- Ora, pois, Sr. Faria, acreditais deveras que todos os
homens se perderão senão vós e os que pensam como vós?
- Quem vos disse que eu acredito nisso, Sr. Gomes?
O primeiro que falou
era um professor que não queria ser conhecido por desprezador de toda a
religião (não lhe fazia conta), e chamava-se cristão, mas dizia que todas as
crenças eram boas. Não cria que Jesus é Deus, nem que pagou por nossos pecados
com seu sangue, nem que os castigos futuros serão para sempre, e pouco se
importava com as cousas da alma.
O Sr. Faria era
boticário muito exato em cumprir os seus deveres para com o próximo e para com
Deus. Por sua conduta tinha ganhado a confiança do publico, de tal maneira que,
quando era preciso que um remédio fosse preparado com a maior exatidão e
cuidado, quase todos preferiam a botica de Faria.
- Quem m’o disse? Respondeu Gomes.
- Vós me dissestes que aquele
que não crer será condenado. Ora, se estiverem perdidos todos que não creem
como vós, julgais que muitos vão ao céu?
- Pouco importa o que eu julgar, meu amigo. Eu não disse
mais do que Deus diz, e respeito mais umas palavras Dele: “Não pode ver o Reino de Deus senão aquele que renascer de novo.
- Que se há de fazer então com os pagãos, os maometanos e
judeus, esses 600 ou 700.000,000 de criaturas humanas que nunca ouviram o
Evangelho? Todos eles vão para o inferno? Deixai vos disto, Sr. Faria: julgais
que aquele Deus, que é um tão bom pai, criou tantos miseráveis só para
lançá-los em um abismo de tormentos? Antes de crer assim, quero eu ser deísta
ou ateísta. Não posso pensar do Deus da Bíblia como... Mas estais calado, Sr.
Faria?
- Estou escutando, e quando tiverdes acabado responderei.
Não é meu costume interromper alguém que me fala.
- Pois bem, continuou o professor; só pergunto se acreditais
que todos os turcos, judeus e pagãos estão perdidos?
O Sr. Faria
abaixou a cabeça e por algum tempo ficou calado.
- Pilhei-o, disse consigo o professor, não se atreverá a
dizer sim e não pode responder que não.
O boticário, levantando a cabeça, disse:
- Sou eu juiz deles?
- Não, mas sem ser juiz podeis dizer o que credes Serão
todos perdidos por não saberem o que nunca ouvirão? Respondes, Faria: “Têm em
si uma regra pela qual julgam e condenam os outros, e se a tiverem quebrado
podem ser justamente condenados por isso”; mas ouvistes-me dizer que alguém
seja condenado por não saber aquilo que nunca teve ocasião de ouvir?
– Não, mas parece seguir-se dos vossos princípios.
– Tirais consequências dos meus princípios que eu não tiro;
mas quereis, Sr. Gomes, saber o que creio?
– Sim, o que é?
– É que Deus é melhor e mais justo que vós e eu, e que
podemos deixar em suas mãos o julgar as nações; mas há uma cousa que creio com
toda a certeza.
– E o que é?
– Que vós, meu amigo, sereis pedido para sempre senão voltar
para Deus.
Estas palavras,
duas com muito sentimento e profunda convicção, caíram sobre o professor como
um raio, e este exclamou:
– Assim, me julgais e me condenais, esquecendo vos de belo
preceito de Jesus: “Não queirais julgar
para não serdes julgados.”
– Eu não vos julgo, senhor. Me dissestes vinte vezes que não
vos importais como as cousas de Deus, da alma e do mundo futuro; e eu vos digo
que se não tornardes uma amizade sincera do coração para com o Altíssimo, se
não vos virardes a Ele cordialmente, vos perdereis. Nisto digo somente o que
Deus, vosso juiz e o meu também, diz-nos na Santa Bíblia. Aquilo que Ele diz,
creio; aquilo que Ele manda, hei de fazer.
– Ora, ora, disse o professor; vejo que sois um daqueles
dogmatistas que condenam sem piedade a todos que não pensam em tudo com eles.
– Eu vos condenei?
– Não exatamente em tantas palavras, mas dizendo que não há
salvação senão para os que pensam como vós pensais, creem como vós credes e
entendem o Evangelho como vós o entendeis; vem a ser a mesma cousa: e se assim
for, julgo que são poucos os que se hão de salvar.
O professor disse
estas palavras com muita confiança e algum tanto de escárnio. O boticário
escutou como costumava, e ia responder quando trouxeram-lhe uma receita que
precisava de ser aprontada já. O Sr. Gomes, tirando o relógio, observou que
eram horas para eles estar com seus alunos, e foi-se logo.
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