O professor Gomes e o bom boticário Faria - Robert Reid Kalley [1809-1888]

    Pelas 8 horas da mesma tarde os amigos se ajuntaram na casa de Gomes, e depois o boticário principiou a conversação desta maneira:
– Quando me deixastes hoje queria fazer-vos umas perguntas, a importância das quais percebereis pelas respostas que precisam; me permitireis a propor-vo-las?
– Certamente, Sr. Faria, porque enquanto estimo pouco vossas doutrinas e respeito vossa sinceridade e zelo. Convicções tão fortes hoje são raras. Dizei o que quiserdes.
– Pois bem, empregarei esta licença, não para satisfazer minha curiosidade, mas para vosso proveito. Entendo que, sem pensar que sois perfeito, julgais que não sois pecador bastante para ser perdido para sempre.
– Sem dúvida.
– Diga-me então o que é pecado?
– O furtar, matar, roubar, e cousas tais.
– Não se encerra na lista dos pecados tudo quanto é contra a lei do Criador?
– Sim, é razoável contá-lo assim!
– É certo, porque é rebelião contra o governo daquele que tem o direito de nos governar, pois Ele desfeneceu todos os membros, nos deu sentidos, juízo e vida. Não vos parece que temos obrigações as mais fortes de empregar Aquele que nos deu de maneira que nos manda?
– Sim, sim, mas onde se acha a lei de Deus?
– O homem que condena seus semelhantes pelos males que lhe fazem tem em si uma lei pela qual do seu Criador, sabendo-a. nós, porém, temos a lei divina mais clara por escrito nos 10 mandamentos.
– Mas temos certeza de que esses mandamentos foram dados por Deus?
– Se duvidais disso, examinai as provas, que são suficientes para dar uma certeza tão seguro como a de nossa própria existência.
    Parou um pouco o Sr. Faria. O professor ponderava o que ouvira e não quis interrompê-lo. Então continuou:
– Haveis guardado sempre o mandamento de Deus. “Seis dias trabalharás, no sétimo descansarás?”
– Às vezes, não sempre; não é possível cumpri-lo sempre.
– Nunca tomastes em vão o nome de Deus?
– Algumas vezes, não nego, que o tenho feito, mas é custoso evitá-lo inteiramente.
– Lembrai-vos que o Senhor Deus vivo tem declarado que não terá por inocente aquele que tomar o seu santo em vão, e, ainda que vemos todos à roda de nós tantas provas da bondade de Deus, várias outras tantas de que Ele é capaz de castigar com dores as mais aterradoras.
– Ora, então estas duas qualidades de provas não contradizem uma a outra? Não nos deixam em dúvida se Deus é bom ou mau.
– Não, senhor. Mostram fora de dúvida que Deus é bom, avalia em muito a felicidade da sua criatura; mostram também que avalia em mais ainda a justiça e santidade do seu governo, e a verdade das suas palavras. Vemos essas duas feições do caráter divino tanto na providência como no livro de Deus. este diz: “Deus é caridade”, e “nosso Deus é um fogo consumidor.” Aquela manifesta bondade imensa e rigor temível nos atos do Altíssimo. As ameaças dele não são palavras vãs. Diga-me, porém, se haveis honrado sempre a vosso pai e a vossa mãe?
– Não tenho muito de que acusar-me neste ponto, mas também tenho faltado de obedecer e respeitá-los.
– Nunca desejastes a morte de alguém?
– Não que eu saiba. É verdade que tinha um tio velho e rico que não fazia bem a ninguém e fiquei contente quando morreu. Não me parecia grande mal desejar que a morte o levasse.
– Nunca tivestes desejos impuros?
O professor corou, mas não disse nada.
– Muitas vezes, o confesso. Mas quando um homem vive do seu trabalho custa ver outros, e até homens mãos e estúpidos que nasceram ricos e vivem no gozo de tudo e não sentir alguma inveja.
– Nunca dissestes cousa falsa?
– Seria uma falsidade se o negasse.
– Amastes a Deus de todo o vosso coração?
– O tenho amado e amo-O, mas não tanto.
– Amais a Deus mais que a qualquer pessoa ou cousa neste mundo?
– Não o vejo, e, a falar francamente, creio que há objetos que prefiro a Deus.
– Não o amais, pois, como Deus, porque o Criador é sumamente amável, e quando não é sumamente amado não é tratado como Deus.
– Posso eu continuar com as minhas perguntas?
– Certamente.
– Gostaríeis que tudo o que tendes feito, pensado e desejado fosse publicado ao mundo em vossa presença?
– Mil vezes não, respondeu com sentido o professor.
– Quem o gostaria? Nem vós mesmo.
– Eu também não o gostaria. Mas, se gostarmos ou não, nada pode proibir a Deus de ler os segredos do coração. Ele vê claramente o que aos homens custa a imaginar. Ele aborrece todo mal, e a justiça manda que o pecador seja castigado em proporção ao mal que tem feito. Vós, porém, conforme a vossa própria confissão, nunca amastes a Deus com todo o coração de tal maneira que era impossível amá-lo mais. Nunca cumpristes este preceito justo da lei de Deus, em sequer por um momento de vossa vida, e por isso afirmo que sois altamente criminoso.
   O Sr. Gomes ficou calado por alguns minutos, então disse: “É verdade, é verdade”; mas acrescentou: “porque nos meteu Deus em um mundo onde a cada passo somos tentados a quebrar a sua lei?”
– Meu amigo, respondeu o boticário, se quisermos indagar nesse “porque” nunca acabaremos. O fato é que aqui estamos e nestas circunstâncias, e havemos de considerar nossa posição, não como nós podemos imaginar que devia ter sido, mas como é. Havemos razão de queixar-nos de nós mesmos, não de Deus que nos deu faculdades mui nobres e quando pecaremos deparou um remédio pelos males do mundo.
– Mas, replicou o professor, não podia Deus ter feito Adão e Eva tais que nunca teriam pecado, nem levado seus filhos para tanta miséria?
– Entendo que Deus não pode fazer melhor do que tem feito. Fez o homem mais nobre que até as estrelas, pois estas, grandes como são, e admirável como é na verdade a rapidez das suas carreiras, não tem a vontade livre. O homem, no princípio, com a alma inteligente e a vontade livre, era maior que elas, mais semelhante a Deus. Deus não tem culpa de que o homem usando da sua vontade, desobedeceu ao Criador e perdeu-se, enquanto as estrelas continuam a obedecer com exatidão matemática à lei do seu Criador.
    Sem contar mais desta conversação importante, basta dizer que dali em diante o professor Gomes escutava mais e falava menos.
    Eram 11 horas quando o Sr. Faria se retirou; vendo no relógio as palavras “Ultiman time”. Teme a ultima, perguntou a seu amigo se estaria pronto no caso de tocar sua última hora nessa noite?
– Não respondes Sr. Gomes?
– Pois meu querido amigo, procura sem demora estar preparado, porque a morte vem de repente e ai daquele que morre em seus pecados!

 

Correio Mercantil. Ano XVI, nº 174, Rio de Janeiro-RJ, 26 de Junho de 1859.


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