ANGELA OU O DIA DE NATAL - Mrs. O. F. WALTON (1849-1939)

Capa da 7ª edição, Livraria Evangelica, Lisboa, Portugal, 1929


ANGELA OU O DIA DE NATAL

 Título Original: Angel’s Christmas

Autora: Mrs. O. F. WALTON (1849-1939)

I

O ANJO SEM ASAS
 
    A pobre mulher levava os seus dias, desde pela manhã até à noite, a passar roupa pela calandra.
 
    Ninguém deixaria de chamar triste ao aspecto d’aquele quarto. Na janela, de acanhada dimensões, viam-se pedaços de papel pardo ocupando os espaços que os vidros, quebrando-se, haviam deixado em aberto, e dar-se-ia que a porta e as aranhas se tinham entregado com afã à tarefa de experimentarem que maior quantidade da luz do sol podiam impedir de penetrar no pequeno e sombrio recinto.
 
     Não procederia, contudo, com verdadeira justiça quem acusasse de negligência a pobrezinha da mulher, pois que fazer tinha ela sempre, e não pouco. Um marido bêbedo, uma calandra e cinco filhos! Já por aqui se vê que tempo ela teria para reparar nas aranhas.
 
     A calandra ocupava, pelo menos, metade da casa, e era quase permanente o seu movimento de vai-vem, desde o amanhecer até altas horas da noite. Enquanto a mãe fazia o jantar, vinha Ângela substituí-la, e, logo, que esta se sentava a comer com os seus pequenos irmãos em volta de si, partia aquela para o seu posto. Deste momento a calandra nunca, quase nunca deixava de funcionar, e o caso é que a uma velhinha que morava logo na outra porta, e que jazia ao leito, seria custoso passar sem o ruído que ela produzia, pois lhe servia como de música que a acalentava durante toda a semana.
 
    A pequena Ângela estava de pé entre portas, sobraçando um grande açafate que a mãe ia enchendo de roupa. Era ela a mais velha de cinco irmãos, e ainda não tinha sete anos completos. Tinha muito pouco corpo, e, como conseqüência das forçadas posições que tomava para fazer girar a pesada calandra, andava algum tanto curvada. Via-se obrigada a subir a um banco para lhe imprimir o movimento necessário, e as dores nas costas não se demoravam em se fazerem sentir. Não havia, porém, outro remédio; se a calandra ficasse inativa, tinham de ficar todos sem comer no outro dia.
 
   E, agora era preciso levar a roupa à casa da freguesa: por sinal que a carga era bem pesada.
 
    “É toda da senhora rica, minha mãe?”, perguntou a pequena Ângela, depois de haverem sido cuidadosamente postas no cesto as camisolas, os aventais, as toalhas e as meias.
 
    “É sim, filha: as peças são, ao todo, seis dúzias e meia. Agora vê lá, não as vá espalhando pelo caminho.”
 
     A criança tentou levantar o cesto, mas aquele trabalho era superior as suas forças; o esforço fez-lhe afluir o sangue à pálida carinha.
      “Ajudar-te-à o Thomé,” disse-lhe a mãe. “Vai chamá-lo; diz-lhe que lhe dou um bocado de pão com melaço.”
 
       Thomé, que era um pequeno de uma vizinha, conveio no ajuste, e as duas crianças partiram juntas.
 
       Lá foram caminhando através das encharcadas ruas, quase sem dirigirem palavra um ao outro, e por fim a pequena Ângela parou em frente de uma magnífica habitação situada numa das melhores ruas da pequena cidade.
 
    “Quem é que mora aqui?” perguntou Thomé, olhando para as janelas arqueadas e para o portão com as colunas de ambos os lados.
 
     “É por esta casa que nós nos dirigimos,” disse Ângela. A senhora que aqui mora é que é a dona da roupa que trazemos. Ajuda-me a levá-la até onde ser entregue.”
 
     E as crianças seguiram por uma espécie de corredor que ia dar a uma porta que ficava na fachada posterior do edifício.
 
     Tocaram duas vezes a campainha, primeiro que alguém viesse abrir, e por fim apareceu a cozinheira, que, como estivesse naquela ocasião a meter no forno uns bolos cuja massa acabava de preparar, trazia a cara muito vermelha e as mãos muito brancas.
 
    “Só de aqui a alguns minutos é que posso dar-te atenção,” disse ela. “Entrem e descansem o cesto no chão; a menina faz hoje anos, e eu tenho muito que fazer. Enquanto não estiverem prontos estes bolos, não posso tomar conta do que vem no cesto.”
 
    As duas crianças, com os pés sobre o capacho que havia à entrada da cozinha, procederam-se a olhar. Havia algum abundante-lume, e a costureira estava tirando do fogão um profuso número de primorosos pasteizinhos de todos os tamanhos e feitios. Uns eram redondos, outros quadrados, outros triângulos, uns representavam pássaros, outros peixes, e outros folhas.
 
     As crianças olhavam com curiosidade para eles, enquanto a cozinheira os dispunha em pratinhos que não eram maiores do que a palma da mão de Ângela. Estava ela no meio desta operação, quando a porta da cozinha se abriu e uma menina entrou a correr. Era muito mais novinha do que Ângela, e trazia vestida uma Moda branca com uma faixa azul. Em seus braços estava uma linda boneca, mais linda do que qualquer outra que Ângela jamais estivesse visto, a não ser na mostra de uma certa loja de quinquilharias.
 
      A pequenita precipitou-se na cozinha, mas quando viu as duas crianças olhou timidamente para elas, e esquivou-se para detrás da cozinheira.
 
     “Então já sei,” disse esta, “que a menina vem ver os seus bolos.” E pô-la em cima de um banco, para de pudesse observar o que ela estava fazendo.
 
     “São todos para os meus anos?”, perguntou a menina.
 
       “Todos”, disse a cozinheira.
 
“Que grande quantidade, não te pesou...
 
“É verdade, mas suponho que há de haver fartura de boquinhas a comê-los,” disse a cozinheira rindo-se.
 
       “Se há de haver! Eu, uma, a Alice, duas, a Carlota, três, o Eduardo, quatro...” (E a criança apresentou uma extensa lista de nomes). “E depois,” acrescentou ela: “temos as bonecas, elas também devem assistir à festa dos meus anos, não é assim?”
 
O Evangelisador. Ano I, nº 11. Manaus-AM.   16 de Julho de 1905, p. 3-4.

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