Connell, como se fossem setas envenenadas. Cobriu o rosto com as mãos e chorou amargamente, e vendo que sua mãe voltava a si tornou a sair da casa.

Imprensa Evangelica. Vol. VII, Nº 06.
Rio de Janeiro, 18 de Março de 1871, p. 43-44.
       Connell partiu sem ter plano fixo, mas há muito que ele tinha pensado que se pudesse falar com o Sr. Bentley, este lhe daria conselhos apropriados nesta emergência. Tinha esperanças de poder ir para o mercado e vê-lo durante o mês passado, mas não tinha sido conveniente. Ele agora resolveu dirigir-separa a cidade, e se for possível entender-se com aquele senhor.

      Ele tinha estado mais ou menos uma hora na estrada e ia caminhando com diligência, quando ouviu atrás de si estrondo de rodas sobre o chão endurecido pelo frio, porque estava já adiantado o outono.

       Não olhou para trás, porém, e pouca atenção deu, até uma voz familiar clamou: “Connell, Connell, parai!”

        Virou-se então, e viu seu pai apressando o mais que podia os velhos cavalos da granja.

         “Parai! parai, rapaz! porque não parais? Tenho estado gritando este último quarto de légua — não me ouvistes?” disse Miguel, fazendo parar seu carro ao lado de Connell.

         “Não, meu pai; mas o que é que o traz com tanta pressa? Está pior minha mãe?”

           “Sua mãe não tem nada, mas digo-vos, rapaz, não posso aturar isto — tira-me todo o ânimo;” disse seu pai, enxugando as lágrimas com sua calosa mão; “e além disso, soube poucos minutos depois que saístes, que Pat O’Shea e Mich Brady e mais alguns destes malandrins estavam-se ajuntando para ir em vosso alcance e maltratar-vos; e como não se sabe o que são capazes de fazer instigados pelo padre Gasheen, resolvi tomar-lhes a dianteira. Digo-vos, menino, aquela arenga rabugenta que tivemos na igreja há um mês, abalou muito minha boa opinião de sua reverendíssima; e que ele tome sentido de como é que procura incitar os vizinhos contra mim ou a minha família. Mas vinde, entrai no carro, vou levar-vos para casa por outro caminho a fim de evitar o encontro com aqueles sujeitos.”

     “Mas, meu pai,” hesitou Connell, “eu não posso ser católico, não posso de maneira alguma, e estes homens poderão incomodar-lhe muito se eu estiver lá. Sentiria muito causar-lhe alguma dificuldade; e ainda mais minha mãe e as meninas, talvez haviam de afligir-se muito.”

      “Não precisais dizer mais. Eu vou cuidar de mim e de vossa mãe e das meninas; e se estes sujeitos nos molestam sentirão a força da lei; entrai, pois, e não percamos mais tempo em falar.”

     “Ó meu pai, como é benigno para comigo!” disse o moço, subindo para o lugar que tantas vezes tinha ocupado ao lado de seu pai.

     “Bem, vós tendes sido um bom menino, e não sou eu vos que hei de ver maltratado por quem quer que seja, quer vos chameis católico quer não; e no fim de tudo não me parece que haja muita diferença,” respondeu Miguel, virando seus cavalos para uma estrada particular, que era o outro caminho para casa.

    Chegaram a casa sem incidente, mas acharam uma porção de homens e mulheres dentro e fora da casa.
Não eram, porém, naquela classe da qual tinham razão de apreender mão tratamento, mas alguns dos vizinhos mais decentes e respeitáveis, que vieram saber de Isabel e oferecer-lhe suas simpatias.

   Muitos queriam saber que mal Connell achou na fé e no culto romanos, e se o padre Gasheen não o podia esclarecer. Isabel tinha respondido o melhor que podia às suas perguntas, mas ela não estava bastante informada para bem satisfazer seus inquiridores.

       Quando Miguel soube de seus desejos, meditou um momento, e virando-se para Connell disse: “Meu filho, eu quero que vos expliqueis a estes bons vizinhos o que eles desejam saber a respeito da mudança em vossos sentimentos sobre este assunto. Se não podeis ser católico, como dizeis, eu quero que lhes digais porque e que deis uma razão de vosso procedimento.”

     “Eu o farei, senhor,” respondeu Connell prontamente.

     “Agora, meus amigos,” disse Miguel, dirigindo-se para o povo, “o rapaz diz que vos explicará por que não pode ficar católico como nós outros; e é justo, como vedes, dar-lhe o ensejo sem vexá-lo ou perturbá-lo. Se ele não puder mostrar razão suficiente por seu novo modo de pensar, que ele tome para se maior vergonha; mas se ele puder vamos ouvi-lo.”

   “De certo isto é justo,” disseram todos.

    Pois bem, talvez queirais reunir-vos Domingo que vem de manhã, e neste caso ouvir o que ele tem que dizer.”

     Foi aceita a proposta, e o povo dispersou-se.

Imprensa Evangelica. Vol. VII, Nº 07.
Rio de Janeiro, 1 de Abril de 1871, p. 51-52.

     No Domingo seguinte, em vez de uns doze amigos
e vizinhos, mais de com pessoas se haviam reunido na granja que fica em frente da pitoresca cabana dos Carrisforths: homens, mulheres e crianças de todas as aldeias circunvizinhas e entre eles alguns conhecidos como capangas do padre Gasheen, que podiam fazer algum motim.

     Foi com alguma importância que Miguel considerou o aumento constante dos ouvintes ao redor de sua porta. Sua mulher e filhas estavam quase possuídas de um terror pânico. Nada senão a autoridade de Miguel podia obstar que elas saíssem da casa e fossem para alguma outra, onde podiam considerar-se livres do tumulto da gentalha. Porém Miguel era um homem robusto e resoluto; e quando seu sangue começou-lhe a ferver, disse a Bessie com uma aspereza tal que ela não julgou prudente resistir-lhe, que se ele não podia proteger sua própria família, a lei podia e devia, e isto dentre de seus próprios limites.

     O coração do jovem Connell lutava com trepidação ao pensar da parte que estava para fazer neste drama; mas algumas palavras de seu pai estimularam sua resolução a desempenhar seu papel o melhor possível e a deixar o caso com Deus. Ele então se lembrou do que disse Jesus a seus discípulos: “Não cuideis como, ou o que haveis de falar; porque naquela hora vos será inspirado o que haveis de dizer.” S. Mat. 10:19

      Uma tosca plataforma de tábuas sobre barris foi arranjada, sobre a qual Connell se colocou. Agora, disse animadamente Miguel: sede um homem e não deixeis o temor de alguém embaraçar-vos de contar uma história evidente. Eu fico aqui perto de vós até ao fim; e vós não tenhais receio de exprimir vossos pensamentos. Olhai para aqui.” E abrindo o peito de seu casaco, mostrou-lhe um par de pistolas. “Eu as conservarei quietas.”

   “Meu pai! Meu pai!” disse Connell em voz deprecatória.

     “Deixai-me. Eu sei o que faço. Primeiramente falto eu; e depois vós.”

     “Amigos,” disse Miguel, dirigindo-se ao povo, “vós tendes vindo aqui ao meu convite para saber porque este meu filho não pode ser católico romano como nós. Eu vos prometi que sabereis suas razões, porque ele é um moço, como vós todos bem o sabeis, que não recebe uma crença nova sem razões. Eu mesmo necessito saber, e desejo que também vós saibais; porque é que ele não pôde viver como nós em nossa santa fé católica. Eu me alegro em vos ver a todos; mas se algum de vós tem vindo para fazer motim e distúrbio, esse não tem parte aqui, e é melhor que se retire quando achar conveniente. Eu estou resolvido a conservar a tranquilidade e a manter a ordem; e o primeiro de entre vós que fizer algum barulho ou tumulto, melhor lhe fora que cá não viesse; porque eu o sossegarei de um modo que ele não esperava. Vós sabeis que Miguel Carrisforth quando tem o sangue esquentando, faz como diz.” E voltando-se para Connell, disse-lhe: “Chegou o vosso tempo, meu rapaz.” E assentou-se onde seus olhos podiam dominar todo o auditório.

     As faces de Connell estavam coradas quando ele começou modestamente: — “Meus bons vizinhos, eu nunca antes tentei falar em público e por isso receio que meu discurso não saia como devia; mas se vós tiverdes paciência, eu me esforçarei a mostrar-vos a mudança que se tem operado em meus sentimentos. Eu não estou amedrontado, nem envergonhado em confessar que não posso ser católico romano, e talvez em breve alguns de vós concordem comigo.

    Tão profundo era o silêncio que reinava no auditório que se podia ouvir o tinir de um alfinete. Talvez que o modo determinado, o olhar sereno e o ar resoluto de Miguel tomados em consideração com as observações que havia feito, contribuíssem alguma cousa para isto. Todos os olhos quando o moço procedeu, estavam atentamente postos nele.

    “Amigos,” disse Connell entrando diretamente no
Ponto: eu tomei emprestada uma Bíblia; e quando a li achei muitas cousas admiráveis que nunca jamais tinha ouvido — cousas que os nossos padres nunca se deram ao trabalho de contar — nos não obstante serem próprias para fazer um homem sábio e melhor — cousas que todos devem saber, crer e praticar — cousas que nosso bendito Salvador Jesus Cristo, e seus santos apóstolos ensinaram; também como cousas que os profetas inspirados por Deus que viveram em tempos remotos escreveram.

    Mas a maior parte das cousas em que nós temos sido ensinados a crer e que supomos doutrinas evangélicas, não se acham nela! Os padres nos dizem que seu ensino, o dos concílios, do papa e o da tradição é tão bom como o da Bíblia e tão obrigatório sobre a consciência. Vós credes nisto, amigos? A Bíblia é a voz de Deus — esse ensino são opiniões de homens — devem eles ser recebidos como de igual autoridade?

     Eu sempre admirei por sermos proibidos ler a Bíblia desde que ela é efetivamente a palavra de Deus e foi dado para nos ensinar o caminho e sermos salvos da perdição eterna; mas quando a li, eu não fiquei mais surpreendido — Eu vi mui claramente, que se o povo a lesse e cresse por si mesmo, eles não continuariam a ser mais católicos romanos — A igreja sabe que faz muito bem, e esta é a razão porque somos conservados nas trevas e na ignorância. A ele não lhes convém deixar-nos saber o que está na Bíblia, porque então nós veríamos que temos sido cegados e iludidos. E vós, vizinhos, jamais pensastes porque é que todos os nossos serviços religiosos são feitos em uma linguagem da qual nós não podemos entender uma palavra? Por que não devemos conhecer a significação e a prática do serviço de que tomamos parte? Que alteração há para nos enganarmos? Eles dizem que nós devemos crer o que a igreja crê, quer nós saibamos, quer não. O apóstolo S. Paulo, porém, fala mui diferentemente — ele diz, “que sem fé é impossível agradar a Deus” Heb. 11:6, e que um conhecimento da verdade é necessário antes de nós a podermos crer. Como podemos obter este conhecimento, se eles nos negam a Bíblia?

    Eles também ensinam que nós podemos merecer nossa própria salvação por observar todos os ensinos da igreja — fazendo obras de retidão, penitência, etc. A Bíblia diz-nos que nós somos salvos pela graça mediante a fé, e isto não vem de nós mesmos; porque é um dom de Deus. Não vem das nossas obras, para que ninguém se glorie Efs. 2:8, 9 — mas segundo a Sua misericórdia, nos salvou pelo batismo da regeneração e renovação do Espírito Santo Tito 3: 5 . Deus assim amou ao mundo, que lhe deu a Seu Filho Unigênito para que todo o que crê Nele não pereça, mas tenha a vida eterna S. João 3:16. Não há quem faça bem, não há nem sequer um só Rom. 3:12. Porque todos pecaram e necessitam da glória de Deus Rom. 3:23. Sejam precipitados todos os pecadores no inferno, todas as Nações que se esquecem de Deus. Sl. 9:17

     Quando li estas passagens, vizinhos, eu fiquei alarmado e triste, como podeis supor. Eu não sabia o que devia fazer — Eu senti que era um pecador diante de Deus, e não tinha retidão para apresentar-lhe, ainda que ela pudesse ser aceitável. Que podia eu fazer? Eu pensei na Virgem Maria, nos santos e nos anjos; mas eu nada achei em toda a Bíblia que nos permitisse orar a eles, ou solicitar sua ajuda. Eles não podem fazer nada a nosso favor, nem até a própria Virgem Maria. Jesus é o único “Mediador entre Deus e os homens,” diz a Bíblia — o único nome dado do Céu aos homens, pelo qual nós devamos ser salvos 1Tm. 2:5. Jesus Cristo diz de si mesmo — “Eu sou o caminho, a verdade e a vida: ninguém vem ao Pai, senão por mim.” S. João. 14:6.

Imprensa Evangelica. Vol. VII, Nº 08.
Rio de Janeiro, 1 de Abril de 1871, p. 62-64.



     Conell prosseguiu em seu discurso, dizendo: “Não compreendi ao princípio, como agora julgo que compreendo o que significava vir ao Pai, ou como era que o Salvador havia de me salvar. Fui ter com o Padre Gasheen e contei-lhe todas as minhas dificuldades e inquietação de espírito. Ele me repreendeu por ter lido a Bíblia, e proibiu-me continuar a lê-la, e mandou-me praticar as cousas que mereceriam a salvação — não havia perigo, disse-me ele, eu só devia fazer o que a igreja ordena, — mas que a Bíblia não manda!  Pedi-lhe que me dissesse em primeiro lugar, se a Bíblia era realmente a palavra de Deus e de autoridade sobre os homens. Ele disse que a Bíblia católica era; roguei-lhe, pois, que me mostrasse uma, o que ele fez depois de muitas objeções; mas qual não fui minha surpresa, em achá-las semelhantes naqueles mesmos pontos que mais me embaraçavam e inquietavam. Pedi-lhe que me explicasse, mas ele irou-se, e somente me ameaçou. Separei-me dele mais miserável e perturbado do que nunca, e mais em dúvida sobre o que devia fazer para me salvar; mas em seu próprio tempo o Senhor enviou-me bons conselhos, e humildemente acredito que tenho aprendido a crer no Senhor Jesus
Cristo para a salvação de minha alma. Entreguei-me à Sua misericórdia só, e Ele tem dito: “O que vem a Mim não o lançarei fora.” Isto é o que a Bíblia me tem levado a sentir e fazer, meus amigos; é seu próprio e legítimo efeito: — “A exposição das Tuas palavras alumia, e dá inteligência aos pequeninos,” diz a Escritura; e isto é justamente o que nossos padres temem; e eis a razão porque eles não nos permitem ler e julgar por nós mesmos — sabem que não podemos ficar o que somos, e ter a Bíblia em nossas mãos. Há aqui um ponto que nunca posso ceder — não posso largar a palavra de Deus, e, portanto não posso ser católico. Louvarei a Deus até à morte, ou antes por toda a eternidade, por aquela Bíblia emprestada.”

      Connell assentou-se sem olhar para observar o efeito que seu discurso tinha sobre seu auditório rústico. Se o tivesse feito, porém, ter-se-ia admirado do número dos olhos de que se deslizavam lágrimas. Seu pai, porém, o tinha reparado, e tinha concluído que para sua proteção não havia precisão das armas de fogo que trouxe escondido debaixo de seu casaco. Mesmo os malvados, que tinham vindo de propósito para fazer desordem, nada acharam nas caras uns dos outros ou na altitude de seus companheiros, que os animasse a cumprir o seu intento. Um por um safaram-se envergonhados, enquanto os mais sisudos e respeitáveis da assembléia reuniram-se em grupos, para fazer seus comentos sobre o que acabavam de ouvir, e indagar se estas cousas eram realmente assim. Connell tinha sempre sido muito estimado pelos vizinhos, e mesmo agora poucos haviam que estivessem dispostos a censurá-lo asperamente, ao passo que o Padre Gasheen e alguns dos padres vizinhos foram severamente criticados pelo descuido de seus próprios deveras, do qual diversos exemplos foram aduzidos como bem conhecidos por várias pessoas presentes. Miguel desceu da plataforma, e uniu-se com os outros nestas conversas.

     “Que outra cousa podia o rapaz fazer?” disse um.

     “Eu não vejo que ele esteja muito fora do caminho,” disse outro.

     “Se os padres não nos ensinam, quem o ia de fazer?” questionou um terceiro.

     “Devemos ter a Bíblia,” acudiu um quarto, “e não me parece justo que ela nos seja proibida.”

     “Eu gostaria ouvir mais a este respeito,” observou um quinto.

      “Eu queria que o Padre Gasheen ouvisse o que nós temos ouvido, e respondesse por si,” murmurou um sexto.

       “Porque não pôde o rapaz dar-nos uma outra fala,” perguntou um deles ao afável Miguel.

       “Que dizeis vós a esta proposta, meu menino?”
disse outro a Connell mesmo.

         Quando Connell compreendeu o pedido respondeu
Prontamente:

        “Se quiserdes, lerei a Bíblia para vós e podereis então julgar por vós mesmos se ela é própria para todos. E oxalá! meus amigos, que pudesses todos lê-la por vós mesmos!”

     O Domingo seguinte de manhã foi marcado para outra reunião, e o povo separou-se sossegadamente, muitos levando em seus corações pensamentos sérios de uma sorte nunca antes sentida por eles.

    Connell de joelhos em seu sótãozinho deu graças a Deus pelo resultado amigável e satisfatório desta ocasião que tinha antecipado com tantos receios, e suplicou a sabedoria necessária para guiá-lo em seus humildes esforços para trazer esse povo ingênuo ao conhecimento de Seu poder e de Sua Santa Palavra.
     Durante toda a semana o moço tinha razão de alegrar-se na bondade e afeto que lhe mostrou toda a família. Seu pai estava mais do que satisfeito, — e até o orgulho materno de, Isabel estava algum tanto despertado pelo fato de ele ter agradado a todos, tanto ao contrário do que ela esperava. Principiou a parecer uma cousa menos terrível ler a Bíblia; e quando, uma noite. Miguel pediu a
Connell que trouxesse o seu Novo Testamento e lhe lesse um capítulo pela simples curiosidade da cousa, ela não fez muitas objeções, e escutou com paciência, e até mesmo um interesse que não teria querido confessar nem a si mesmo.

Imprensa Evangelica. Vol. VII, Nº 09.
Rio de Janeiro, 6 de Maio de 1871, p. 71-72.
    Felizmente o Padre Gasheen se achava ausente nesta ocasião em uma cidade distante, e, portanto não podia intervir para obstar a reunião proposta.

   Passou a semana, veio o Domingo, e logo de manhã o povo tornou a juntar-se no pátio da casa de Miguel. O devoto coração do jovem Connell abrasou-se e dilatou-se. Oh, como ele desejava dar expressão adequada ao grande assunto da salvação pela livre graça de Deus, manifesta no dom de um Salvador Todo-Poderoso! Oh, como ele desejava expressar a paz e alegria de sua própria alma, e proferir uma palavra ou enunciar um pensamento que pudesse induzir alguns destes amigos e vizinhos a procurar e achar o que ele tinha procurado e achado!

     Este fervor de sentimento comunicou uma suave e bela solenidade e ardor à sua voz e maneiras, ao mesmo tempo que excitou o brilho em seus olhos e ele deu facilidade em falar; e naquela memorável manhã, foram lidas e proferidas palavras cujo indizível valor para algumas almas só os registros da eternidade poderão adequadamente descobrir. A Palavra de Deus nos lábios daquele jovem, e acompanhada por seus próprios comentos e tocantes exortações, produziu um efeito inteiramente inesperado. Era como o fogo e o martelo que quebra a pedra”. Lágrimas de arrependimento caíram de olhos que antes escarneciam das lágrimas, tanto como dos mais meigos e susceptíveis.

     E a muitos que, como o carcereiro de Filipos, perguntaram ansiosamente; “Que é necessário que eu faça, para me salvar?” a simples, mas sublime resposta: “Crê no Senhor Jesus, e serás salvo,” veio com um poder e autoridade que não podiam questionar nem resistir. O Espírito de Deus estava lá, — os mandamentos de Deus, tantas vezes inutilizados pelas tradições dos homens, foram aplicados com energia divina às consciências convictas; e formas, e doutrinas, e dogmas de homens, foram esquecidos. Ninguém naquela reunião perguntou: “Que diz a igreja, o papa, ou o padre?”, mas “O que diz o
Senhor?”

     Entre os mais comovidos por esta simples explicação da verdade revelada em Jesus Cristo, era Miguel Carrisforth. A espada do Espírito tinha penetrada no íntimo da sua alma; e não passou muito tempo até que ele pudesse claramente apreender e pela fé realizar a ventura dessa grande verdade: “Justificados, pois pela fé, temos paz com Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo.” E grande era a alegria para ele e para muitos de seus vizinhos, quando podiam regozijar-se juntos na esperança da glória de Deus.

     Reunião após reunião foi celebrada durante a ausência do Padre Gasheen, e a Palavra de Deus se propagou e foi glorificada. Quando afinal ele voltou à sua paróquia, o partido da Bíblia, e a influência da Bíblia, eram já tão grandes e firmemente estabelecidas que ele não podia vencê-las, apesar de todos os esforços que empregou para este fim. Uma ou duas vezes ele conseguiu que fossem feitos pequenos distúrbios, mas estes foram prontamente reprimidos pela prudente firmeza de Miguel e seus amigos, e dali em diante a Reforma Bíblica progrediu sem interrupção, dirigida por nosso jovem amigo Connell, que ao passo que crescia em idade, crescia em sabedoria, e em favor diante de Deus, e dos homens.

    Afinal foi-lhe permitido regozijar-se na conversãode todos os membros de sua família. Isabel, era a última a render o seu coração ás influencias daquela graça que traz a salvação. Mas a submissão era sincera e inabalável, uma vez que foi feita.

     Desde o começo o bom Sr. Bentley tinha observado com a maior solicitude o progresso desta singularmente interessante reforma. Notou com devota admiração os simples meios que Deus tinha empregado para realizá-la, e resolveu nunca perder ocasião de travar conversas sérias com os que estivessem dispostos a ouvir, e lembrar-se mais praticamente do preceito: “Semeia de manhã a tua semente, e de tarde não cesse a tua mão de fazer o mesmo; porque não sabes qual das duas antes nascera: se esta ou aquela; e ou se ambas crescerão igualmente bem.”

     Ele resolveu mais e mais depender na eficácia do Espírito de Deus acompanhando a Palavra divina, e fazer o que podia para estender o conhecimento daquela verdade, que é como, “uma fonte d'água, que salta para a vida eterna.” Ele procurou uma quantidade de Novos Testamentos, e forneceu a todas as famílias na vizinhança dos Carrisforths que de qualquer maneira os quisessem receber, e tinha a satisfação de saber que eles concorreram muito para aumentar e estimular o sentimento religioso da comunidade, e ministraram a muitos ardentes inquiridores pela verdade uma base sólida e segura em que edificassem uma firme fé religiosa, em vão o Padre Gasheen irritou-se, proibiu, denunciou, e ameaçou; a verdade que torna o homem livre tinha sido revelada entre aquele povo, e foram se tornando verdadeiramente livres, na liberdade dos filhos de Deus.

    O progresso do movimento religioso, do qual esta
“Bíblia emprestada” era a origem e instrumento, desenvolveu em nosso jovem amigo Connell dotes de uma ordem pouco comum; os quais associados com um zelo acertado e maneiras simpáticas, pareciam combinar elementos especiais de utilidade e adaptação para a vida pública. Pela recomendação cordial, pois, do Sr. Bentley, e o livre consentimento de seus pais, ele entrou em um curso de estudos preparatórios para o ministério do Evangelho, e em poucos anos começou seus trabalhos como um embaixador de Cristo. Por mais de vinte anos trabalhou no serviço de seu Mestre com uma diligência e prudência que foram premiadas com abundante sucesso. Aos pobres e humildes entre seu próprio povo ele dirigiu principalmente seus esforços; e destes foi colhida uma grande seara de almas regeneradas, as quais um dia resplandecerão como o sol no reino de seu Pai, posto que desconhecidas, desprezadas, ou menoscabadas na terra.

    Porém, os que querem viver piamente em Jesus Cristo, padecerão perseguição.” Deus muitas vezes permite que seus servos mais devotos e fiéis sofra as mais cruéis provações, e por meio de muita tribulação os conduz à herança dos santificados. Assim era com o nosso amigo Connell Carrisforth. Havia ocasiões durante seu ministério em que ele podia quase literalmente ter adotado a descrição que S. Paulo dá das tribulações e perigos que o cercavam. Vide 2 Cor. 11:26, 27. A igreja romana tentou tudo quanto podia fazer para frustrar seus esforços e subverter a influência da Bíblia que ele tanto exaltava: opuseram-se-lhe todos os obstáculos. que a malícia podia inventar ou a astúcia descobrir; porém ele prosseguiu tranquilamente em seus deveres, lembrando-se de que a ira do homem será para o louvor de Deus, como de fato ele o realizou. Aflições e perdas eram entre os meios mais sensíveis pelos quais o Pai dos espíritos elegeu provar a constância de seu servo. Um por um, os membros de sua família, que amou tão ternamente, e, que agora mais do que nunca lhe eram queridos quando podia dizer: “O teu povo é o meu povo e o teu Deus é o meu Deus.”, passaram da terra, até ele só ficou, — e contudo não estava só, porque foi-lhe realizada a promessa: “Eis que estou convosco todos dias, até a consumação do século.”

     Queira Deus que o seu exemplo sirva para animar a todos os fiéis, que lêem esta história, nas tribulações, contrariedades e perigos de sua peregrinação, que os estimule a maior constância e zelo nos trabalhos e esforços para o bem espiritual de seus semelhantes e confirme-os no propósito de manter uma boa profissão de sua fé em seu Salvador Jesus Cristo.

Imprensa Evangelica. Vol. VII, Nº 10.
Rio de Janeiro, 20 de Maio de 1871, p. 75-76.
 

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