Valente. – Com muito prazer, mas em primeiro lugar, tenho a dizer que
aquele de quem falo não tem igual. Tem duas naturezas distintas com uma pessoa,
e estas duas não se podem dividir. A cada uma dessas naturezas pertence uma
justiça própria, essencial a essa natureza unidas, e não é uma justiça da
divindade separada da humanidade, nem a da humanidade separada da divindade,
porém uma justiça que é própria da união destas duas; a justiça convém àquele
que foi constituído nosso mediador por Deus.
Não tenho aquela
justiça, ele cessa de ser Deus; não tendo esta, deixa de ser homem perfeito;
participando-nos a terceira, ele nos faz conhecer aquela perfeição que o torna
capaz de ser o nosso mediador. Tem uma justiça que é a sua obediência à lei
revelada; esta, está imputada aos pecadores e cobre os seus pecados. Portanto
ele diz: “Porque assim como pela desobediência de um só homem foram muitos
feitos pecadores, assim também pela obediência de um só muitos se tornarão
justos.”
Cristiana. – Pois aquela outra justiça não é útil para nós?
Valente. – Sim, porque, se bem que é essencial a sua natureza e ofício,
não se pode comunicar aos outros, contudo é em virtude dela que a sua justiça
de mediador torna-se-nos eficaz. Sua justiça divina torna eficaz a sua
obediência, a justiça da sua humanidade torna valiosa a sua obediência para a
nossa justificação, e a justiça própria destas duas naturezas unidas,
habilita-o a operar a nossa salvação. Há, pois, uma justiça que Cristo, como
Deus, não necessita, porque sem ela é Deus. Há também uma justiça que Cristo
como homem não precisa, porque sem esta é homem perfeito. Ainda mais – há uma
justiça de que Cristo, como Deus-homem, não necessita, porque sem ela é
perfeito. Eis uma justiça que ele nos pode transmitir. Eis o dom de justiça!
Jesus Cristo, sendo
debaixo da lei, deve dar este dom da graça, porque a lei exige que se pratique
não somente a justiça, mas também a caridade. Portanto, segundo a lei, o que
tem duas túnicas (Mateus 10:10) deve repartir com aquele que não o tem. Nosso
Senhor tem duas, uma para Si e outra para dar, por isso Ele dá de graça àquele
que não tem. Deste modo, meus amigos, todos vós tendes o perdão pela palavra e
pela obra de outrem. É Nosso Senhor Jesus Cristo que a operou e que dá o que
ganhou a qualquer mendigo que precise. Ainda mais, para que perdoe por obra,
Ele, que deve pagar alguma coisa como preço, a Deus, bem como preparar com quem
nos cubra. O pecado tem nos entregado à maldição justa de uma lei santa; ora, é
mister que sejamos justificados desta maldição pela redenção, sendo pago um
resgate. Este resgate é o sangue que o Nosso Senhor verteu em nosso lugar, e
pelas nossas transgressões. Deste modo resgatou-vos pelo Seu sangue e revestiu
de justiça as nossas almas manchadas (Romanos 8:33) e assim Deus vos aceita, e
não vos condenará quando julgar o mundo.
Cristiana. – Ó que bem! Agora vejo a significação de sermos perdoados por
palavra e por obra, cara Piedade;
esforcemo-nos por conservar estas coisas na memória; e, meus filhos,
lembrai-vos delas também. Pois, meu Senhor, não foi isto que fez com que o
fardo de Cristão lhe caísse das
costas, por cujo motivo saltou de prazer?
Valente. – Sim, foi esta crença que o livrou do fardo, do qual não podia
livrar-se de outra maneira, e era para dar-lhe uma prova disso que ele foi
obrigado a levá-lo até a cruz.
Cristiana. – Assim supus, porque, se bem que estivesse antes cheia de
prazer, contudo sinto-me agora dez vezes mais satisfeita. Estou persuadida que,
se o homem mais sobrecarregado do mundo estivesse aqui e pudesse ver e crer,
como eu, isto havia de encher-lhe de alegria o coração.
Valente. – A consideração destas coisas não somente dá-nos consolo, mas
produz em nós um amor profundo, porque refletindo que a salvação vem, não só
por promessa, mas também por obra, quem poderá deixar de pensar no modo e nos
meios da redenção e também naquele que a operou?
Cristiana. – Assim é: doe-me o coração ao lembrar-me que ele verteu o Seu
sangue por amor de mim. Ó Tu, que és amor! Tu, que és bendito. Devo te
pertencer, porque Tu me compraste. Deus te pertence todo, porque pagaste mil
vezes o meu resgate. Não é de admirar que isto fizesse meu marido verter
lágrimas e o animasse a caminhar tão depressa. Estou certa que ele desejava
levar-me consigo, mas eu, miserável que era, deixei-o ir só. Oxalá, Piedade, que teus pais aqui estivessem,
e a Sra. Teimosa. Sim, desejava de
todo o coração que madame Lascívia
também aqui estivesse. Certamente os seus corações seriam tocados, nem o medo
daquela, nem a concupiscência desta, podiam persuadi-las a voltar, recusando
tornarem-se peregrinas.
Valente. – Falas agora inspirada pelos teus ardentes sentimentos. Será
sempre assim? Ainda mais, tudo isso não é revelado a todos, mesmo àqueles que
presenciaram a morte de Jesus Cristo. Havia algumas circunstâncias que viram
correr o sangue do Seu lado e fizeram tão pouco caso disso que, em vez de O
lamentarem, escarneceram Dele, e em vez de tornarem-se Seus discípulos,
endureceram os seus corações contra Ele. Todo o entendimento que tendes das
coisas que vos tenho explicado, minhas filhas, é uma graça especial.
Lembrai-vos que eu vos disse que não é pelo cacarejar comum que a galinha chama
os seus pintos para comer. Este entendimento é uma graça especial.
Vi no meu sonho que
chegaram ao lugar onde Inconsideração,
Preguiça e Temeridade deitaram-se para dormir, quando Cristão ali caminhava, e eis que foram enforcados no meio do
caminho.
Piedade, pois, disse ao seu
condutor: quem são estes três homens e por que razão foram enforcados?
Valente. – Eram homens de maus costumes, que não queiram ser peregrinos
e, além disso, impediam os outros de o serem. Entregavam-se à preguiça e às
loucuras, e procuravam conduzir os outros pelo mesmo caminho, persuadindo-os,
contudo, que no fim haviam de sair bem. Dormiam quando Cristão passou por aí, e agora estão enforcados.
Imprensa Evangelica, nº 51,
19 de Dezembro de 1878, p. 403-404
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