A viagem da Christiana com os seus filhos – John Bunyan (1628-1688)




O Sr. Brioso, não sabendo o que fazia com estas coisas admirou-se porque nunca a achava ociosa.
     Garanto, disse ele consigo mesmo que ele seria uma dona de casa.
  Piedade contou estas coisas às moças da casa e indagou a respeito dele, porque elas o conheceriam melhor. Elas lhes responderam que era um moço industrioso, que mostrava ser piedoso, porém julgavam que se enganava, desconhecendo o poder divino.
Piedade. – Pois não me lembrarei mais dele; não quero estorvo no caminho.
     Prudência respondeu que não precisava muito para desanimá-lo, porque se continuasse trabalhar para os pobres ele logo desanimaria.
     Quando ele tornou a aparecer, acordou-a costurando e disse-lhe: “Estás sempre trabalhando.” “Sim, respondeu ela, porém, ou para outrem.”
     “Quando ganhas por dia?” perguntou ele.
      “Faze isto para que possa abundar em toda obra, e entesourem tesouros para o futuro para deixar para a vida eterna.” (I Timóteo 6:17, 19).
      “Pois, o que fazes com estas coisas?” disse ele.
       “Viste- os nus”, respondeu ela.
    Com isto entristeceu-se, e não tornou a visitá-la. Quando perguntaram a razão disso, replicou que Piedade era uma bonita rapariga, porém um pouco aborrecida.
Prudência. – Não te disse que ele desanimará logo? Ainda mais, há de falar mal de ti. Apesar de ser religioso, e de fingir-se enamorado de Piedade, contudo eles são de gênio tão diferentes que nunca dar-se-ão.
Piedade. – Já eu podia estar casada, ainda que não falei nisso com alguém, mas era com aqueles que não se davam com o meu proceder, ainda que gostassem de mim. Portanto não podíamos chegar a acordo.
Prudência. – Em nossos dias gostam muito do nome de Piedade, porém poucos os querem praticá-la.
Piedade. – Pois bem. Se ninguém quer casar comigo, hei de morrer solteira e Deus será para mim marido, porque não posso mudar de natureza e não quero casar-me com quem me estorve. Tinha uma irmã chamada Generosa, que casou-se com um destes sujeitos, mas eles nunca concordavam e como ela estava resolvida a continuar a proceder assim, isto é, a fazer bem aos necessitados, ele a injuriava publicamente e, afinal, expulsou-a de casa.
Prudência. – Porventura não era professo?
Piedade. – Era, e destes tais o mundo está cheio; porém, não quero casar-me com nenhum deles.
     Neste tempo, Mateus, o filho mais velho de Cristiana, caiu doente, e ficou muito mal. Portanto, mandaram chamar o Sr. Perito, um médico muito conhecido e estimado naqueles sítios, o qual depois de indagar dos sintomas, disse que sofria de cólica, e perguntou o que tinha ocorrido ultimamente.
Cristiana. – Nada, sinto coisas saudáveis.
Perito. – Com certeza o moço comeu alguma coisa que ficou no estômago indigerida. Precisa medicar-se, de outro modo morrerá.
Samuel. – Mamãe, o que foi que meu irmão comeu logo depois de entrar pela porta estreita? Não te lembras do fruto das árvores do outro lado do muro, nas quais meu irmão apanhou e comeu?
Cristiana. – É verdade, ele comeu deste fruto, não obstante repreendê-lo.

Perito. – Estava certo que tinha comido alguma coisa que lhe fizera mal: este fruto é o pior que pode haver. É do pomar de Belzebu. Admiro-me que ninguém vos advertisse. Muitos têm morrido por causa dele.
    
        Então Cristiana pôs-se a chorar e disse: ó mal-aventurado menino, ó infeliz mãe, que hei de fazer por meu filho!
Perito. – Não fique desanimada, o moço pode ser curado; é preciso, porém, que lance do estômago esse fruto.

Cristiana. – Rogo-lhe que faça tudo o que for possível em seu benefício; custe o que custar.

Perito.– Não sou exigente.
      Então proporcionou-lhe um remédio, porém este era fraco demais; diz-se que foi feito do sangue de um bode, e cinzas de uma bezerra e o suco de hissopo (Hebreus 9: 13, 19 e 10:1-4). Quando o Sr. Perito viu que este não prestava preparou outro, que era o corpo e o sangue de Jesus Cristo (S. João, 6:54 - 57 ; Hebreus 9:14) que arranjou com devida medida, misturado com as promessas e temperado com sal (S. Marcos 9: 49). “O moço deve tomá-lo em jejum, com lágrimas de arrependimento.” Quando trouxeram o remédio, o moço não o quis tomar, ainda que atormentado de dores. O médico disse-lhe que era preciso tomá-lo. “Me enjoa”, respondeu o moço. A mim também instou com ele para que tomasse, “mas hei de vomitá-lo”, disse ele.
     Cristiana então perguntou ao médico que gosto tinha.
      “Não é desagradável”, respondeu ele.
E ela provou-o e disse ao filho: “Ó Mateus, é mais doce que o mel.” Se amas-me, se amas aos teus irmãos, se amas a Piedade, se amas a tua própria alma, rogo-te que o tomais.”
   Passado algum tempo e depois de pedir a bênção de Deus, ele tomou-o e fez-lhe muito bem.
      Purgou-o e fez com que dormisse bem e sossegadamente, e enfim curou-o do seu incômodo, de modo que levantou-se logo e pôs-se a passear de um para outro quarto, conversando com Prudência e Piedade a respeito da sua doença, e como ficara são. Depois Cristiana falou ao Sr. Perito, e disse-lhe: “Meu senhor, quanto quer cobrar pelo tratamento de meu filho?”

Perito.— Deves pagar ao chefe do colégio de medicina, conforme os regulamentos estabelecidos nestes casos (Hebreus 13:11-15).

Cristiana.— Meu senhor, este remédio serve para mais alguma coisa?

Perito.— É uma panacéia para todas as doenças que afligem os peregrinos, e sendo bem preparado, conserva-se sempre.

Cristiana.— Tenha a bondade dc fornecer-me uma porção, porque possuindo-o, nunca farei uso dc outro remédio.

Perito.— É bom como prevenção, bem como para curar as doenças. Sim, garanto que, se qualquer homem fizer o devido uso deste remédio, viverá para sempre (S. João 6: 58). Porém, minha boa Cristiana, deves usar deste remédio do modo que receitei, aliás não produzirá efeito.

      Deu, portanto, a Cristiana, remédio para ela, seus filhos e Piedade, dizendo a Mateus que não comesse frutos proibidos, depois beijou-o e foi-se.

    Prudência tinha dito aos moços que quando quisessem, poderiam fazer quaisquer perguntas proveitosas, prometendo responder-lhes. Mateus, portanto, perguntou-lhe a razão porque os remédios quase sempre são tão desagradáveis ao nosso paladar?

Prudência.— Para mostrar como o coração do pecador aborrece a Palavra de Deus e às exigências da Sua lei.

Mateus.— Porque, sendo bom o remédio, produz efeito purgativo e enjoa?

Prudência. — Para mostrar que a Palavra de Deus quando
obra efetivamente, purifica o coração e o espírito; o efeito que um produz no corpo, o outro produz na alma.


Imprensa Evangelica.
nº 06, 06 de Fevereiro de 1879, p. 45-46

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