A viagem da Christiana com os seus filhos – John Bunyan (1628-1688)




Intérprete. – Principiaste bem, alcançarás o que procuras. Depois perguntou a Piedade:
     “E tu, minha amiga, o que te levou a procurar a salvação?” Ela corou, tremeu e conservou-se silenciosa. Ele lhe disse então: “Não temas, crê e diz o que se passa no teu coração.”
Piedade. – Meu Senhor, tenho pouca experiência, e por isso prefiro antes emudecer, visto que tenho medo de perder-me. Não posso relatar visões e sonhos como a minha amiga Cristiana, nem culpar-me de negligenciar os conselhos daqueles que me eram caros.
Intérprete. – Então, qual o motivo que te deliberou também a viajar?
Piedade. – Quando Cristiana estava preparando-se para sair, por acaso eu e outra minha vizinha fomos visitá-la. Vendo o que ela estava fazendo, lhe perguntamos o que queria dizer tudo aquilo. Ela nos disse que havia sido chamada para seguir seu marido, e que o tinha visto em um sonho; que habitava em um lugar lindíssimo, em companhia dos espíritos celestes, trazendo uma coroa e tendo uma harpa nas suas mãos, que comia e bebia à mesa do seu Rei, e cantava os louvores daquele que o levou para lá.
   Enquanto ela relatava estas coisas, fiquei comovida e disse comigo: “Se isto é verdade, deixarei meus pais e minha pátria, e acompanharei Cristiana.” Depois indaguei dela tudo o que desejava saber sobre as coisas que me havia contado, ansiosa por acompanhá-la, porque vi que era perigoso ficar em nossa cidade. Contudo saí com muito pesar, porque, ainda que estivesse com vontade de retirar-me, sentia deixar atrás todos os meus parentes. Porém é meu intento acompanhar Cristiana para a terra dos cristãos e do seu rei.
Intérprete. – Tu também principiaste bem, porque deste ouvidos à verdade. Tu és como Rute, que pelo amor que teve para Noemi e o Senhor seu Deus, saiu da sua terra e deixou seus pais, para habitar com um povo que não conhecia (Rute 2:11-12). O Senhor te dê o galardão do bem que fizeste e recebas uma plena recompensa do Senhor Deus de Israel, para quem vieste e sob cujas asas te recolheste.
    Depois da ceia recolhemo-nos aos quartos para dormir, as mulheres em um e os moços em outro. Porém Piedade não pode conciliar o sono, por estar demasiadamente satisfeita, já não tinha razão para duvidar que seria bem acolhida e, por isso louvou e bendisse a Deus, que lhe tinha mostrado a Sua graça.
    Na manhã seguinte levantaram-se com o sol e aprontaram-se para sair, mas o Intérprete queria que se demorassem mais. “Porque, disse ele, deveis sair daqui bem preparados.” Depois disse à moça que lhes abrisse a porta. “Conduze-os ao banho e limpa-lhes toda a poeira do caminho.” Então a moça Inocência conduziu-os ao jardim e os trouxe ao banho, dizendo-lhes que se lavassem, porque o Senhor queria que todas as mulheres que viajassem assim o fizessem. Portanto, entrando todos no banho, saíram não somente limpos, mas refrescados e fortalecidos, e pareciam muito mais bonitos e fortes.
    Logo que voltaram do banho, o Intérprete encarou-os e disse-lhes: “Formosos como a lua”, depois mandou trazer o selo com que costumava selar aqueles que ali se banhavam. Trouxeram-lhe o selo e os selou, afim de que todos os conhecessem por onde quer que fossem. O selo era a significação da Páscoa, que os filhos de Israel comeram quando saíram do Egito, e foi posto nas suas frentes. Este tornou-os mais lindos, porque deu muita graça aos seus rostos, que ficaram semelhantes aos dos anjos.
   O Intérprete chamou outra vez Inocência e disse-lhe que fosse ao guarda-roupa e trouxesse vestuário para todos, e ela trouxe roupa branca e ele ordenou-lhes que a vestissem. Esta roupa era de linho branco e finíssimo, e as mulheres olharam-se admiradas, pois cada uma notou a beleza da outra e não a sua, portanto, cada uma achava a outra melhor e diziam: Tu és a mais formosa do que eu. Os moços ficaram admirados de ver esta transformação.
     Então o Intérprete chamou a um dos seus servos de nome Valente e mandou que empunhasse a espada, o escudo e o capacete, para conduzir as mulheres e os moços até a casa chamada Formosa, onde deviam pernoitar. Este, portanto, tomou as suas armas e foi adiante deles; o Intérprete despediu-se deles, bem como os da casa, com muito agrado.
   Vi no meu sonho que seguiram e o Sr. Valente os precedeu; afinal chegaram ao lugar onde o fardo de Cristão caíra das costas e rolara no sepulcro. Pararam ali e louvaram a Deus.
    “Agora, disse Cristiana, vem-me à lembrança as palavras que ouvimos à porta, a saber: que receberemos o perdão por palavra e por obra. Por palavra, isto é, por promessa; por obra, pelo modo de obter o perdão para nós. Já sei o que é a promessa, mas quero saber da tua boca, Sr. Valente, alguma coisa do modo de obtê-la.
Valente. – Perdão por obra, quer dizer que o perdão foi obtido por alguém a favor de outro que precisava dele, isto é, não pela pessoa que o recebe. Para falar mais claramente, o perdão que vós todos recebestes, foi ganho para vós, por outrem, a saber: por aquele que vos recebeu à porta. Ele obteve este perdão da seguinte maneira: obedeceu em vosso lugar e verteu o seu sangue para vos purificar.
Cristiana. – Mas se ele dá-nos a sua própria justiça, o que terá para si?
Valente. – Ele tem muito mais do que vós precisais ou que ele precisa.
Cristiana. – Explicai-nos isto.

Imprensa Evangelica, nº 50,
12 de Dezembro de 1878, p. 397-398

Comentários