Então Inocência (assim
se chamava a moça), entrou e disse àqueles que lá estavam: “Podeis imaginar
quem está à porta? Lá estão Cristiana,
seus filhos e sua companheira querendo entrar.”
Ficaram todos muito
satisfeitos e foram participar ao seu senhor. Imediatamente ela entrou e disse:
“És tu, aquela Cristiana a quem Cristão deixou quando saiu de casa para
viajar?
Cristiana. – Sim, sou aquela mulher que era tão dura, que não se importava
com os incômodos de seu marido; deixei-o sair só, e estes são seus quatro
filhos; porém agora venho, porque estou convencida que este é o único
verdadeiro caminho.
Intérprete. – Está cumprido assim o que se acha escrito do homem que disse
ao seu filho: “Vai trabalhar hoje na minha vinha; porém ele respondeu: Não vou;
mas depois arrependeu-se e foi.” (Mateus 21:29)
Então disse Cristiana: “Assim seja; oxalá que eu
esteja nesse caso e seja considerada sem mancha, nem falta.
Intérprete. – Por que ficas à porta? Entra, filha de Abraão; agora mesmo
estávamos falando de ti, porque tivemos a notícia de te haveres tornado
peregrina. Entrai, meus filhos, e tu também, moça. E levou todos para dentro.
Logo que entraram, os fizeram descansar, e os da casa, que costumavam a tratar
dos hóspedes, vieram vê-los. E todos mostravam-se contentes, visto Cristiana ter-se tornado peregrina.
Acariciavam os meninos e tratavam Piedade
com muita bondade, bendizendo a todos.
Como o chá ainda não
estivesse pronto, o Intérprete levou-os aos seus quartos e mostrou-lhes as
coisas que Cristão já tinha visto.
Viram o homem na gaiola, o sonhador, o homem que venceu os seus inimigos, os
quadros, e todas as mais coisas tão proveitosas ao cristão.
Depois que Cristiana e os seus companheiros
entenderam estas coisas, o Intérprete
levou-os a um quarto onde estava um homem que não podia olhar senão para o
chão, tendo na mão um ancilho de lixo; porém o homem não levantou os olhos, e
de nada fez caso; mas continuou a ajuntar a palha, o cisco e a poeira. Cristiana disse: “Julgo saber o que
significa isso. Este é um homem do mundo, não é assim?”
“É verdade, disse o Intérprete,
o seu ancilho de lixo representa o seu espírito carnal, e ali vede-o ajuntar
para si a palha, o cisco e a poeira sem fazer caso daquele que lhe oferece a
coroa celeste, e que o chama lá de cima. tudo isso nos ensina que os mundanos
consideram a ceia como uma fábula, e que as coisas do mundo são para eles as
únicas reais. E como vês que ele somente olha para o chão, aprende que os
homens do mundo cuidam unicamente das coisas mundanas, e para eles as coisas de
Deus não têm valor.
Então Cristiana
disse: “Alonga de mim a vaidade e as palavras de mentira.”
Aquela oração tem sido negligenciada e até quase desconhecida, disse o Intérprete. “Não me dês as riquezas” são
palavras raramente ouvidas. A palha, o cisco e a poeira são as coisas mais
procuradas.
Com
isso Cristiana e Piedade choraram e disseram: “Ai, ai, tudo é muito justo.” Depois
de lhes mostrar estas coisas, levou-os ao melhor aposento da casa, que era uma
sala de bonita aparência, e disse-lhes que a olhassem atentamente, para ver se
deparavam com alguma coisa proveitosa.
Olharam-na, pois, mas nada viram, porque só havia uma aranha na parede,
e não notaram isso. Piedade então
respondeu: “Não, meu Senhor, nada vejo”; Cristiana,
porém, conservou-se muda.
O Intérprete disse-lhes: “Tornai a olhar”;
ela firmou os olhos e disse: “Nada veio, senão uma aranha muito feia na
parede”, ao que ele respondeu: “Crês que há só uma aranha em todo este grande
quarto?” As lágrimas brotaram dos olhos de Cristiana,
porque ela era muito sagaz, conheceu bem depressa as coisas, e disse-lhe: “Sim,
meu Senhor, há mais aranhas, cujo veneno é muito mais ruim que o daquela.
O Intérprete fitou-a com bondade, e
disse-lhe: “Proferiste a verdade.” Piedade
corou, e os meninos cobriram o rosto, porque adivinharam o enigma.
O Intérprete continuou: “A aranha se
sustenta nas suas mãos e mora nos palácios dos reis.” (Provérbios 30:28). O fim
destas palavras é mostrar-vos que, ainda que estejais cheios do veneno do
pecado, pela fé podeis firmar-vos e morar nos melhores lugares do palácio do
Rei dos céus.
Julguei que era esta a significação, disse Cristiana; mas não pude acertar tudo. Pensei que éramos como
aranhas, criaturas muito feias, ainda que estivéssemos em moradas muito
bonitas; mas que devíamos aprender desta aranha, tão feia e tão venenosa, a
lançar mão da fé; não me veio à lembrança; contudo vejo que ela tem se segurado
com firmeza e mora no melhor quarto da casa. Deus nada fez em vão.
Ele
os levou a outro quarto, onde havia uma galinha com pintos, e disse que os
notassem. Um dos pintos foi à vasilha para beber e cada vez que bebia levantava
a cabeça e os olhos ao céu. “Vede, disse ele, como faz este pinto e aprendei
dele a reconhecer donde vêm as vossas mercês, olhai sempre para o céu.”
Disse-lhes outra vez: “Tornai a notar”; olharam, e notaram o modo porque
tratava a galinha os seus pintos. Ela tinha um modo comum de chamá-los, que
sempre usava; um outro especial que usava quando os chamava para comer, e outro
para se recolherem (Mateus 28:33) e além disso também soltava um grito especial.
Agora, disse ele, comparai esta galinha com Deus, vosso Rei, e os pintos aos
seus filhos obedientes, porque semelhantemente ele tem diferentes maneiras de
tratar o seu povo. Usando da sua chamada comum, nada ele dá; a sua chamada
especial significa que ele quer dar-vos alguma coisa; tem também uma voz de
recolhimento para aqueles que estão abrigados sob suas asas, e um forte clamor
quando está a chegar o inimigo. Mostro-vos estas coisas, meus amados, porque
sois fracos, e elas são fáceis para entender.
Cristiana. – Pois tenha a bondade de
mostrar-nos mais ainda.
Ele
levou-os então a um matadouro na ocasião em que um homem matava uma ovelha, que
se conservava muda, sofrendo pacificamente.
Intérprete. – Deveis aprender desta
ovelha a sofrer, a suportar as injúrias sem murmurações ou queixas. Eis como
ela sofre a morte sem resistir. Vosso Rei vos chama as suas ovelhas.
Depois levou-os
ao jardim, onde havia grande variedade de flores, e disse-lhes: “Vedes estas
flores?” Cristiana respondeu:
“Vemos.”
“Todas são diversas, disse ele, não só na
extensão das hastes que as levam a grande altura, como em qualidades, cheiro e
virtude; também o jardineiro as tem colocado onde lhe apraz, e todas ficam nos
seus lugares, sem brigar uma com outras.
Imprensa Evangelica, nº 47,
21 de Novembro de 1878, p. 371-372
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