No dia seguinte o
professor voltou à botica. As verdades do
Evangelho tão doces à alguns são
amargas para outros, e o Sr.
Gomes veio falar no mesmo assunto, mas estava
irritado contra o
bom boticário mesmo, mas contra sua religião.
Principiou
bruscamente assim:
– Disse, e digo-vos, Sr. Faria, que vós e vosso partido sois
uns intolerantes que condenação à perdição todos que não pensam como vós.
Fazeis assim mais dano à religião de Jesus do que todos os seus inimigos
declarados podem fazer. Sede mais liberal, mais tolerante. Não vos condenamos à
perdição eterna, não deveis condenar a nós.
– Meu amigo, disse o boticário, estais combatendo as vossas
imaginações. Olhando a mim, a vós e a partidos, e perdeis de vista as cousas
essenciais. Estou pronto a argumentar convosco, mas com uma condição.
– O que é?
– Que larguemos opiniões humanas e ocultemos as palavras de
Deus na Bíblia Sagrada. Credes que a Santa Bíblia contem as palavras de Deus?
– Sim, certamente, pois sou cristão, ainda que não penso
como vós.
– Se acreditais que a Bíblia é de Deus e por consequência a
autoridade suprema em cousas religiosas, não temos que tratar dos meus
pensamentos senão das palavras dela.
– Sim, suponho que sim.
– Julgais que devemos crer o que Deus diz nesse livro –
evitar o que proíbe e fazer o que mande?
– Sim, mas bem sabeis que há nela cousas que não se pode
crer sem renunciar à razão, e renunciar à razão é desprezar a Deus que n’o-la
deu.
– Ora bem, fazei-me o favor de mostrar o que é verdade e o
que é mentira neste livro, disse o boticário estendendo-lhe a Bíblia.
– Hoje não; mas não vos basta que a diga que a creio em
geral?
– Sim, basta para convencer-me de que não a credes de
maneira alguma.
– Como de maneira alguma? Creio a moral dela, creio as
parábolas, creio a ressurreição e ascensão de Jesus de Jesus. Que mais quereis?
– A mesma testemunha que diz estas cousas que credes, diz
também que se vós não converterdes a Deus, sereis eternamente perdido. Quero
que creiais suas palavras sobre este fato também como sobre os outros.
– O que? Pensais realmente que todas as pessoas que morrem
sem se converterem serão perdidas?
– Por ora não falo de outros, mas de vós, meu amigo, e vos
digo que se não voltardes a Deus cordialmente para ouvir com atenção o que ele
diz, para fazer o que manda, e tratá-lo com gosto como Benfeitor, Pai, Salvador
e Rei, não podeis ser salvo. Contudo, não o digo de mim mesmo. A Bíblia o diz.
Julgais que ela mente?
– Não digo isso, Sr. Faria; mas que grandes pecados tenho eu
feito para ser lançado sem misericórdia n’um lago de fogo.
O professor disse
essas palavras com ar de um homem muito bem satisfeito consigo mesmo.
– O boticário respondeu quietamente: “Por isso vejo que são
conheceis o vosso coração, e não conheceis a vós mesmo.”
– Não conheço a mim mesmo; gritou o Sr. Gomes, sua voz e
esta alterando-se, não conheço a mim! há
vinte anos que me formei na universidade!
– Se vos tivésseis formado vinte vezes, e tornásseis a
perguntar que grandes pecados tendes feito, eu havia de tornar a dizer que não conheceis a vós mesmo.
– Ora, essa é boa,
hei de pedir-vos ensinar-me a conhecer o meu coração vendo que o entendei
melhor que eu.
– Estais motejando, Sr. Gomes, respondeu o boticário
seriamente. Mas o assunto de que tratamos é muito grave, pois Jesus perguntou: De que aproveitará a um homem se ganhar o
mundo inteiro e perder a sua alma? Haveis arruinado vossa alma; precisais
de tratar com muito juízo de salvá-la.
– E como salvá-la-ei?
– Reconhecei primeiro que sois um pobre miserável pecador.
– Por que falais tanto em meus pecados? Poderia entender-vos
se eu fosse um homem debochado e vicioso; mas ainda que não sou perfeito, creio
que sempre tenho sido um homem de bem.
– Estais pronto a morrer esta noite, Sr. Gomes? Pode ser que
me engane; mas diga-me, se a morte chegasse esta noite, estaríeis contente de
caminhar ao mundo eterno?
– Certamente que não. Poucos o são. Talvez nem um entre mil
homens.
– Conheço alguns que o são, e senão o sois, porque a
consciência vos diz que sois criminosos. É o pecado que faz o homem temer a
morte. Por isso sentis que não estais preparado. Tenho muita pena de vos falar
assim, mas é verdade o que vos digo.
Neste ponto foi
interrompida a conversação por um médico que viera buscar algum remédio, e o
Sr. Gomes retirou se depois de alcançar uma promessa do boticário que viria
passar com ele a tarde.
Correio Mercantil. Ano XVI, nº 172, Rio de Janeiro-RJ, 24de Junho de 1859.
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