O PASTOR DOS PIRINEUS




O PASTOR DOS PIRINEUS

    Há pouco mais de cem anos vivia em Languedoc, que é uma das províncias setentrionais da França, um certo barão e sua esposa, que tinham dois filhos, Theophilo e Sophia.

       Estes meninos em extremo lindos eram gêmeos. Era uma das cenas mais belas do mundo ver estes dois irmãozinhos deitados dormindo no mesmo berço.

    Theophilo era maior e mais trigueiro do que Sophia; porém as suas nobres feições, espaçosa testa e cabelo preto ondeado, davam a conhecer, mesmo na sua meninice, o que ele viria a ser se chegasse a ser homem. Enquanto que também os lábios de rubim, as faces rosadas, a delicada tez e o cabelo castanho de sua pequena irmã eram igualmente administráveis. Muitas vezes os estrangeiros eram levados por seus orgulhosos pais e pelos dependentes da família, para contemplar a beleza destes jovens infantis.

    A sua beleza crescia com a idade, e pareciam possuir todas as boas qualidades desejáveis, que ainda nos restam da ruína do homem decaído.

     Theophilo era de sentimentos elevados, e de grande coragem natural; tinha facilidade de compreensão e maneiras cheias de graça e dignidade. Unia a todas estas qualidades uma porção de orgulho que o fazia julgar-se acima de tudo o que apenas parecia uma ação má, é o fazia sentir com veemência o que ele considerava uma afronta.

      Sophia participava muito das disposições de seu irmão; porém, em lugar do orgulho e independência que cresciam nele, ensinava-se-lhe que a delicadeza e a submissão são qualidades desejáveis em uma senhora.

     Ela era criada no retiro; ensinava-se-lhe a ocultar os seus sentimentos, e a considerar seu irmão como a pessoa de quem teria de depender no caso da morte de seu pai.

    Theophilo e Sophia, à proporção que iam crescendo, eram admirados pelo mundo, e por todas as pessoas que os cercavam, não obstante não possuírem nem uma só graça cristã.

   Ensina-se-nos que os frutos do Espírito Santo são o amor, o gozo, a paz, a longanimidade, a temperança e a mansidão, e que todo aquele cuja natureza é renovada pelo Espírito de Deus, deseja além de todas as cousas amar ao Senhor seu Deus com todo o seu coração, com toda a sua alma, com todas as suas forças, e ao seu próximo como a si mesmo. Porém nunca tinham ensinado a Theophilo nem a sua irmã a elevar em oração os seus corações a Deus, e tão pouco a sentiria sua fraqueza e depravação. Eles tinham ouvido o nome de Jesus Cristo, porém como nunca tivessem sentido a necessidade de um Salvador, nunca tinham sido levados a procurá-lo. Estes jovens não tinham consciência alguma da corrupção de seus corações, e, portanto não sentiam necessidade da influência santificante do Espírito Santo. Possuíam, porém no grau o mais elevado um belo e natural sentimento; este era a afeição que cada um consagrava ao outro.

     Esta doce amizade crescia com eles desde o berço. Theopohilo era geralmente guardado sob o cuidado de seus tutores e mestres, em uma parte da espaçosa casa de seu pai muito distante daquela que era ocupada por sua irmã e sua aia; e por isso o seu prazer era o maior possível quando o deixavam livre dos seus afazeres, brincar com sua irmã no parque de seu pai, seguidos apenas a distância por um criado.

      O parque era muito grande, e incluía uma parte de terreno irregular com pequenos outeiros, vales, e bosques de árvores, e se estendia ao pé de um dos Pirineus. Aqui e ali havia caminhos espaçosos bordados de carvalhos e castanheiros, além dos quais se via ao longe os azuis topos das montanhas.

   Era um grande prazer para Theophilo e Sophia subir a estes altos, explorar estes vales e prosseguir com passos desiguais aos lugares mais recônditos e escondidos destas extensivas alamedas.

     Aconteceu um dia quando tinham já quatorze anos de idade, que em uma manhã de primavera foram além do lugar costumado, e chegaram a um lugar elevado matizado de flores, onde viam um velho pastor sentado sobre a relva, lendo com muita atenção, enquanto as suas ovelhas pastavam perto dele. Nada se ouvia na profunda solidão deste ermo que interrompesse a contemplação do pastor, senão o tocar da campainha do carneiro-cabeça, os balidos do rebanho, e o ruído surdo de uma cascata pouco distante.

Vamos, disse Theophilo a sua irmã, falar àquele velho pastor, e perguntar-lhe que livro é aquele que lê tão atentamente.

     Ambos os irmãos subiram para ir ter com o pastor que, assim que os viu aproximar, levantou-se, cumprimentou-os humildemente, e pôs o livro com cuidado no seio.

    Theophilo e Sophia ficaram admirados da compostura e dignidade do porte deste homem velho, e esquecendo-se da inferioridade do pobre pastor, aproximaram-se dele com menos altivez do que a que costumavam a usar com pessoas de ordem inferior a si, e fazendo com que o velho homem se sentasse na relva, sentaram-se-lhe em frente e entraram com ele em conversação.

    Ao princípio eles fizeram muitas perguntas ao pastor acerca do seu passado e da vida que levava, às quais ele respondeu contando a simples história da sua vida.

Meus amigos, disse ele, ignoro se sabeis que existia antigamente, em certos vales das montanhas a cujos pés agora descansamos, uma povoação de homens pobres, chamados por alguns Vaudois, e por outros Os pobres homens de Lyons. Estes homens por nada eram mais notáveis do que por sua pobreza, e por seu desejo de servir a Deus em simplicidade, tomando o seu santo livro por única regra de suas vidas, e as suas promessas por herança.

  Nasci no meio deste povo e com ele vivi até á idade de quarenta anos, tendo sido abençoado com uma pia esposa e dois amáveis meninos, e gozado a sociedade de uma mãe veneranda. Neste tempo, porém a nossa gente caiu no desagrado do rei. Então fomos lançados de nossas habitações e sofremos os maiores trabalhos. Minha velha mãe, minha mulher e meus filhinhos, não foram capazes de resistir a tantas aflições, e sucumbiram. Fui privado de todos um a um. Eles passaram para a glória, e eu fiquei solitário — e com tudo não só, acrescentou o pastor, elevando os olhos ao céu com tal expressão de contentamento que espantou a Theophilo e à Sophia, porque parecia mais do que humano, — eu não sou só, tenho uma grande consolação e sou muito feliz.

Feliz! repetiu Theophilo, como podeis sê-lo? Segundo penso, não tendes prazer algum. Perdestes mãe! Esposa! Filhos! Sois pobre; exposto ao frio e ao calor, e talvez que apenas tenhais uma pobre cabana para abrigo durante a noite. O vosso alimento, não duvido que seja também ruim, e os vossos vestidos são dos mais ordinários que há. Como podeis, pois ser feliz?

    O pastor suspirou, e olhou cheio de compaixão para
Theophilo e sua irmã, dizendo:

Tenho bastante dos bens desta vida para satisfazer as necessidades obsolutas deste pobre corpo. Estou a serviço de vosso pai, e o meu salário é suficiente para suprir-me de tudo o que necessito. A este respeito vivo melhor que muitos dos profetas e dos apóstolos dos primeiros tempos; porque eles foram tentados, foram mortos ao fio da espada, andaram vagabundos, cobertos de peles de cabras, necessitados, angustiados, aflitos: Uns homens de que o mundo não era digno; errantes nos desertos, nos montes, e escondendo-se nas covas, nas cavernas da terra. (Heb. 11:37, 38). E mesmo hoje em dia, quantos de meus irmãos, servos de Cristo, sendo lançados dos lugares de suas habitações, andam sobre a terra errantes, faltando-lhes as cousas mais necessárias à vida, sendo que no entanto eu gozo de segurança!

 Porém, disse Theophilo, não posso entender qual a relação que tudo isso pode ter convosco. Se sois miserável não podeis deixar de sê-lo, sabendo que há outros que também o são. De modo algum um tal pensamento vos pode fazer atualmente feliz; vós dizeis que o sois, e deveras me pareceis tal. Contudo, como já vos disse, a vossa situação é tal que faria a maior parte dos homens verdadeiramente miseráveis.

IMPRENSA EVANGELICA.
VOL. IV, Nº 01. Sábado, 4 de Janeiro de 1868, p. 2-3.

    O pastor tornou-se silencioso por um momento, e pelo seu modo, parecia fazer oração. Afinal, olhou benignamente em roda de si e disse: Vós não podeis entender como eu, pobre e desprezado velho, possa ser feliz debaixo de circunstâncias que vos parecem inteiramente sem conforto. Sentis piedade do mira; pensais que sou infeliz. No entanto as rainhas orações por vós serão para que Deus vos faça em breve sentir o que eu sinto, e vos leve a descobrir a pouca estabilidade dos prazeres e paixões terrenas, para que sejais levados a procurar os prazeres que, vindo de uma fonte celeste, não podem ser exauridos.

Como! disse Theophilo com altivez, não devo tomar prazer naquilo que possuo?

Perdoai-me, disse o pastor inclinando-se, foi levado por vossas questões a falar de mim mesmo, e a patentear os meus sentimentos interiores sem refletir e não falarei mais.

Não, disse Theophilo, agrada-me ouvir-vos falar, porque nunca me encontrei com homem algum que vos fosse semelhante. Dizei tudo o que sentirdes, porque apesar de não prometer crer tudo o que disserdes, prometo que me não hei de ofender. Disses-lhes que desejáveis fôssemos semelhantes a vós, e que sentíssemos como vós sentis; e eu suponho, que fôssemos feliz do mesmo modo. Dizei-nos, pois de que modo sois feliz, e em que desejais que vos sejamos semelhantes.

– A minha felicidade, disse o pastor, tem uma base permanente. Tudo o que há no mundo, é concupiscência da carne, e concupiscência dos olhos, e soberba da vida; a qual não vem do Pai, mas sim do mundo. Ora o mundo passa, e também a sua concupiscência. Mas o que faz a vontade de Deus, permanece eternamente. (I S. João 2: 16-17) Todo aquele que gasta a mais feliz e longa vida sobre a terra há de morrer e há de descer à sepultura para não ser mais visto. Naquela hora ele há de deixar infalivelmente todos os seus bens terrenos, tudo lhe será tomado, nada lhe poderá dar conforto; e nenhuma destas cousas poderá mitigar o horror da eternidade. Considero por tanto, que o homem mais feliz é aquele que, em qualquer posição terrena, tem posto as suas esperanças naquilo que permanecerá com ele até a hora da morte.

Morte, interrompeu Theophilo com altivez; o que tenho eu a fazer com a morte?

    O velho pastor estremeceu e suspirou; e então respondeu seriamente: — Está escrito: Deixai vir a Mim os pequeninos, e não os embaraceis parque dos tais é o reino de Deus. (S. Marcos 10:14).

     Theophilo mostrou-se ofendido e irado: e por alguns minutos não pude conter-se. Porém a final o seu bom senso prevaleceu sobre o seu mau humor, e disse:

É certo que morrem muitas pessoas mais moças do que nós, e creio que são mais felizes aqueles que estão preparados para morrer, e não tem de arrepender-se do modo porque se empregaram em sua vida; e vos agradecemos pelos vossos bons desejos, esperando que sejam atendidas as vossas orações para que nada façamos que desonre a nossa nobre linhagem, mas que vivamos honradamente e morramos em paz.

    O velho pastor suspirou e moveu o seu cajado para trás e para diante sobre a relva, como que em meditação profunda, ao passo que Theophilo e Sophia se conservavam silenciosos.

     Afinal o pastor levantou os olhos e fitando-os em Theophilo disse:

Ah, nobre mancebo, não sabeis qual o erro fatal era que viveis! Oxalá que se abrissem os olhos do vosso entendimento para que vísseis a verdade antes de ser demasiadamente tarde, para que possais apreciar devidamente aquilo que somente pôde sustentar um pecador moribundo na hora da morte; aquilo que só pôde habilitar um pobre, fraco e velho pecador como, eu, a contemplar a morte com tranquilidade, e mais ainda, com prazer, e esperar com esperança calma e firme essa importante mudança.

Há uma esperança, continuou o pastor, que é capaz de confortar naquele dia terrível, em que a pompa das riquezas, dos títulos, das honras, todas as doces carícias do mais vivo amor, a lembrança das mais nobres ações, e os mais fortes vínculos da natureza como um livro que se enrola (1), e quando todas as cenas terrestres serão dobradas como um vestido, há uma esperança que, naquele tempo, se tornará mais clara, brilhante, forte e substancial; e esta esperança é confiança na expiação e morte de Cristo, pela qual sendo purificados os nossos pecados somos apresentados diante de Deus, sem mancha, ruga, ou qualquer outra cousa semelhante.

Esta foi a esperança que sustentou minha mãe e minha mulher quando moribundas, e fez com que eu pudesse com alegria entregar meus filhos que foram meu último conforto na terra, à morte e à corrupção, tendo a feliz certeza que tendo eles morrido em Cristo, hão de aparecer também com ele na glória. Esta é a esperança que torna muito felizes os meus últimos dias de peregrinação sobre a terra, e o mais que posso desejar para os filhos de meu amo é eles que possam participar desta bendita esperança.

    O pastor ficou silencioso e Theophilo e Sophia levantaram-se e partiram; porém antes de irem muito longe, Theophilo voltou para perguntar ao pastor o
nome do livro que o acharam lendo com tanta atenção.
É a Bíblia, respondeu ele, e esta cópia me foi dada por minha mãe no seu leito de morte.

A Bíblia! disse Theophilo voltando para junto de sua irmã. Nunca vi tal livro, e hei de procurá-lo na livraria de meu pai, quando voltar ao castelo.

   Theophilo assim fez; e ao chegar à casa entrou na livraria, e depois de uma longa busca, achou a Bíblia.
     Este era um livro elegantemente encadernado, co, fechos de ouro, e tinha pertencido a uma senhora da família, que tinha sido afeiçoada aos Vaudois.

    Theophilo conheceu que o livro era a Bíblia, porque tinha letreiro nas costas; e por isso não abriu os fechos, mas levou o livro para o seu aposento, esperando uma ocasião mais conveniente para examiná-lo. Colocou por tanto o livro em sua estante, e em breve se esqueceu que o tinha ali. Esqueceu-se também da conversa que tinha tido com o velho pastor, e por algum tempo não se lembrou mais deste santo homem.

IMPRENSA EVANGELICA.
VOL. IV, Nº 02. Sábado, 18 de Janeiro de 1868, p. 11-12.

     Quando Theophilo e Sophia chegaram à idade de quinze anos, seus pais despediram os seus mestres, e lhes deram a liberdade de empregar o tempo no que melhor lhes agradasse.

     Todos os desejos de Theophilo eram satisfeitos por seu pai, que lhe deu um magnífico cavalo e edificou para ele, a um lado de sua casa, um elegante pavilhão com três apartamentos, um dos quais era uma sala que dava para o jardim e era adornado de um pórtico nobre, cujos pilares eram de mármore, e dele se viam todas as belezas do jardim. O segundo apartamento era uma livraria que continha todas as qualidades de livros, entre os quais estava também a Bíblia já mencionada. Nesta livraria havia uma bela coleção de estampas e pinturas, e uma harpa para Sophia tocar quando estivesse com seu irmão. O apartamento interior era o quarto de dormir, e nele havia todas as cousas que pudessem tornar o sono deleitável.

       O jardim para onde dava este pavilhão continha toda a variedade de plantas e flores que o clima admitia. Os outeiros se erguiam alcantiladamente além do jardim, donde pendiam graciosos arbustos, no meio dos quais se mostravam belas cachoeiras que pareciam colocadas de propósito aqui e ali para tornar a paisagem mais agradável. Ali no jardim podiam ser ouvidos os cantos dos lindos passarinhos que de contínuo adejavam por entre as árvores. A estes sons harmoniosos ajuntava-se a agradável fragrância das flores do jardim, cujas belezas unidas o tornavam quase um paraíso terrestre.

    Quando Theophilo se viu livre de seus mestres e de seus afazeres diários, e posto na posse de seu pavilhão, jardim e cavalo, julgou-se o mais feliz dos mortais e maior do que um rei. Ele então convidava sua amável irmã para participar dos seus prazeres, e exprimia o desejo, que ela passasse todo o tempo possível em seu pavilhão.

    Ele tinha aprendido, quando pequeno ainda, a montar a cavalo, e assim não experimentava dificuldade alguma em guiar o seu.

     Achava grande prazer em passear montado pelo parque e ensinar o seu corsel a corvetear e dar patadas no chão, a fim de mostrar a sua destreza equestre.

      Uma manhã, quando passeava a cavalo no parque, encontrou o velho pastor levando um cordeirinho nos braços. Theophilo fez parar o seu cavalo, e o pastor inclinou-se cumprimentando-o.

Há muito tempo que nós não encontramos, disse Theophilo, apeando-se do cavalo e dando a rédea ao criado que o seguia.

Pensei muito na conversa que tivemos há tempos, porém ultimamente tenho sido tão feliz, que não tenho tido tempo para pensar em vós. Olhai para este belo cavalo! acrescentou ele. É meu. É mais ligeiro do que qualquer dos da estrebaria de meu pai! Agora já, estou livre dos meus estudos e posso gastar os dias como me agradar. Tenho uma variedade de prazeres. Meu pai não se nega a satisfazer nenhum dos meus desejos. Agora, pois meu bom velho, creio que convireis que sou mais feliz do que vós.

Não argumentarei agora convosco, disse o velho pastor sorrindo-se, porque não estais era estado de ser convencido por qualquer cousa que eu vos possa dizer; lembrai-vos, porém das palavras deste velho, e pensai nelas depois. Os prazeres que agora gozais são enganosos e hão de cessar algum dia. Os vossos gozos deixarão de dar-vos gosto com a mesma certeza que todo homem há de morrer.

Sim, disse Theophilo, todos os prazeres cessam com a vida.

Não, respondeu o velho pastor, antes da vossa morte haveis de perder o gosto da maior parte dos vossos prazeres, e a morte vos privará do que por ventura ainda vos possa restar.
Qual é a vantagem, que tirais, disse Theophilo altivamente, de assim me perturbardes em meus prazeres? Porque desejais tanto descontentar-me?

Peço que me perdoeis, senhor, respondeu o pastor, por ter-vos descontentado. Eu somente desejava conduzir-vos à verdadeira e única fonte de prazer. Na Bíblia achareis um conselheiro mais sábio e seguro do que este pobre velho.

A Bíblia! disse Theophilo. Hei de lê-la assim que chegar à casa. Chamou então o criado para que lhe trouxesse o cavalo, e pulando em cima da sela disse ao pastor:  

– Nunca vos vejo sem que me façais descontente comigo mesmo. Mas, acrescentou ele com mais brandura e menos altivez, creio que me não poreis de mau humor acerca de meu cavalo. Dizendo isto cravou as esporas no cavalo e desapareceu da vista do pastor, de quem em breve se esqueceu, como também de seus sábios conselhos. Esqueceu-se também de procurar a Bíblia quando chegou à casa.

IMPRENSA EVANGELICA.
VOL. IV, Nº 03. Sábado, 1º de Fevereiro de 1868, p. 11-12.

   Alguns meses depois disto, em um dia em que Theophilo tinha voltado de seu usual passeio no parque,
foi acometido por uma dor num lado, a que deu pouca importância, mas que assustou tanto a seus pais, que mandaram chamar a toda a pressa o médico.

    Theophilo foi condemnado pelo médico a tomar muitos remédios, e o que ainda era pior para ele, foi proibido de dar os seus passeios a cavalo; em consequência do que mandaram o seu belo cavalo para fora.

    Teophilo a princípio submeteu-se com enfado a este tratamento; porém, achando a final que não havia outro remédio, e que sua força e vigor pareciam restaurar-se, consolou-se com seu jardim, e gozava mais deste novo prazer, porque Sophia o compartilhava.

    Então ele principiou a formar novos projetos com todo o ardor da mocidade. Ao pé da montanha que se elevava acima do jardim havia um belo penedo adornado de parasitas e musgo. Theophilo desejou então que ali fosse feita uma gruta para si e sua irmã. Empregou, portanto alguns homens na escavação do penedo e outros em procurar nas fraldas das montanhas pedaços de marcassitas e minerais para adornar a sua gruta. A escavação foi em breve feita e os minerais e marcassitas colocados nos lugares onde produzissem o mais agradável efeito. No dia em que se acabou a gruta Theophilo ordenou que o seu jantar e a harpa de sua irmã fossem levados para ali. Então ele e sua amada irmã sentaram-se na gruta satisfeitos e com os olhos brilhando de prazer. Sophia divertiu a seu irmão durante o jantar tocando sua harmoniosa harpa. Depois do jantar sentaram-se juntos a conversar e formar novos planos, e, pouco depois se lhes apresentou o velho pastor trazendo em um pequeno cesto umas poucas de belas petrificações que tinha achado em um lugar retirado da montanha.

O pastor apresentou o cesto a Theophilo cumprimentando-o com humildade, e já se retirava quando o moço o chamou para gratificá-lo com algum dinheiro. O ancião recusou a gratificação e Theophilo o mandou assentar e deu-lhe um copo de vinho.

O pastor recusou também o vinho com cortesia e já ia retirar-se quando Theophilo lhe disse:

Demorai-vos um pouco: gosto de ouvir-vos falar a pesar de me tornardes sempre descontente comigo mesmo. Desejo que admireis a minha gruta e jardim. Não tenho eu todas as cousas que o mundo pode dar para tornar uma pessoa feliz? E não é a minha felicidade aumentada com a presença de minha irmã, a doce companheira de minha infância?

É verdade, replicou o pastor, que gozais de todos os prazeres em mui alto grau. Glorificai a vosso Pai celeste para que vos dê prazeres eternos quando estes falharem.

Tolo sou eu, disse Theophilo, por conversar convosco quando vos vejo, porque sempre amargurais os meus prazeres com as vossas tristes reflexões.

Perdoai-me, replicou o pastor. Não tive intenção de desgostar-vos. Talvez que me não entendêsseis. — Eu queria, dizer que enquanto os vossos prazeres são inocentes, como parecem, em nada diminuiriam se os consagrásseis ao serviço e à gloria de Deus. Gozaríeis menos dos prazeres da presente vida se tivésseis a bendita segurança da vida eterna, e dos prazeres que duram para sempre a mão direita de Deus? Ser-vos-ia menos agradável esta gruta, acrescentou ele, dirigindo-se a Sophia, se ela fosse tornada em lugar de oração pela purificadora influência do Espírito Santo; ou de contemplação sobre a glória e excelência do Salvador que foi crucificado pelos pecados dos homens? Oh meus amigos! acrescentou ele com os olhos arrasados de lágrimas, interessai-vos pela vossa Salvação e procurai o Salvador enquanto pode ser achado. Em toda esta vasta criação, em todo o universo mesmo, a cruz de Cristo é a única âncora de esperança que pode sustentar o “pecador moribundo, quando já a cova e a destruição o ameaçam tragar. — Permite que Deus vos guie por seus conselhos e vos receba depois na glória.

Theophilo ficou em silêncio olhando atentamente para o pastor, porém Sophia respondeu:

E como poderemos conhecer os conselhos de Deus?

Pelo estudo das Escrituras Sagradas, respondeu o pastor, porque elas contêm todo o conselho de Deus. Elas nos ensinam primeiramente como o homem foi feito inocente e caiu por sua desobediência incorrendo por sua queda na pena de morte espiritual e temporal; ou em outras palavras, o seu corpo tornou-se corrupto e a sua alma, completamente poluída pelo pecado. Assim, pois, como o homem não pode escapar às moléstias, às dores e à morte temporal; tão pouco é capaz de fazer qualquer cousa que seja boa e aceitável avista de Deus; e sendo por seu pecado alienado de seu Criador está debaixo da maldição e condenação eternas.

O que! disse Theophilo com altivez, afirmais que todo o gênero humano é naturalmente tão vil e abominável que merece o castigo eterno!?

Perdoai-me, disse o pastor, eu não desejava emitir minha opinião, e só o fiz porque me constrangestes
a falar sem reserva.

Certamente, disse Theophilo reprimindo-se; ninguém vos pode culpar por isso. Vós credes que todo o gênero humano é totalmente corrompido.

Creio, disse o pastor, porque assim o acho escrito nas Escrituras. Além disso, as suas palavras são confirmadas pela experiência daqueles que, sendo iluminados pelo Espírito de Deus, se ocupam em examinar seus próprios corações.

Tendes então experimentado que o vosso coração é corrompido? perguntou Theophilo.

Sim, respondeu o pastor. Todas as inclinações e pensamentos de meu coração são sempre para o mal, e o que ali posso achar de bom não é meu próprio, mas sim a obra do Espírito de Deus.

Surpreendes-me, disse Theophilo. Não sinto esses movimentos do pecado em meu coração.

Ah! replicou o pastor, vós não podereis sentir o pecado até que Deus desperte o vosso entendimento contra ele. O pecado domina absolutamente o homem natural, e conserva todos os seus membros em sujeição como num sono de morte; porém quando este sono ou morte em pecado é perturbado quando o desejo de fazer bem é excitado no homem natural e ele começa a odiar o pecado, começa nele uma forte luta, e é então que principiamos a sentir as algemas e cadeias com que estávamos d’antes ligados, e a dor delas se torna intolerável.

Tudo isto é para mim estranho, disse Sophia e a ser verdade, vós e eu, Theophilo, estamos debaixo da condenação de que o pastor falia.

Eu porém não creio nisto, acrescentou Theophilo.
Se eu, por exemplo, tivesse estado toda a minha vida debaixo do domínio do pecado tê-lo-ia cometido. Em que respeito, meu velho, continuou ele imperiosamente, tenho eu vivido era pecado? Conheceis-me bastante para me responder a esta pergunta.

Esta conversação, disse o pastor, tem ido além do que eu pensava que ela fosse. Desejo, porém, ser sincero.

A minha religião me ensina que devo respeitar a todos os homens e a dar honra a quem é devida honra, e tributo a quem tributo é devido: pego-vos por tanto humildemente que não façais mais perguntas sobre este assunto.

Falai sem receio porque não nos prenderemos, disse Sophia; e eu estou curiosa por saber que ideia fazeis de nós.

Não posso falar de vós nem de vosso irmão em particular, disse o pastor, porque é muito pouco o que de vós sei. Tudo que posso dizer, porém, é que tenho razões para pensar que tendes sido educados por vossos pais em hábitos de moralidade, e não fica bem a uma pessoa da minha condição aventurar qualquer juízo a vosso respeito.

— Porém, disse Sophia, se tendes razões para crer que fomos bem educados por nossos pais, e se, como dizeis, é pouco o que sabeis a nosso respeito, o que faz com que vos dirijais a nós como a pecadores debaixo da condenação.

É porque, disse o pastor, todos os homens são pecadores e estão debaixo da condenação a menos que o proveito da morte de Cristo lhes seja aplicado pela fé.

Porém, disse Sophia, em que consiste o nosso pecado? Como podemos nós ser pecadores, se fomos educados em princípios de moralidade por nossos pais?

O assento do pecado é o coração, disse o pastor. As ações más não são mais do que o fruto produzido por este coração mau; e muitas vezes se pode obstar a que façamos grandes crimes, mas na presença de Deus o mesmo pensamento mau é um crime muito grave. Muitas vezes os nossos amigos e parentes, e até o orgulho, e a prudência nos podem impedir de cometer ações más, sem que por isso o coração, que só busca os seus prazeres, deixe de ser menos corrupto e inimigo de Deus.

Muitas pessoas, pois, vivem em pecado ainda que o não saibam, as suas afeições sendo pervertidas, amando mais a si do que a Deus.

Peço de novo que me perdoeis, e permitais que humildemente vos aconselhe que consulteis a Bíblia sobre este assunto.

Dizendo isto o pastor partiu e Theophilo disse a sua irmã:

As conversas deste homem sempre me perturbam e me fazem descontente com o meu estado; e, no entanto, sempre que o vejo sinto-me inclinado a ouvi-lo falar.

Tomai a vossa harpa e vede se podeis dissipar-me estas ideias tristes, e então amanhã hei de procurar a Bíblia para lê-la.

Sophia, pois, começou a tocar e falar com seu irmão acerca de novos projetos para o embelezamento do jardim, até que a final se desfez a impressão que o pastor tinha produzido.

IMPRENSA EVANGELICA.
VOL. IV, Nº 04. Sábado, 15 de Fevereiro de 1868, p. 26-28.

Pouco depois dos acontecimentos que temos narrado foram acabados todos os ornamentos da frota de Theophilo. Este, porém, teve uma violenta recaída em sua moléstia, que de tal maneira assustou seus pães, que imediatamente mandaram chamar o médico.

O médico receitou mais remédios e proibiu que Theophilo fosse mais a sua gruta, dizendo que devia permanecer em casa, e que só à tarde lhe era permitido sentar-se à janela para contemplar seu belo jardim. Assim, pois, os amigos de Theophilo encarregaram-se de suprir-lhe todos os divertimentos que sua situação admitia, a fim de lhe tornar menos sensível sua reclusão.  

Sophia redobrava sua afeição e atenções para com ele. Estava sempre em sua companhia, ora lendo-lhe, ora tocando sua harpa, ora contando-lhe histórias, às vezes sentando-se com ele à janela que dava para o jardim, e outras trazendo-lhe aromáticas flores e ia satisfazendo o menor de seus caprichos. E, como a moléstia de Theophilo não fosse dolorosa, nem suas forças se tivessem diminuído muito, ele esperava que em breve tempo se restabeleceria, e gozaria então de sua antiga liberdade.

Uma bela tarde Theophilo estava com sua irmã sentado à janela gozando da vista do jardim e via um cordeirinho correndo e em seguida dele o velho pastor com seu cajado em punho.

Ali vai nosso amigo, disse Theophilo a sua irmã. Chamai-o.

Para que, querido irmão? respondeu Sophia. Não vos põe a sua conversação sempre de mau humor?

– É verdade, replicou Theophilo, e não obstante experimento incompreensível desejo de ouvi-lo conversar.

Sophia, pois, para agradar seu irmão, saiu em busca do pastor e o trouxe até os degraus do pórtico.

Pois bem, meu velho amigo, disse Theophilo, aqui estou recluso pela moléstia em meu quarto; julgo que isto vos pode oferecer um bom assunto para moralizar. Para mim tendes sido um verdadeiro profeta.

Os meus prazeres me estão abandonando antes de eu ter perdido o gosto por eles. Já estou privado de meu cavalo e de minha gruta, e não sei ainda que outras privações se seguirão a estas.

Theophilo disse tudo isto, não com gravidade, mas naquele espírito de zombaria de que se servem os moços profanos e sem juízo. O pastor, porém, parecia não reparar no espírito em que ele falava e respondeu com seriedade:

– Oh! meu querido senhor, deixai-me persuadir-vos enquanto ainda é tempo e a vida vos dá lugar, a procurar ao Salvador. Lede vossa Bíblia, lede e estudai esse precioso livro. Tomai o conselho de um velho; trabalhai por interessar-vos na vossa salvação; lançai para longe toda a confiança que tendes em vós mesmo, e confiai somente naquele que vos pode sustentar no dia em que os elementos com o calor se dissolverão, e a terra e todas as obras que há nela, se atrasarão. (II S. Pedro 3:10). Não duvido que tenhais uma Bíblia, acrescentou o pastor dirigindo-se a Sophia. Se realmente amais a vosso irmão, lede-lha. Conduzi-o ao Salvador, ao Cordeiro ensanguentado; segui-o com humildade na presente vida, para que na futura o sigais na glória.

Enquanto o pastor ainda falava, Theophilo mudou de cor e o espírito zombadeiro com que tinha falado a princípio o abandonou. Quando o pastor acabou de falar , Theophilo disse-lhe:

–Hei de ler a Bíblia, e dir-vos-ei qual a impressão que me causar na primeira vez que vos vir.

–Pois bem, disse o pastor cumprimentando-o, e retirou-se.

Assim que o pastor se retirou, chegaram ao pórtico o pai e a mãe de Theophilo , que ali passaram o resto da tarde em companhia de seus filhos. Theophilo vendo-se cercado por seus amigos tornou-se muito alegre; suas sérias reflexões o deixaram, e não pensou mais na promessa que tinha feito ao pastor.

IMPRENSA EVANGELICA.
VOL. IV, Nº 05. Sábado, 7 de Março de 1868, p. 36.

O coração do homem, que esta apartado de seu Deus, é depravado e relutante. O homem por natureza é inimigo de Deus, alienado de seu Criador e amante de si mesmo. Todas as aflições que ele possa sofrer poucas vezes o fazem voltar a Deus; mesmo as aflições são inteiramente incapazes de produzir este efeito, a menos que a influência do Espírito Santo no coração do homem não coopere para este fim. A experiência tem mostrado que a cousa mais trivial que atravessa o caminho do peregrino em sua ida para Sião, diverte sua atenção e desvia seus olhos, que deveriam estar inteiramente fixados na estrela que lhe serve de guia.

Theophilo e Sophia, pois, em breve se esqueceram da Bíblia, e talvez que se não tornassem mais a recordar do pastor, se a força das circunstâncias não fizesse com que se encontrassem outra vez.

A moléstia de Theophilo se agravava mais de dia para dia: uma tosse constante o afligia, suas forças o abandonavam, emagrecia a olhos vistos, e foi obrigado a sujeitar-se a novas privações; pois que o médico não lhe permitia mais o gozar do fresco da tarde no pórtico de sua sala e ordenou que não saísse de seu quarto, ou sua livraria. Sua fraqueza era tal que o obrigava a estar deitado no sofá todo o dia; tinha muito fastio e estava tão desassossegado que nem podia ouvir sua irmã tocar na harpa, ler-lhe, nem mesmo falar-lhe.

O médico vinha vê-lo todos os dias, e depois de experimentar todos os remédios de que se pode lembrar, receitou-lhe uma infusão de certa erva muito rara, que crescia sobre as montanhas.

De todos os servos do barão, nenhum conhecia tanto as plantas silvestres como o velho pastor. Consequentemente este foi encarregado de procurar a tal erva e trazer a infusão dela a Theophilo.

Quando o pastor entrou trazendo-lhe o remédio, Theophilo estava languidamente deitado sobre o sofá. Vendo o pastor aproximar-se lembrou-se das conversas, que com ele tinha tido, e de ter quebrado a promessa que lhe fizera a última vez que se tinham visto. Então um repentino sentimento de vergonha fez corar sua pálida face, e levantando-se disse:

Não guardei a promessa que vos fiz. Ainda não li a Bíblia.

Sinto muito, replicou o pastor. Tendes-vos privado de um grande conforto, daquilo que talvez em breve possa ser vossa única consolação. Já tendes experimentado, moço como sois, quão enganosos são os prazeres terrestres, que facilmente desaparecem da mão que os segura.

Certamente, disse Theophilo com seriedade. Tenho experimentado o que dizeis, porque tenho sido privado de todos os meus prazeres um a um, e tenho pouca esperança de gozar deles outra vez.

Oh! não faleis desse modo querido irmão, disse Sophia debulhando-se em lágrimas. O mesmo dia nos viu nascer e sinto que não vos sobreviveria por muito tempo: não faleis, pois da morte. Haveis de viver muitos anos para fazer a felicidade de vossa irmã.

Senhora, disse o pastor, se realmente amais vosso irmão, não tenteis enganá-lo, nem alimenteis esperanças, que não podem ser cumpridas. A sentença de morte pesa sobre todo o gênero humano, e só a Deus Todo Poderoso compete decidir se ela será em breve executada sobre vosso irmão ou não. O que é certo, porém, é que ele já tem recebido diversos avisos terríveis, que o devem levar a examinar-se seriamente se em seu estado presente pode aparecer diante de Deus, reto Juiz de todos os homens, e cujos olhos são tão puros que não podem encarar a iniquidade.

Não me lembro de cousa alguma que tenha feito, disse Theophilo, que me faça temer a morte.

Considerai, replicou o pastor, que Deus é um ser perfeito em todos os seus atributos. Ele é perfeitamente santo, sábio, misericordioso e justo. A justiça perfeita não pode perdoar pecados nem admitir um pecador ao gozo da felicidade. Se, portanto, tendes ofendido a santa lei de Deus, mesmo no mais pequeno ponto, tendes também incorrido na pena do desagrado de Deus, e estais debaixo de sua ira e da vingança da justiça divina. Deveis, pois, esforçar-vos por procurar a retidão de um homem que nunca pecou, para que vestindo-vos dessa retidão, possais sem temor aparecer na presença de um Deus santo. Este homem é Jesus Cristo, Deus revelado em carne, aquele que cumpriu toda a justiça. Recorrei a Ele e vos preservará; Ele será para vós retidão e salvação. Estas são as palavras de uma das mais gratas promessas de Deus: Não temas, porque Eu sou contigo: não te desencaminhes, porque Eu sou teu Deus: Eu te confortarei e te auxiliarei, e a destra do meu justo te tomou. (Is. 41:10).

Theophilo suspirou e conservou-se em silêncio, e Sophia estava quase sufocada pelo pranto. — O pastor tendo-se inclinado já se retirava, mas voltou de novo e disse:

– Meus jovens amigos, tomai, eu vos peço, o conselho de um ancião; lede a Bíblia e fazei dela o vosso estudo.

–Ficai certo de que a leremos, disse Theophilo. O pastor retirou-se, e Theophilo ordenou a um criado que trouxesse de sua estante a Bíblia e a pusesse sobre a mesa. O criado obedeceu e pôs a Bíblia no lugar que lhe tinham ordenado, porém naquele momento o médico entrou e a Bíblia teve de conservar-se fechada. Naquela tarde Theophilo pensou muitas vezes em lê-la, mas sentia-se indisposto para dar-se a este trabalho e por seu entendimento na devota procura de seu Deus.

IMPRENSA EVANGELICA.
VOL. IV, Nº 06. Sábado, 21 de Março de 1868, p. 47-48.

No dia seguinte aos acontecimentos narrados, Theophilo sentiu-se muito pior. Não pode levantar-se da cama, não podia comer quase nada, nem suportar a luz do dia. A dor que tinha em um lado tornava-se cada vez mais aguda, sua tosse tornou-se continua, diminuíam-se cada vez mais para ele os prazeres que desta vida lhe restavam, e parecia iminente o termo de sua existência.

Depois de uma noite de dores e sofrimentos, que lhe parecia a última da vida, pedia que seus pais e irmã viessem sentar-se ao lado de sua cama. Eles vieram, e em quanto sua mana se desfazia em lágrimas à sua cabeceira, ele se dirigiu a todos nos seguintes termos:

— Sinto avizinhar-se-me a morte e a necessidade de preparar-me para ela, e vos mandei pedir que viésseis aqui para que désseis alguma consolação ao meu espírito, que agora sofre mais que meu corpo agonizante. Dizei-me em que devo firmar minhas esperanças além da morte e onde poderei achar consolação.

O Barão e a Baronesa ficaram aterrados com esta pergunta. Eles pertenciam ao número daqueles que tão comumente em França se chamam Católicos Romanos, mas que de fato não têm religião alguma, apenas crendo na existência da divindade. Não tendo, portanto, consolação alguma para administrar a seu filho, olharam um para o outro admirados e silenciosos.

A Baronesa foi quem primeira quebrou o silêncio, debulhando-se em lágrimas e beijando a mão de seu filho.

– Meu filho, disse ela, meu querido filho, não fales assim da morte. Nós não podemos ser privados de ti, nem sofrer tua separação.

– Minha mãe, respondeu Theophilo com emoção, não tenteis enganar-me deste modo. Sinto que vou morrer, e vos peço que me digais de que modo devo aparecer ante o Juiz de todos os homens.

– Porque temes? disse a Baronesa. Se há Deus, um jovem virtuoso como tens sido não deveria temer de comparecer em sua presença, mas antes pelo contrário esperar receber de sua mão a recompensa de seus méritos.

– Se há Deus! repetiu Theophilo. Se eu tenho um Criador e Benfeitor divino, e tenho vivido até agora na maior negligencia e desprezo dele onde estão meus méritos para com ele? O que tenho eu feito para com meus semelhantes? Sinto neste momento terrível que ainda que tivesse devotado a maior parte da vida, e os mais fortes poderes do entendimento ao serviço de meu Deus e de meus semelhantes, não me atreveria a comparecer em sua presença confiando nestas boas obras, nem a alegar estes serviços imperfeitos naquele lugar em que só é admitida a perfeição absoluta. Há um Deus, minha mãe, acrescentou ele, olhando atentamente para a Baronesa; sinto que há um Deus justo e Santo, e que em breve tenho de comparecer em sua presença para dele receber minha eterna sentença!

– Querido irmão, disse Sophia, não vos posso ouvir falar assim!

– Sophia, disse Theophilo, fica certa de que me não podes confortar. Quanto mais te tenho amado, mais dificultosa se torna para mim a separação que prevejo em breve vai ter lugar. É chegada aquela hora, em que as riquezas tomam asas e os títulos se desvanecem no ar; em que os prazeres passados se tornam em mordeduras de serpentes; em que nem pai, mãe, esposa ou marido podem dar qualquer conforto; em que os mais doces laços d’amor, acrescentou ele olhando para sua mana, as amizades formadas ainda no berço têm de ser dissolvidas; em que o olho e o ouvido não podem ministrar-nos delícia alguma; em que o estômago recusa o alimento, e em que finalmente a sepultura espera sua presa.

Este é o momento a que tenho chegado, e não tenho esperança alguma que me anime. Theophilo tinha feito um grande esforço falando tanto, pouco depois desta conversa, pois começou a dizer palavras sem nexo e o médico chegando, viu-se obrigado a dar-lhe um narcótico.

Depois de ter dormido por algumas horas Theophilo acordou ao meio dia tendo mais sossegado o seu espírito. Sua irmã, que tinha ficado encostada ao pé de sua cama, tinha cedido ao sono e ao cansaço, e estava dormindo. O criado que assistia de continuo a Theophilo vendo-o acordar, perguntou-lhe se queria que chamasse um padre.

Não, respondeu Theophilo, traz-me a Bíblia, que deixei sobre a mesa.

O criado obedeceu, e Theophilo recebendo o livro abriu-o e começou a voltar as folhas. Depois de alguns segundos de exame disse, olhando com ansiedade para o criado:

Quero achar meu Salvador. Onde o acharei?

Senhor, respondeu o criado, permite que chame um padre.

O que eu quero, disse o pobre Theophilo, é achar meu Salvador.

Sua voz acordou sua irmã, que despertando perguntou:

Que queres, meu querido irmão?

Quero achar meu Salvador, disse Theophilo apontando para a Bíblia, que por falta de força tinha deixado cair sobre a cama.

Shophia tomou, pois a Bíblia, e começou a procurar, porém não podendo achar o que procurava pôs o livro sobre uma cadeira e disse:

Oh! meu Theophilo, talvez que se tivéssemos seguido o conselho do velho pastor pudéssemos agora achar conforto neste precioso livro.

O velho pastor! repetiu Theophilo com avidez, mandai-o chamar já.

Theophilo foi obedecido e o pastor veio.

IMPRENSA EVANGELICA.
VOL. IV, Nº 07. Sábado, 04 de Abril de 1868, p. 54-55.

Ao entrar o pastor, o moribundo jovem lhe estendeu a mão dizendo:

— Meu amigo e conselheiro, vós me quisestes guiar ao caminho da paz, mas eu recusei seguir vossos conselhos. Sou agora chegado ao tempo predito por vós ainda quando me davam prazer as cousas deste mundo.

— Senhor replicou o pastor, estais chegado ao estado espiritual em que vos desejava ver há anos. A alma imortal não se pode satisfazer com os prazeres transitórios do mundo, requer alguma cousa mais.
Contudo, o homem é tão miserável, que é levado por sua natureza corrupta a amar as cousas terrenas e é de fato alienado de Deus; que se pega a qualquer esperança enganosa, mais do que à salvação que lhe é oferecida; e que lhe foi comprada pelo Filho de Deus. Porque assim amou Deus ao mundo, que lhe deu a Seu Filho Unigênito; para que todo o que crê Nele, não pereça, mas tenha a vida eterna. S. João 3:16

Porém eu, disse Theophilo, não tenho esperança, nem refúgio, nem confiança; estou totalmente por terra.

Por terra! Pelo que?! disse o pastor.

Por meus pecados, replicou Theophilo. Primeiramente me dissestes que eu era pecador, e que meu coração era totalmente corrupto e alienado de Deus. Não acreditei então que isto fosse assim, mas agora creio que nada de bom há em mim. Onde está agora a minha confiança de então? Ajuntou ele suspirando e levantando os olhos para o céu. Dizei-me, continuou ele com veemência, pode para mim haver alguma esperança? Quem me defenderá quando for chamado à presença de Deus?

O pastor tomou a Bíblia de cima da cadeira e leu:

Vinde a Mim todos os que andais em trabalho, e vos achais carregadas, e Eu vos aliviarei. (S. Mat. 11:28). Estas são as palavras, acrescentou o pastor, que nosso Salvador Jesus Cristo dirige a todos aqueles, que sentem o peso de seus pecados, e sofrem com o peso desta intolerável carga. A estes o Redentor diz: Vinde a Mim e vos aliviarei. E outra vez: 0 que vem a Mim, não o lançarei fora. (S. João 6: 37).

São essas realmente as palavras do Senhor Jesus? replicou Theophilo. Seguramente não me enganaríeis nesta hora terrível.

Não, disse o pastor. Porque duvidais? Tenho-vos eu enganado até aqui? Não vos disse eu que no vosso leito de agonia não vos confortariam as distinções e os bens deste mundo? Não fui eu sempre sincero para convosco nos dias de vossa prosperidade? Como, pois vos enganaria agora?

Creio que não sois capaz de fazê-lo, disse Theophilo, mas eu sou tão grande pecador... Aos olhos do Deus santo, uma criatura de pensamentos impuros como eu, deve ser um objeto repugnante. Oh! Sinto que não posso ser salvo! Essas doces promessas, que repetistes não são dirigidas a mim.

Sinto-me em grande dificuldade para convosco, disse o pastor, em razão de tendes de aprender a vossa religião no momento em que mais precisais de suas consolações.

Porém eu desejo aprender alguma cousa, disse Theophilo, seja ela qual for.

O pastor levantou os olhos ao céu em ação de graças e disse:
Desejais fazer bem. Quem criou este desejo em um coração soberbo e obstinado? Quem senão Deus? Que tendo começado em vós a boa obra a aperfeiçoará.

O pastor tomou então a Bíblia e leu a historia da criação e queda do homem, como é dada na primeira parte do livro de Gênesis. Depois fechou o livro e ajuntou:

Conheceis agora, meu jovem amigo, o modo pelo qual a natureza do homem se tornou corrupta. Os terríveis efeitos da queda de nossos primeiros pais envolveram toda a sua descendência. O primeiro homem, Adão, trouxe ao mundo a morte temporal e espiritual, e a natureza humana se tornou tão total e inteiramente corrompida, que todo o indivíduo deve, como diz o mesmo Salvador, nascer outra vez antes de poder entrar em seu reino: a alma tem de ser renovada pela influencia do Espírito Santo, e a parte material, que é nosso corpo, tem de ser desfeita antes de ser purificada.

Foi necessário então que Theophilo tomasse algum repouso, porém ele não permitiu que o pastor o deixasse. Seu sono foi curto, e acordou chamando pelo pastor, a quem disse quando o viu:

Pensei que me tínheis deixado. Peço-vos que me não deixeis, porque se me deixardes, ficarei realmente só.

Dizeis mal, disse o pastor. Sou um pecador como vós, e não deveis olhar para o homem, mas só para Deus.

Sim, disse Theophilo, mas vós me guiareis para Deus.

Espero fazê-lo com sua ajuda, respondeu o pastor; porque sem ele não podemos fazer cousa alguma.

A conversação que se seguiu foi sobre a natureza de Deus, sobre as três sagradas pessoas da Divindade, e ofícios de cada uma delas. O pastor mostrou a Theophilo como o Pai, o Filho e o Espírito Santo obram juntos na salvação do homem: o Pai por Seu amor em dar Seu Filho, o Filho por Seus sofrimentos e o Espírito Santo limpando e purificando os corações.

Não foi sem dificuldade que Theophilo recebeu estas doutrinas, e se convenceu que só podia ser justificado pela fé em Jesus Cristo e que não havia outro meio de salvação. No entanto ele orou ardentemente junto com o pastor, para que Deus lhe desse fé, e implorou humildemente o ensino do Espírito Santo.

IMPRENSA EVANGELICA.
VOL. V, Nº 08. Sábado, 18 de Abril de 1868, p. 59-60.

Por alguns dias Theophilo parecia melhorar, e o pastor aproveitou esta ocasião para levar avante com o favor de Deus, a obra que nele foi começada. Ele orava muito com Theophilo, a quem ensinava a examinar seu coração e a humilhar-se aos pés da cruz.

Tanto o Barão como a Baronesa e os domésticos não gostavam que o pastor estivesse tanto com Theophilo e só a muitos rogos e lágrimas de Sophia é que foi permitido a Theophilo ter o pastor sempre consigo.

Estamos agora chegados quase ao termo da vida do jovem e nobre Theophilo. A moléstia tinha-se abrandado e lhe deu dez dias de sossego, tempo este em que o pastor trabalhou ardentemente para levá-lo ao caminho direito; e apesar de estar Theophilo profundamente oprimido pelo conhecimento de seus pecados, era evidente que ele crescia em graça e no conhecimento de seu Salvador. É verdade que então não podia aplicar para seu conforto as ricas promessas do Evangelho, mas seu zelo pela glória do Deus e seu amor pelas almas dos homens se tornavam de dia para dia mais brilhantes e ardentes, e ao mesmo tempo sua humildade se fazia cada vez mais notável.

A afeição que consagrava à sua irmã, também se tornava mais espiritual; e muitas vezes quando estava só com ela a exortava a importar-se com sua salvação com veemência tal como só o amor mais santo e ardente podia excitar.

Discutia também com seus pais, do modo o mais afetuoso, sobre este mesmo assunto; e ninguém considerava indigno do seu mais terno cuidado pelo bem de suas almas.

Quão agradáveis e belas não eram as influências do Espírito, exemplificadas co caso de Theophilo! Como estava o vale exaltado e arrasada a montanha! (Is. 40:4.)

No fim destes dez dias Theophilo foi de novo acometido pela enfermidade, mais violentamente do que antes. Por três dias este jovem sofreu muito, tanto na alma como no corpo. A morte parecia prestes a descarregar-lhe o golpe fatal, e ele ainda não podia lançar mão de promessa alguma que lhe desse paz.

Passava então pelo vale das sombras da morte, e o rei dos terrores o cercava com todos os seus artifícios. Em sua angustia exclamou muitas vezes a propósito: Porque escondes tu de mim o teu, rosto, e porque me julgas tu teu inimigo? (Jó 13:24). Porque te apartaste tu, Senhor, para longe, e me desamparas nas necessidades e na tributação? (Sal. 10:2 parte 1)

Durante todo este tempo o fiel pastor esteve sempre à cabeceira de sua cama dizendo-lhe palavras de consolação, lendo-lhe a Bíblia e orando com ele e por ele. Costumava dizer-lhe:

– Teu Pai celeste me enviou a ti com esta mensagem: Por um momento, num breve espaço te deixei; mas Eu te congregarei com grandes misericórdias. No momento da Minha indignação escondi de ti por um pouco a Minha face, mas com sempiterna misericórdia Me compadeci de ti, disse o Senhor teu Redentor. (Isa. 54: 7,8). Não vos hei de deixar órfãos; Eu fiei de vir a vós. (S. João 14:18). Para pôr os que choram em Sião, e dar-lhes coroa por cinza, óleo de gozo por pranto; em lugar de espírito de tristeza, manto de louvor: e os que estão nela serão chamados os Fortes de justiça, plantas do Senhor para lhe darem glória. (Is. 61:3)

Theophilo algumas vezes respondia, dizendo:

– Essas palavras são muito agradáveis, mas não me são dirigidas; eu sou tão vil, tão pecador...

Ao cabo de três dias, no entanto, ele estava mais sossegado; a luta parecia acabada, e a amargura da morte passada. Já não podia conversar com o pastor, mas a expressão de sua fisionomia era de paz. Ele disse ainda:

– Vejo meu Salvador e estou satisfeito.

Nas últimas horas de sua vida, tinha muito prazer em ouvir o pastor repetir as palavras de vida eterna e as promessas do Evangelho. Uma vez ele disse:

– Vossas palavras me são agradáveis.

A última pessoa que conheceu foi sua querida Sophia, cuja mão beijou poucas horas antes de expirar. Enquanto conservou os sentidos não consentiu que tirassem a Bíblia de sua cabeceira. Suas últimas palavras foram:

– Meu Salvador eu vou para ti.

Seus últimos momentos lhe foram comparativamente tranquillos.

Assim morreu o nobre Theophilo no décimo nono ano de sua idade, sem ter ainda atingido a estatura e beleza varonil. Pode-se dizer a respeito dele: O senhor abateu no caminho sua força, e abreviou seus dias.

Ah! De que serviu a Theophilo, na hora de sua morte, ser o único e muito amado filho de uma família nobre, ter nascido herdeiro de uma grande fortuna, ser inteligente e belo, ter gozado saúde, e ter sido preservado de hábitos imorais! De que lhe valeram todas estas cousas! Ele veio a conhecer que a lembrança de nada disto podia dar consolação nem esperança a um moribundo. Não pode ser confortado pelo Salvador senão depois de ser levado pelos seus muitos sofrimentos a renunciar-se a si mesmo e a cair ferido e nu aos pés da cruz. Permiti que vos peça, caro leitor, que lanceis de vós toda a confiança que possais ter em vós mesmo ou em qualquer cousa que praticardes, e que vos lanceis com Theophilo e com todos os santos da antiguidade, humilhado e desamparado, aos pés da cruz de Cristo.

Theophilo foi sepultado, segundo seu próprio desejo, em um cemitério de Vaudois, situado em um dos vales mais solitários dos Pyreneos, perto das sepulturas de certos indivíduos de sua família, que tinham protegido os Pobres Homens de Lyons, e professado a mesma fé.

Imediatamente depois da morte de seu irmão, Sophia foi acometida da mesma moléstia fatal que lhe tinha posto termo à existência. O progresso desta enfermidade foi apressado pela tristeza que se apoderou dela pela morte de seu irmão. Poucos meses depois ela expirou também e seguiu Theophilo à sepultura.

O velho pastor fez companhia também à Sophia durante sua enfermidade, e quando também a viu morrer em paz e na santa esperança de ir ter com seu Salvador, exclamou: Agora é, Senhor, que tu despedes no teu seio em paz, segundo a Tua palavra; porque tenho visto Tua salvação!

Não é sabido o modo porque os pães de Theophilo acabaram seus dias; mas há razão para crer que os acabaram santamente, porque conservaram em sua casa o velho pastor enquanto viveu, e tinham muito prazer em ouvi-lo falar.

Sophia foi, a seu próprio pedido, sepultada no mesmo jazigo de seu irmão: e na lápide que cobria a sua sepultura foram gravadas as seguintes palavras:
CONSAGRADA Á MEMÓRIA
DE
THEOPHILO E SOPHIA
ÚNICOS FILHOS
DO
BARÃO DE *...
Que morreram no ano de nosso Senhor Jesus Cristo de 1721, aos dezenove anos de sua idade, confiando só em Cristo para a salvação, e só em sua morte para o perdão de seus pecados e paz de suas consciências.

Eram amáveis na sua vida, e na morte não se separaram.
II Samuel 123.
Fim.
IMPRENSA EVANGELICA.
VOL. V, Nº 09. Sábado, 02 de Maio de 1868, p. 67-68.


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