O professor Gomes e o bom boticário Faria - Robert Reid Kalley [1809-1888]

 

- Ora, pois, Sr. Faria, acreditais deveras que todos os homens se perderão senão vós e os que pensam como vós?

- Quem vos disse que eu acredito nisso, Sr. Gomes?

   O primeiro que falou era um professor que não queria ser conhecido por desprezador de toda a religião (não lhe fazia conta), e chamava-se cristão, mas dizia que todas as crenças eram boas. Não cria que Jesus é Deus, nem que pagou por nossos pecados com seu sangue, nem que os castigos futuros serão para sempre, e pouco se importava com as cousas da alma.

    O Sr. Faria era boticário muito exato em cumprir os seus deveres para com o próximo e para com Deus. Por sua conduta tinha ganhado a confiança do publico, de tal maneira que, quando era preciso que um remédio fosse preparado com a maior exatidão e cuidado, quase todos preferiam a botica de Faria.

- Quem m’o disse? Respondeu Gomes.

- Vós me dissestes que aquele que não crer será condenado. Ora, se estiverem perdidos todos que não creem como vós, julgais que muitos vão ao céu?
- Pouco importa o que eu julgar, meu amigo. Eu não disse mais do que Deus diz, e respeito mais umas palavras Dele: “Não pode ver o Reino de Deus senão aquele que renascer de novo.

- Que se há de fazer então com os pagãos, os maometanos e judeus, esses 600 ou 700.000,000 de criaturas humanas que nunca ouviram o Evangelho? Todos eles vão para o inferno? Deixai vos disto, Sr. Faria: julgais que aquele Deus, que é um tão bom pai, criou tantos miseráveis só para lançá-los em um abismo de tormentos? Antes de crer assim, quero eu ser deísta ou ateísta. Não posso pensar do Deus da Bíblia como... Mas estais calado, Sr. Faria?

- Estou escutando, e quando tiverdes acabado responderei. Não é meu costume interromper alguém que me fala.

- Pois bem, continuou o professor; só pergunto se acreditais que todos os turcos, judeus e pagãos estão perdidos?

    O Sr. Faria abaixou a cabeça e por algum tempo ficou calado.
- Pilhei-o, disse consigo o professor, não se atreverá a dizer sim e não pode responder que não.

O boticário, levantando a cabeça, disse:

- Sou eu juiz deles?

- Não, mas sem ser juiz podeis dizer o que credes Serão todos perdidos por não saberem o que nunca ouvirão? Respondes, Faria: “Têm em si uma regra pela qual julgam e condenam os outros, e se a tiverem quebrado podem ser justamente condenados por isso”; mas ouvistes-me dizer que alguém seja condenado por não saber aquilo que nunca teve ocasião de ouvir?

– Não, mas parece seguir-se dos vossos princípios.

– Tirais consequências dos meus princípios que eu não tiro; mas quereis, Sr. Gomes, saber o que creio?

– Sim, o que é?

– É que Deus é melhor e mais justo que vós e eu, e que podemos deixar em suas mãos o julgar as nações; mas há uma cousa que creio com toda a certeza.

– E o que é?

– Que vós, meu amigo, sereis pedido para sempre senão voltar para Deus. 

    Estas palavras, duas com muito sentimento e profunda convicção, caíram sobre o professor como um raio, e este exclamou:

– Assim, me julgais e me condenais, esquecendo vos de belo preceito de Jesus: “Não queirais julgar para não serdes julgados.”

– Eu não vos julgo, senhor. Me dissestes vinte vezes que não vos importais como as cousas de Deus, da alma e do mundo futuro; e eu vos digo que se não tornardes uma amizade sincera do coração para com o Altíssimo, se não vos virardes a Ele cordialmente, vos perdereis. Nisto digo somente o que Deus, vosso juiz e o meu também, diz-nos na Santa Bíblia. Aquilo que Ele diz, creio; aquilo que Ele manda, hei de fazer.

– Ora, ora, disse o professor; vejo que sois um daqueles dogmatistas que condenam sem piedade a todos que não pensam em tudo com eles.

– Eu vos condenei?

– Não exatamente em tantas palavras, mas dizendo que não há salvação senão para os que pensam como vós pensais, creem como vós credes e entendem o Evangelho como vós o entendeis; vem a ser a mesma cousa: e se assim for, julgo que são poucos os que se hão de salvar.

     O professor disse estas palavras com muita confiança e algum tanto de escárnio. O boticário escutou como costumava, e ia responder quando trouxeram-lhe uma receita que precisava de ser aprontada já. O Sr. Gomes, tirando o relógio, observou que eram horas para eles estar com seus alunos, e foi-se logo.

Correio Mercantil.Ano XVI, nº 1682, Rio de Janeiro-RJ, 20 de Junho de 1859.

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