A viagem da Christiana com os seus filhos – John Bunyan (1628-1688)



     
Deste modo conversavam um pouco, e depois adormeceram.
      No dia seguinte, quando acordaram, Cristiana disse à Piedade: “Porque riste enquanto dormias? Tiveste, com certeza, algum sonho.”
Piedade. – Sim, e era um sonho muito agradável, mas estás certa de que ri-me?
Cristiana. – Riste-te; mas conta-me o sonho que tiveste.
Piedade. – Sonhei que estava em um lugar solitário, deplorando a dureza do meu coração e muitas pessoas me rodearam logo para ver-me e para ouvir o que eu dizia. Ouviram-me enquanto deplorava a minha dureza de coração. Alguns riram-se, outros me chamaram de louca, e principiaram a maltratar-me. Imediatamente vi uma pessoa com asas aproximar-se e dizer-me: “O que tens, Piedade?” Depois de indagar do que eu sentia, continuou: “Paz seja contigo”; enxugou as lágrimas e vestiu-me de roupas lindíssimas (Ezequiel 16:8-11). Também colocou-me uma corrente de ouro no pescoço e ornou-me com os mais preciosos enfeites. Depois tomou-me pela mão dizendo: “Segue-me.” Segui-o até chegarmos a uma porta de ouro, na qual bateu, e quando abriram entrou, levando-me consigo até um trono onde assentava-se um como o Filho do homem,  e este me disse: “Bem-vinda, minha filha.” O lugar estava brilhante como o sol, e pensei que lá visse teu marido. Quando estava embevecida na contemplação do que via, despertei do sonho. Estive rindo?
Cristiana. – Sim, e tiveste razão. Era um bonito sonho, e creia que, como há nele alguma coisa de verdade na primeira parte, a última também será cumprida. “Deus fala uma vez, e segunda vez não repete a mesma coisa. Por visão noturna, quando cai supor sobre os homens, e estão dormindo no seu leito. (Jó 33:14-15). Não é preciso que fiquemos acordados para ter comunhão com Deus. ele pode falar-nos mesmo em sonhos, e fazer que ouçamos a sua voz. Nossos corações muitas vezes acordam, enquanto nós dormimos e Deus fala-lhes ou por provérbios, ou por sinais ou similitudes.
Piedade. – Estou cheia de satisfação pelo meu sonho, porque espero que seja cumprido de modo que tornarei a rir-me.
Cristiana. – São horas de levantarmo-nos e procurar saber o que devemos fazer.
Piedade. – Se os da casa nos convidar para ficarmos aqui um pouco, aceitemos. Quero ficar para conhecer melhor estas moças e Prudência. Elas têm fisionomias agradáveis e bonitas.
Cristiana. – Vamos ver. Depois de se vestirem, desceram r perguntaram-lhes como tinham passado a noite.
Piedade. – Muito bem, nunca na minha vida dormi melhor.
     As moças Prudência, Devoção e Caridade, as convidaram a demorar-se por algum tempo, dizendo-lhes que se utilizassem das melhores coisas da casa. “É de muito boa vontade”, acrescentou Caridade.
    Aceitaram o convite e aí ficaram por mais de um mês, que lhes foi muito proveitoso. Prudência queria ver de que modo Cristiana criava seus filhos, e pediu licença para fazer-lhes algumas perguntas. Principiou, portanto, pelo mais moço, cujo nome era Tiago.
Prudência. – Venha, Tiago. Podes dizer-me quem te criou?
Tiago. – Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo.
Prudência. – Muito bem. E quem te salva?
Tiago. – Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo.
Prudência. – Respondeste bem. Como é que Deus Pai te salva?
Tiago. – Por sua graça.
Prudência. – Como é que Deus Filho te salva?
Tiago. – Por sua justiça, morte, sangue e por sua vida.
Prudência. – Como é que Deus Espírito Santo te salva?
Tiago. – Por seu esclarecimento, sua renovação e sua preservação.
    Depois Prudência disse à Cristiana:
    “Tu tens ensinado bem aos teus filhos. Suponho que não preciso fazer as mesmas perguntas aos outros, visto que o mais moço respondeu tão bem. Não obstante, ela chamou outro e perguntou-lhe:
– Queres que te examine, José?
José. – Sim, senhora; com todo o meu coração.
Prudência. – O que é o homem?
José. – É uma criatura racional, feita por Deus, como já disse meu irmão.
Prudência. – Que se entende pela palavra “Salvo?”
José. – Que o homem pelo seu pecado tem se conservado em estado de escravidão e miséria.
Prudência. – Que se entende por ele ser salvo pela Trindade?
José. – Que o pecado é um tirano tão forte que ninguém pode nos livrar do Seu poder senão Deus; e que Deus é tão bom e tão amante dos homens que os livra deste estado miserável.
Prudência. – Qual é o fim de Deus em salvar os homens perdidos?
José. – É para engrandecer o Seu próprio nome, manifestar a sua graça e justiça, e assegurar a felicidade eterna da sua criatura.
Prudência. – Quais são os que hão de ser salvos?
José. – Aqueles que aceitam a sua salvação.
Prudência. – Muito bem, José, tua mãe tem te ensinado bem; também tu tens dado ouvidos ao seu ensino.
     Depois dirigiu-se ao segundo filho:
Prudência. – Venha cá, Samuel, queres que te faça algumas perguntas?
Samuel. – Sim, é favor.
Prudência. – O que é o céu?
Samuel. – É um lugar santíssimo, porque ali vive Deus.
Prudência. – O que é o inferno?
Samuel. – É um lugar tristíssimo, por ser a morada do pecado, do diabo e da morte.
Prudência. – Por que queres ir para o céu?
Samuel. – Para que possa ver a Deus e servi-lo para sempre; ver a Cristo, amá-lo eternamente, e ter a plenitude do Espírito Santo, o qual não posso de maneira alguma gozar aqui na terra.
Prudência. – És um bom menino, e tens respondido bem. Chamou depois ao mais velho, cujo nome era Mateus, que de boa vontade acudiu ao reclamo.
– Jamais existiu alguma coisa antes que houvesse Deus?
Mateus. – Não, porque Deus é eterno; nada existiu senão ele até o princípio da criação; porque em seis dias criou o Senhor o céu e a terra e o mar e tudo o que neles há.
Prudência. – O que julgas das Santas Escrituras?
Mateus. – Que são a Santa Palavra de Deus.
Prudência. – Compreendes tudo o que elas dizem?
Mateus. – Não; há muita coisa que não compreendo.
Prudência. – O que fazes quando encontras as passagens que não compreendes?
Matheus. – Sei que Deus é mais sábio do que eu, e peço-lhe que, se for do seu agrado, me revele as cousas que são para o meu proveito.
Prudência. — O que crês a respeito da ressurreição dos mortos?

Matheus. — Que os mortos ressuscitarão com a mesma natureza, mas incorruptíveis. Creio isso por duas razões: 1 “porque Deus o
Prometeu”; 2 “porque Ele é poderoso para o fazer”.
Prudência. — Pois atendei ao ensino de vossa mãe, porque ela pode vos ensinar muitas cousas. Deveis também prestar atenção ao que os outros dizem de bom, por ser para vós que assim se expressam. Observai também com cuidado o que os céus e a terra vos ensinam; mas, sobretudo, meditai muito no livro que fez com que vosso pai se tornasse peregrino. Enquanto estais aqui vos ensinarei tudo o que for possível, e estimarei que me faças perguntas que tenham por fim a nossa edificação.

    Passada uma semana, Piedade teve uma visita, conhecida por Senhor Brioso, homem ilustrado, que mostrava-se sempre piedoso, mas que gostava muito do mundo. Este veio várias vezes visitá-la e afinal ofereceu-se-lhe em casamento. Ora, Piedade era bonita, e, por conseguinte, muito atrativa, e ocupava-se sempre em alguma cousa, e quando nada tinha em que se empregar, ocupava-se em fazer meias e roupas para os pobres e necessitados
 
Imprensa Evangelica, nº 04, 
23 de Janeiro de 1879, p. 28-29

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