O professor Gomes e o bom boticário Faria - Robert Reid Kalley [1809-1888]




    No dia seguinte o professor voltou à botica. As verdades do 
 
Evangelho tão doces à alguns são amargas para outros, e o Sr.
 
 Gomes veio falar no mesmo assunto, mas estava irritado contra o 
 
bom boticário mesmo, mas contra sua religião.
     
Principiou bruscamente assim:

– Disse, e digo-vos, Sr. Faria, que vós e vosso partido sois uns intolerantes que condenação à perdição todos que não pensam como vós. Fazeis assim mais dano à religião de Jesus do que todos os seus inimigos declarados podem fazer. Sede mais liberal, mais tolerante. Não vos condenamos à perdição eterna, não deveis condenar a nós.

– Meu amigo, disse o boticário, estais combatendo as vossas imaginações. Olhando a mim, a vós e a partidos, e perdeis de vista as cousas essenciais. Estou pronto a argumentar convosco, mas com uma condição.

– O que é?

– Que larguemos opiniões humanas e ocultemos as palavras de Deus na Bíblia Sagrada. Credes que a Santa Bíblia contem as palavras de Deus?

– Sim, certamente, pois sou cristão, ainda que não penso como vós.

– Se acreditais que a Bíblia é de Deus e por consequência a autoridade suprema em cousas religiosas, não temos que tratar dos meus pensamentos senão das palavras dela.

– Sim, suponho que sim.

– Julgais que devemos crer o que Deus diz nesse livro – evitar o que proíbe e fazer o que mande?

– Sim, mas bem sabeis que há nela cousas que não se pode crer sem renunciar à razão, e renunciar à razão é desprezar a Deus que n’o-la deu.

– Ora bem, fazei-me o favor de mostrar o que é verdade e o que é mentira neste livro, disse o boticário estendendo-lhe a Bíblia.

– Hoje não; mas não vos basta que a diga que a creio em geral?

– Sim, basta para convencer-me de que não a credes de maneira alguma.

– Como de maneira alguma? Creio a moral dela, creio as parábolas, creio a ressurreição e ascensão de Jesus de Jesus. Que mais quereis?

– A mesma testemunha que diz estas cousas que credes, diz também que se vós não converterdes a Deus, sereis eternamente perdido. Quero que creiais suas palavras sobre este fato também como sobre os outros.

– O que? Pensais realmente que todas as pessoas que morrem sem se converterem serão perdidas?

– Por ora não falo de outros, mas de vós, meu amigo, e vos digo que se não voltardes a Deus cordialmente para ouvir com atenção o que ele diz, para fazer o que manda, e tratá-lo com gosto como Benfeitor, Pai, Salvador e Rei, não podeis ser salvo. Contudo, não o digo de mim mesmo. A Bíblia o diz. Julgais que ela mente?

– Não digo isso, Sr. Faria; mas que grandes pecados tenho eu feito para ser lançado sem misericórdia n’um lago de fogo.

    O professor disse essas palavras com ar de um homem muito bem satisfeito consigo mesmo.

– O boticário respondeu quietamente: “Por isso vejo que são conheceis o vosso coração, e não conheceis a vós mesmo.”

– Não conheço a mim mesmo; gritou o Sr. Gomes, sua voz e esta alterando-se, não conheço  a mim! há vinte anos que me formei na universidade!

– Se vos tivésseis formado vinte vezes, e tornásseis a perguntar que grandes pecados tendes feito, eu havia de tornar a dizer que não conheceis a vós mesmo.

Ora, essa é boa, hei de pedir-vos ensinar-me a conhecer o meu coração vendo que o entendei melhor que eu.

– Estais motejando, Sr. Gomes, respondeu o boticário seriamente. Mas o assunto de que tratamos é muito grave, pois Jesus perguntou: De que aproveitará a um homem se ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma? Haveis arruinado vossa alma; precisais de tratar com muito juízo de salvá-la.

– E como salvá-la-ei?

– Reconhecei primeiro que sois um pobre miserável pecador.

– Por que falais tanto em meus pecados? Poderia entender-vos se eu fosse um homem debochado e vicioso; mas ainda que não sou perfeito, creio que sempre tenho sido um homem de bem.

– Estais pronto a morrer esta noite, Sr. Gomes? Pode ser que me engane; mas diga-me, se a morte chegasse esta noite, estaríeis contente de caminhar ao mundo eterno?

– Certamente que não. Poucos o são. Talvez nem um entre mil homens.

– Conheço alguns que o são, e senão o sois, porque a consciência vos diz que sois criminosos. É o pecado que faz o homem temer a morte. Por isso sentis que não estais preparado. Tenho muita pena de vos falar assim, mas é verdade o que vos digo.

     Neste ponto foi interrompida a conversação por um médico que viera buscar algum remédio, e o Sr. Gomes retirou se depois de alcançar uma promessa do boticário que viria passar com ele a tarde.

 

Correio Mercantil. Ano XVI, nº 172, Rio de Janeiro-RJ, 24de Junho de 1859.

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