A viagem da Christiana com os seus filhos – John Bunyan (1628-1688)



  Na noite seguinte Cristiana teve um sonho e viu nele um pergaminho largo, aberto diante de si, no qual estavam escritos todos os tipos dos seus crimes, pareciam-lhe demasiado negros.
    Então ela disse ainda: “Ó Deus, tem misericórdia de mim”, e os seus filhos a ouviam. Mais tarde ela viu na sua cabeceira dois espíritos imundos. É os que diziam: “O que devemos fazer com esta mulher que está implorando misericórdia, quer acordada, quer adormecida continua a proceder assim, havemos de perdê-la como temos perdido ao seu marido; devemos procurar distraí-la e tirando dela o pensamento das coisas futuras; de onde nada não há que impeça ela de se tornar-se-á peregrina.”
Cristiana despertou; muito banhada em suor, mas não tardou em adormecer outra vez.

     Naquele dia sonhou que ela via seu marido Cristão em um lugar de uma cidade juntos aos esperados do Céu, com uma harpa nas mãos diante de Um que se assentava sobre um trono, como um arco-íris por cima deles. Viu-o também ajoelhar-se no pavimento de ouro que estava por baixo dos pés do seu Rei, dizendo: “Eu te dou graças, porque me puseste neste lugar, meu Deus e meu Rei.” Então todas as pessoas que lá estavam cantaram e tocaram com as suas harpas, e nenhum vi que podia fazer soar aquele cântico senão Cristão e os seus companheiros.
    No dia seguinte que ela acordou para orar e conversar com os seus filhos, ouviu uma pancada na porta, que a fez exclamar: “Se veio no nome de Deus, entra.” Então o que lá estivera respondeu: “Amém,” e abriu a porta saudando e dizendo: “Paz seja nesta casa”. Depois ele disse:
Cristiana, sabes para que venho aqui?
     Ela tornou-se trêmula, desejando saber donde vinha e o que tinha a dizer-lhe, o que percebendo ele prosseguiu:
– O meu nome é Segredo, a minha morada é lá no alto. Dizem que desejas ir habitar lá e também corre um boato que reconheces o mal que outrora fizeste, endurecendo o coração contra o teu marido e retendo os teus filhos de segui-lo. Cristiana, aquele que tem misericórdia de ti invoca-me a dizer-te que ele é um Deus que sempre está pronto para perdoar e que deleita-se em apagar as suas maldades e também que saiba que estais convidada a comparecer na sua presença e chegar a sua mesa, porque te dará as bênçãos da sua casa e a herança de Jacó, teu pai. Ali está o teu marido Cristão, com muitos dos seus companheiros, e ali avista aquela face amável. Alegrar-se-ão todos eles ouvindo os teus passos no limiar da porta.
    Cristiana envergonhou-se e curvou a cabeça. O mensageiro prosseguiu:
– Aqui está também uma carta do Rei do teu marido.
       Lançando mão da carta, ela abriu-a, sentindo que tinha o aroma dos melhores perfumes (Cantares 1:3). O seu conteúdo era que o Rei desejava que ela fizesse o mesmo que o seu marido Cristão, a fim de chegar a sua cidade e ali permanecer na sua presença, feliz e satisfeita para sempre.
    A pobre mulher ficou tão comovida que exclamou:
– Meu Senhor, queira levar-me consigo, juntamente com os meus filhos, para adorarmos o Rei.
    Ele, porém, respondeu:
– As amarguras precede a felicidade; tens de sofrer muitas tribulações antes de entrar na cidade celeste, como deu-se com o teu marido. Aconselho-te, portanto, que procedes como ele, entrando pela porta estreita, através deste campo, porque esta vai dar no caminho pelo qual deves seguir, e desejo-te feliz viagem. Também te admoesto que guardes esta carta no seio e a leias, não somente para ti como para os teus filhos, até que o seu conteúdo grave-se no teu coração, pois é um dos cânticos que deves fazer uso durante a tua peregrinação (Salmo 118:54), e terás de restituí-la no fim da jornada.
    Vi no meu sonho que o velho ficara muito comovido ao relatar esta história, mas continuou. Cristiana chamou os seus filhos e principiou a falar-lhes do seguinte modo:
– Meus filhos, tenho sido muito perturbada ultimamente em consequência da morte de vosso pai, não porque duvide da sua felicidade, mas por saber que é feliz; aflijo-me muito, porém, do nosso estado, que é muito miserável. O meu comportamento para com vosso pai, nas suas tristezas, também me perturba, porque endureci, não só o meu, mas também os vossos corações contra ele, e recusei segui-lo na sua viagem. Estes pensamentos matar-me-iam se não me valesse um sonho que tive à noite passada e a esperança que hoje despertou no meu coração um estrangeiro que apareceu-me inopinadamente. Vamos, meus filhos, preparemo-nos e partamos para a porta estreita que dá entrada no caminho que conduz à cidade celeste, onde encontraremos vosso pai e os seus companheiros em paz, conforme as leis daquela terra.
    Correram-lhe então pelas faces lágrimas de alegria, em vista da deliberação de sua mãe.
   O estrangeiro despediu-se deles e principiaram os preparativos para a viagem.
  No momento em que estavam para sair, duas mulheres, vizinhas de Cristiana, chegaram e bateram à porta; ela respondeu como anteriormente:
– Se viverdes em nome do Senhor, entrai.
    As mulheres estranharam esta maneira de expressão, porque Cristiana não tinha por costume falar assim. Contudo, entraram, encontrando-a preparada para sair de casa.
– Vizinha, disseram elas, o que significa isso?
    Cristiana respondeu então a mais velha, que se chamava a Sra. Temerosa: “Estou para fazer uma viagem.”
     Esta Temerosa era filha daquele indivíduo que encontrou Cristão no monte da Dificuldade e queria que ele voltasse, com temor dos leões.
Temerosa. – Que viagem vai, pois, fazer?
Cristiana. – Vou seguir meu marido, e pôs-se a chorar.
Temerosa. – Rogo-te que não faças isso, por amor dos teus filhos; não cometas tal loucura.
Cristiana. – Os meus filhos me acompanham, nenhum deles quer ficar.
Temerosa. – Quero saber, porém, quem induziu-te a proceder assim.
Cristiana. – Ai, minha vizinha, se soubesses tanto como eu, não duvido que me acompanharíeis.
Temerosa. – Com efeito, que novo conhecimento é esse que te separa dos teus amigos, e te leva para lugares desconhecidos?
Cristiana. – Tenho estado muito desgostosa desde a partida de meu marido, especialmente desde que ele atravessou o rio.
    Porém, o que mais me incomoda é o meu comportamento para com ele durante o tempo da sua aflição. Agora acho-me no mesmo estado aflitivo e ninguém pode deter-me de fazer a viagem. Sonhei a noite passada que o via. Oxalá que estivesse com ele, na presença do Rei daquela terra, com quem vive; assenta-se com ele a sua mesa, sendo companheiro dos espíritos dos justos, possuindo uma morada com a qual o melhor palácio da terra não pode ser comparado (2 Coríntios 5:1-4). O Rei também mandou chamar-me, prometendo-me receber quando lá chegar. O seu mensageiro saiu há pouco, trouxe-me uma carta convidando-me para ir para lá. Assim falando, ela apresentou a carta, leu-a e depois disse-lhes:
    Que tendes que dizer agora?
Temerosa. – Ora, que loucura tem se apoderado de ti e do teu marido, para afrontarem tais dificuldades? Tens ouvido falar das desgraças que o teu marido encontrou, mesmo nos princípios da sua viagem. O nosso vizinho Obstinado pode testificar isso, porque acompanhou-o, e também Inconstante, mas afinal temeram ir mais longe e voltaram. Temos ouvido falar muitas vezes do seu encontro com os Leões, Apoleão, a Sombra da morte e muitas outras coisas. E não deveis esquecer-te dos perigos que encontrou na cidade de Vaidade. Se lhe custou tanto, sendo ele homem, quanto mais difícil será a ti, uma pobre mulher. Reflete também que estes teus filhos são ossos dos teus ossos e carne da tua carne. Ainda que estejas disposta a afrontar estes perigos, contudo, por amor destes, fique em casa.

    Mas Christiana respondeu:

– Não me tentes, tenho a oportunidade de ganhar muita coisa e seria requintada loucura o não aproveitar uma ocasião tão propícia. Quanto a estas dificuldades de que me falas, não me desanimam; elas provam que estou no caminho da salvação.  As tristezas hão de tornar mais apreciáveis os gozos. E visto que não viestes em nome do Senhor, como eu disse, rogo-vos que vos retireis, para não continuardes a angustiar-me.
Imprensa Evangelica, nº 40,
03 de Outubro de 1878, p. 316-317

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