A viagem da Christiana com os seus filhos – John Bunyan (1628-1688)




Vi no meu sonho que seguiram pelo caminho determinado e que o tempo era bom.
    Do outro lado do muro que defendia o caminho que haviam de seguir, existia um jardim pertencente ao dono do cão, e algumas das árvores suspenderam os seus ramos carregados de frutos, por cima do muro, os quais, estando maduros, os que precisavam deles colhiam-os e comiam. Portanto, os filhos de Cristiana, vendo os frutos, apanharam alguns e principiaram a comê-los. Sua mãe repreendeu-os, mas eles sem atenderem à repreensão continuaram a colher os frutos.
– Bem sabeis, meus filhos, disse ela, que estais transgredindo a lei de Deus; estes frutos não são nossos.
     Ela, porém, não sabia que pertenciam ao inimigo, pois se em tal pensasse, morreria de medo. Prosseguiram na sua viagem, e viram logo dois espíritos demasiadamente feios, que vinham ao seu encontro. Cristiana e Piedade cobriram-se com os seus véus; os moços passaram adiante, e afinal encontraram-se com eles. Ao chegarem perto das mulheres queriam abraçá-las, mas Cristiana disse-lhes: “Retirai-vos, desaparecei da nossa vista”; porém eles fingindo-se surdos, não se importavam com as palavras de Cristiana e as seguraram, por cujo motivo Cristiana ficou muito irada e deu-lhes com os pés. Piedade, do mesmo modo, procurou escapar-se deles. Cristiana disse-lhes outra vez: “Retirai-vos, somos peregrinos e não temos dinheiro; ao contrário vivemos de esmolas.” Então respondeu-lhes um deles: “Nós não queremos dinheiro, porém vos pedimos uma coisa, a qual sendo concedida, ficarei rica e felizes.”
    Mas Cristiana respondeu-lhes: “Não queremos ouvir-vos, nem conceder o que pedis, estamos com pressa e não podemos demorar-nos; os nossos negócios são de vida e de morte. Então ela e os seus companheiros procuraram escapar e seguir, porém eles lhes impediram o passo e disseram: “Não queremos fazer-vos mal, o que queremos é outra coisa.
Cristiana. – Ai, ai, quereis perder-nos o corpo e a alma. Sei que é para esse fim que viestes ao nosso encontro; mas antes morreremos do que nos deixaremos cair em tais pecados, porque eles nos perderam para sempre. Depois gritaram, clamaram e invocaram o apoio das leis que protegem as mulheres, (Deuteronômio 22:25-27). Ainda assim os homens não as deixaram seguir, elas tornaram a bradar e estando perto da porta donde haviam saído, os da casa, ouvindo as vozes, e distinguindo a de Cristiana, vieram socorrê-las. Acharam as mulheres em grande aperto, e os meninos chorando. Então disse aquele que veio valer-lhes aos salteadores: “O que estais fazendo? Quereis tentar o povo do Senhor para pecar?” Procurou prendê-los, porém eles fugiram saltando o muro para o jardim daquele a quem pertencia o cão, e assim protegeu-os. Então elas disseram: “Agradecemos ao teu príncipe, porque estávamos muito amedrontadas; agradecemos a ti também, que vieste valer-nos, senão teríamos ficado perdidas.
Socorro. – Admiro-me de não terdes pedido ao Senhor um condutor, quando ainda estáveis na porta, visto que sois mulheres fracas. Ele havia de conceder-vo-lo, e assim poderíeis evitar estes perigos e incômodos.
Cristiana. – Ai de nós, ficamos contentes com as bênçãos atuais e esquecemo-nos dos perigos futuros. Demais, quem poderia supor que três homens se esconderiam perto do palácio do Rei? É verdade que devíamos ter pedido um condutor ao Senhor, porém admiro-me de que ele não nos mandasse um, visto saber que era para o nosso bem.
Socorro. – Às vezes é melhor não dar as coisas que se não pedem, porque de outro modo se tornam desprezíveis. Mas quando se sente grande necessidade de alguma coisa, torna-se logo muito apreciada e de muito proveito.
 Se o meu Senhor vos tivesse dado um condutor, não terias deplorado a vossa falta em não pedi-lo, como agora. Assim tornar-se-á proveitosa para vós a viagem e ficareis mais apercebida.
Cristiana. – Devemos então voltar ao Senhor, para confessar o nosso pecado e pedir-lhe um condutor?
Socorro. – Hei de apresentar-lhe a vossa confissão. Não precisais voltar, porque em todos os lugares onde estiverdes não sentireis falta de coisa alguma, em todas as pousadas que o meu senhor tem preparado para os seus peregrinos; há tudo o que é necessário para suprir as suas faltas e evitar todos os perigos. Porém ele diz: “Ainda nisto me acharam favorável para que eu lhes faça esta mercê.” (Ezequiel 36:37). É este um pedido de pouco valor. Dizendo isto tornou para o seu lugar.
Piedade. – Ora, que tristeza, supunha que estávamos livres de perigos, e que nunca havíamos de ter mais desgostos.
Cristiana. – És ainda muito moça para entender isso, minha amiga, mas a culpa é minha, porque eu já sabia deste perigo antes de sair, e não providenciei para evitá-lo quando tive oportunidade. Sim, sou eu a culpada.
Piedade. – Como podias saber disso antes de partir? Relata-me
Cristiana. – Eu te satisfarei. Antes de sair de casa, sonhei uma noite, e no meu sonho vi dois homens justamente como estes, a minha cabeceira, concertando a minha perdição; contar-te-ei as suas palavras. Disseram: “Que havemos de fazer com esta mulher, porque ela pede perdão, que dormindo que acordada? Se continuar assim, havemos de perdê-la, como temos perdido ao seu marido.” Eu devia estar avisada e ter providenciado.
Piedade. – Por essa rua negligência temos ocasião de reconhecer as nossas culpas, e também o nosso Senhor aproveitou a oportunidade para mostrar as riquezas da Sua graça, pois tem-se-nos revelado com uma bondade desmerecida. Livrou-nos das mãos daqueles que são mais fortes do que nós.
   Tratando deste assunto aproximaram-se de uma casa que estava ao lado do seu caminho, que havia sido edificado para dar hospedagem aos peregrinos. Chegando a essa casa que denominavam do Intérprete, e estando à porta, ouviram muitas vozes, entre as quais distinguiram o nome de Cristiana, porque tinha se espalhado o boato de que ela e os seus filhos haviam seguido viagem.  Tornaram-se alegres, porquanto sabiam que ela era a mulher de Cristão, aquela que há pouco tempo não queria ouvir falar em semelhante viagem.

    Cristiana e os mais que a seguiam ficaram fora ouvindo-os falar dela, sem saberem que ela aí estivesse. Afinal, Cristiana bateu, como fizera à porta estreita, e veio logo abri-la uma moça que, olhando, viu duas mulheres. Ela lhe disse: “Com quem desejais falar?” Cristiana respondeu: “Ouvimos dizer que esta casa dá hospedagem aos peregrinos, e nós somos viajantes e pedimos que sejamos participantes da vossa hospitalidade, porque o dia já está a findar e não queremos ir mais longe.” E a moça lhe disse: Tenha a bondade de dar-me o seu nome, a fim de cientificar ao meu Senhor.
Cristiana. – “O meu nome é Cristiana, sou a mulher daquele peregrino que há anos passou por aqui, e estes são os meus filhos. Esta moça é minha companheira que encetou viagem comigo.”
 
Imprensa Evangelica, nº 45, 
07 de Novembro de 1878, p. 355-356

Comentários