Sr. Gomes sentiu muito a morte de um dos seus discípulos,
que aconteceu poucos dias depois da conversação precedente e disse consigo: “Se
fosse eu, que teria sido de mim! Hei de salvar a minha alma, custe o que
custar.” Depois disto eram férias, e não tornou a ver o boticário por quase
dois meses.
Na primeira ocasião que teve
disse-lhe: “Ao meu amigo, estou n’uma agonia terrível desejo muito salvar a
minha alma e não se como poderá ser. Desde a noite em que me mostrastes que sou
um grande pecador principiei a temer a morte, nos caminhos de ferro, nas barcas
a vapor, passeando nos montes, durante a tempestade, ao deitar-me de noite, e
ao levantar-me da manhã, tem-me chegado continuadamente a lembrança de que por
minha rebelião contra o governo de Deus mereço a morte e a maldição. Não tenho
sido capaz de divertir-me com novelas e espetáculos, nem de pensar nas cousas
que antes me ocupavam. Estou triste, muitíssimo triste, mas na mesma tristeza
estou mais contente do que nas cousas que antes me alegravam. Não entendo como
é.”
– Procurastes aliviar-vos? E como?
– Li no Novo Testamento pela manhã e de tarde, e muitas
vezes no dia. Gosto muito dele, mas não me alivia a miséria, antes a faz maior.
Muitas vezes tenho-me retirado a um lugar solitário onde chorei e fiz orações
tais como nunca antes fiz; no princípio aliviava-me o chorar e rogar, mas ao
depois perdi ânimo, porque as lágrimas e as orações com que julgava fazer
desconto de um e de outro pecado, não me proibirão de pescar, e vi que em lugar
de diminuir, aumentava cada vez mais a minha dívida.
– Não tendes pensado em largar toda a consideração destas
cousas?
– Sim, e esforcei-me nisso; mas parecia-me que, quando fazia
assim, ouviu uma voz dizendo: “Rebelei-me
contra Deus, te haverás a descuidar-te ainda da tua alma?” Agora estou
pronto para todas as penitências e sofrer todos os castigos em desconto dos
meus pecados.
– Não lembrastes vós de emendar a vossa vida. Largar todo o
mal que sabeis em vós e fazer boas obras?
– Lembrei-me e esforcei-me também, mais vejo que me estou
fazendo cada vez pior. N’uma ocasião, imagino que, se me arrependesse, Deus me
perdoaria. Amaldiçoei minha vida passada. Arrependi-me em todas os noites que
podia lembrar: aborreci a mim mesmo pela maneira em que tratara o bom Deus; um
tanto mais me arrependi, tanto mais vi a maldade do meu coração, sabido quando
quis percorrer à bondade e misericórdia de Deus, fiquei aterrado pela vista da
sua santidade e justiça, pois sendo santo aborreceu o mal e sendo justo há de
castigá-lo. Enfim, estou quase desesperado. Tenho feito e quero fazer tudo para
merecer a salvação, mas parece que não sou digno dela e não a penso alcançar.
– A salvação não está ao agrado de vós, respondeu o
boticário que tinha escutado tudo com a mais profunda atenção.
– O que? replicou o professor. A salvação não está longe de
mim e eu procuro tão dignamente, e não a posso achar.
–Não duvido que a desejais ansiosamente, mas quando queremos
ter mais cousas, precisamos procurá-la no caminho direito. A salvação não se
pode achar no caminho em que a buscastes.
–Onde, pois, poderei achá-la?
– Só aonde está?
– Isso é o que quero saber. Aonde está?
– Não estando no lugar em que a procuraste, há de estar no
outro.
– É verdade, disse o Sr. Gomes; diga-me como me hei de
salvar?
– Desenganai-vos, meu amigo, os vossos pecados são tantos e
tão grandes que não é possível descontá-los, em podereis nunca merecer a
salvação.
– Então não há esperança para mim, ainda que desejo tão
ardentemente ter a paz a minha alma. Dizendo isso tornou-se pálido e os olhos
se lhe arrasaram de lágrimas.
As lágrimas alegraram o coração do boticário, que desce em
se coração: “Oh, meu senhor, ajuda-me a falar como devo à alma deste pecador.”
Então disse ao
Sr. Gomes: “Não podeis ser digno da salvação, nem merecê-la, pois já sois digno
da perdição e mereceis a maldição do Altíssimo pelas vossas obras. Não podeis
fazer desconto de vossos pecados paga a só pelos tormentos eternos e não com
esmolas, penitências e orações. Há, porém, quem mereceu a salvação e pagou
pelos pecados, a que pode dar a vós outros e proveito de que Ele fez e sofreu.
– Como? Não vos entendo.
O caso é
assim: Devíamos tanto que era impossível pagarmos. Estávamos condenados à
prisão até pagar o último real, que seria prisão perpétua. Um amigo teve
compaixão de nós, queria e podia pagar, e com efeito pagam bastante para
satisfazer toda a dívida. Mandemos então uma carta em que decifra o que fez e
sofreu por nós e promete o proveito do pagamento todos que creem suas palavras
e confiam Nele. A carta é o Evangelho que diz que Jesus morreu por meus pecados e acrescenta crê no Senhor Jesus e serás
salvo.
– O que exclamou o Sr. Gomes, é isto o que vós chamais a
salvação?
– Sim, respondeu o boticário.
O professor abanou com a cabeça
e respondeu com um olhar de desespero e tristeza:
– Crê! Crê! E assim o
homem está perdoado e salvo! Não, não posso crer que só pelo dizer creio, ficam
perdoados os meus milhares de pecados.
– Talvez e crerias se vos tivesse dito:
– Jejuai duas vezes na semana, fazei-vos frade, dai muito
dinheiro para missas, edificai uma igreja a algum santo ou santa, andas como
peregrino a Jerusalém açoitai-vos todos os dias, ou vesti uma camisa grossa e
deixai-vos ser comido de piolhos e assim descontareis os pecados. Talvez
gostaríeis mais se vos dissesse: procurai ser um bom cidadão, bom vizinho, bom
amigo e não tenhais medo, pois assim descontareis os pecados e ficareis bem no
mundo futuro, mas não; o que vos posso dizer como discípulo de Jesus é: crê no Senhor Jesus e serás salvo, e lá
estão as palavras no livro de Deus. Dizendo isso mostrou-lh’as nos Atos dos
Apóstolos.
O boticário tinha
falado como um homem que sentia a verdade do que dizia, e acrescentou algumas
palavras sobre o amor do Deus-Homem em sofrer tamanhas agonias por nós.
– Admirável! Muito admirável! Disse o Sr. Gomes; mas não
posso imaginar que Deus tem ligado a alegria, a paz, a salvação, a vida eterna
com esta única palavra – crê. É incrível, é impossível.
– Não estão ligados ao dizer com os beiços, creio, mas ao
crer verdadeiramente no coração as notícias mandadas por Deus ao mundo pecador.
Se não quereis ser salvo assim pela fé, como haveis de salvar-vos?
O professor
abaixou a cabeça e parecia estar meditando profundamente. Quando levantou os
olhos grandes, lágrimas lhe corriam pelas faces abaixo. Pegou na mão de seu
amigo e dizem:
– Passe bem, Sr. Faria. Rogai a Deus por mim que estou
muitíssimo agoniado. Adeus.
O boticário
retirou-se para pedir a Deus que socorresse depressa o espírito aflito de seu
amigo.
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