Capa da 7ª edição, Livraria Evangelica, Lisboa, Portugal, 1929
ANGELA
OU O DIA DE NATAL
Título Original: Angel’s Christmas
Autora:
Mrs. O. F. WALTON (1849-1939)
“Minha mãe,”
disse a pequena Angela de súbito, “já teve algum dia de anos?”
A mãe não respondeu logo, e ainda mais se
inclinou sobre o lume. Parecia estar chorado, e foi isso o que se afigurou à
Angela.
“Já,” respondeu
ela por fim, quando eu era pequena e tinha o meu pai vivo. Quem me dera viver
n’esse tempo?”
“É, então, uma
grande coisa, um dia de anos?”
“A melhor de
todas as coisas era eu ter pai. E bem bom pai que ele sempre foi; é preciso que
saibas que o teu avô era um belíssimo homem Angela.”
“Que fazia mãe
no dia de seus anos?”, perguntou a criança.
“Ora, passava-o
o mais alegremente que é possível imaginar-se. Minha mãe fazia-nos um pudim e
íamos todos dar um passeio com o meu pai depois do jantar. Além disso ele
costumava sempre dar-me um presente. Ainda conservo um d’eles.”
“Onde é que o
tem, mãezinha?” disse a pequena Angela. “Mostre-m’o.”
“Está ali
‘aquela prateleira de cima;” disse a mãe, apostando para um armário que se via
na parede em frente. “É uma vergonha deixá-lo estar por ali, depois de lhe
prometer que o havia de ler todos os dias. Mas que pode uma mulher fazer, com
um marido bêbado, cinco crianças e uma calandra às costas?”, disse ela, falando
mais consigo própria do que com a filha.
“Deixe-me ver o
seu presente de anos, minha mãe;”, tornou Angela a suplicar.
A Sra. Beatriz,
pois que era este o nome da mãe de Angela, trepou a uma das mutiladas cadeiras,
e tirou da prateleira um livro velho e meio rasgado. Já não tinha uma das
capas, e estava coberto com uma espessa camada de poeira. Uma aranha havia
trabalhado com diligência nas suas proximidades, acabando por firmar n’ele um
dosa extremos da sua enorme teia.
Depois de o
passar pelo emporcado avental, a senhora Beatriz depositou-o nas mãos da
criança; em seguida tornou a sentar-se, achegando-se do lume.
“Há aqui uma
coisa escrita no princípio”, disse Angela. “O que é?”
A mãe pegou no livro, que era, afinal de
contas, uma Bíblia, e deixou cair uma lágrima sobre as manchadas folhas.
“Este livro foi
oferecido a Beatriz de Castro por seu pai no dia dos anos d’ela, na esperança
de que não se esquecerá da promessa que fez.”
“Que foi então
que prometeu, minha mãe?”
“Que o havia de
ler, minha filha,” foi a simples resposta.
“Mas, eu nunca a
vi ler n’ele.”
“Não, e digo
isso envergonhada.” “Hei de começar a fazê-lo agora.”
“Leia um
bocadinho em voz alta antes de eu me ir deitar,” disse Angela, sentando-se no
banco aos pés da mãe.
A senhora
Beatriz pôs-se a voltar as páginas, e leu finalmente o primeiro versículo que seus olhos
fixaram:
“Eis que estou à
porta, e bato: se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta,
entrarei a ele, e
cearei com ele e ele Comigo.”
“Quem é que
bate, mãe?”, perguntou Angela.
“Refere-se a Jesus
Cristo, creio eu,” disse a senhora Beatriz. “Eis que estou a porta e bato.
Confio que se trata de Jesus. aprendi um hino na Escola Dominical que tem
relação com estas palavras. Eu frequentava a Escola Dominical quando o meu pai
era vivo. Lembro-me que começava assim”:
“Eis um estrangeiro que à porta
firme está,
Este docilmente, e tem batido já.”
“Não me recordo
do que dizia depois: era o que quer que fosse com respeito a não tratarmos
contra qualquer pessoa tão mal?”
“Eu nunca o ouvi
bater,” disse Angela. “Ele vem sempre quando eu já estou deitada?”
“Não,” respondeu
a mãe. “Não me parece que seja àquela porta que Ele bate. Não sei ao certo o
sentido d’estas palavras.”
“Torne a ler,
peço-lhe, minha mãe.”
A senhora
Beatriz leu outra vez o texto.
“Oxalá que Ele
não venha cá bater esta noite;” disse a pequena Angela, depois de finda a
leitura.
“E por que não,
minha filha?”, perguntou-lhe a mãe.
“Porque não
temos nada para a ceia, a não ser aqueles bocados de pão que os meus irmãos
deixaram ‘ind’agora. Receio que Ele não quisesse comer.”
“Não quer dizer
que Ele venha realmente cear,” disse a mãe. Gostava imenso de me lembrar da
verdadeira significação. Mas já lá se vão muitos anos depois que o li. Meu pai
morreu quando eu tinha apenas dez anos, e ninguém de ali em diante se importou
comigo para coisa alguma.”
Como a pequena Angela estivesse já com
muito sono, a mãe levou-a para o andar de cima, deitou-a na cama ao lado de
seus irmãozinhos, e depois sentou-se junto d’ela com a face oculta entre as
mãos, fato estranho n’aquele pobre e ignorante espírito reminiscente do amor e
preceitos de um pai. Apesar de imperfeitas recordações de infância, eram
suficientemente distintas para a fazerem suspirar por aquilo que havia sido e
por aquilo que poderia vir a ser.
E
assim se conservou sentada esta infeliz esposa, enquanto o relógio ia fazendo
soar as suas pancadas e as crianças dormiam. Depois, ao cabo de longas horas de
espera, ouviu-se um grande ruído à porta, e ela levantou-se, a tremer, para
abri-la.
Angela despertou sobressaltada, e,
sentando-se na cama, exclamou: “Ele ali está, minha mãe! Eu ouviu-O bater.”
“Bem sei,” disse
a senhora Beatriz, que estava acendendo a vela, “vou abrir-lhe a porta.”
“Deixe-me ir lá
embaixo vê-Lo, peço-lhe.”
“Era o que
faltava, minha filha: tu bem sabes que teu pai vem sempre embriagado.”
“Que pena!”,
disse ela em tom de quem se sentia contrariada, e tornando a deitar-se, julgava
que era Jesus quem estava a bater.”
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