O professor Gomes e o bom boticário Faria - Robert Reid Kalley [1809-1888]

Sr. Gomes sentiu muito a morte de um dos seus discípulos, que aconteceu poucos dias depois da conversação precedente e disse consigo: “Se fosse eu, que teria sido de mim! Hei de salvar a minha alma, custe o que custar.” Depois disto eram férias, e não tornou a ver o boticário por quase dois meses.
    Na primeira ocasião que teve disse-lhe: “Ao meu amigo, estou n’uma agonia terrível desejo muito salvar a minha alma e não se como poderá ser. Desde a noite em que me mostrastes que sou um grande pecador principiei a temer a morte, nos caminhos de ferro, nas barcas a vapor, passeando nos montes, durante a tempestade, ao deitar-me de noite, e ao levantar-me da manhã, tem-me chegado continuadamente a lembrança de que por minha rebelião contra o governo de Deus mereço a morte e a maldição. Não tenho sido capaz de divertir-me com novelas e espetáculos, nem de pensar nas cousas que antes me ocupavam. Estou triste, muitíssimo triste, mas na mesma tristeza estou mais contente do que nas cousas que antes me alegravam. Não entendo como é.”
– Procurastes aliviar-vos? E como?
– Li no Novo Testamento pela manhã e de tarde, e muitas vezes no dia. Gosto muito dele, mas não me alivia a miséria, antes a faz maior. Muitas vezes tenho-me retirado a um lugar solitário onde chorei e fiz orações tais como nunca antes fiz; no princípio aliviava-me o chorar e rogar, mas ao depois perdi ânimo, porque as lágrimas e as orações com que julgava fazer desconto de um e de outro pecado, não me proibirão de pescar, e vi que em lugar de diminuir, aumentava cada vez mais a minha dívida.
– Não tendes pensado em largar toda a consideração destas cousas?
– Sim, e esforcei-me nisso; mas parecia-me que, quando fazia assim, ouviu uma voz dizendo: “Rebelei-me contra Deus, te haverás a descuidar-te ainda da tua alma?” Agora estou pronto para todas as penitências e sofrer todos os castigos em desconto dos meus pecados.
– Não lembrastes vós de emendar a vossa vida. Largar todo o mal que sabeis em vós e fazer boas obras?
– Lembrei-me e esforcei-me também, mais vejo que me estou fazendo cada vez pior. N’uma ocasião, imagino que, se me arrependesse, Deus me perdoaria. Amaldiçoei minha vida passada. Arrependi-me em todas os noites que podia lembrar: aborreci a mim mesmo pela maneira em que tratara o bom Deus; um tanto mais me arrependi, tanto mais vi a maldade do meu coração, sabido quando quis percorrer à bondade e misericórdia de Deus, fiquei aterrado pela vista da sua santidade e justiça, pois sendo santo aborreceu o mal e sendo justo há de castigá-lo. Enfim, estou quase desesperado. Tenho feito e quero fazer tudo para merecer a salvação, mas parece que não sou digno dela e não a penso alcançar.
– A salvação não está ao agrado de vós, respondeu o boticário que tinha escutado tudo com a mais profunda atenção.
– O que? replicou o professor. A salvação não está longe de mim e eu procuro tão dignamente, e não a posso achar.
–Não duvido que a desejais ansiosamente, mas quando queremos ter mais cousas, precisamos procurá-la no caminho direito. A salvação não se pode achar no caminho em que a buscastes.
–Onde, pois, poderei achá-la?
– Só aonde está?
– Isso é o que quero saber. Aonde está?
– Não estando no lugar em que a procuraste, há de estar no outro.
– É verdade, disse o Sr. Gomes; diga-me como me hei de salvar?
– Desenganai-vos, meu amigo, os vossos pecados são tantos e tão grandes que não é possível descontá-los, em podereis nunca merecer a salvação.
– Então não há esperança para mim, ainda que desejo tão ardentemente ter a paz a minha alma. Dizendo isso tornou-se pálido e os olhos se lhe arrasaram de lágrimas.
As lágrimas alegraram o coração do boticário, que desce em se coração: “Oh, meu senhor, ajuda-me a falar como devo à alma deste pecador.”
       Então disse ao Sr. Gomes: “Não podeis ser digno da salvação, nem merecê-la, pois já sois digno da perdição e mereceis a maldição do Altíssimo pelas vossas obras. Não podeis fazer desconto de vossos pecados paga a só pelos tormentos eternos e não com esmolas, penitências e orações. Há, porém, quem mereceu a salvação e pagou pelos pecados, a que pode dar a vós outros e proveito de que Ele fez e sofreu.
– Como? Não vos entendo.
         O caso é assim: Devíamos tanto que era impossível pagarmos. Estávamos condenados à prisão até pagar o último real, que seria prisão perpétua. Um amigo teve compaixão de nós, queria e podia pagar, e com efeito pagam bastante para satisfazer toda a dívida. Mandemos então uma carta em que decifra o que fez e sofreu por nós e promete o proveito do pagamento todos que creem suas palavras e confiam Nele. A carta é o Evangelho que diz que Jesus morreu por meus pecados e acrescenta crê no Senhor Jesus e serás salvo.
– O que exclamou o Sr. Gomes, é isto o que vós chamais a salvação?
– Sim, respondeu o boticário.
       O professor abanou com a cabeça e respondeu com um olhar de desespero e tristeza:
 – Crê! Crê! E assim o homem está perdoado e salvo! Não, não posso crer que só pelo dizer creio, ficam perdoados os meus milhares de pecados.
– Talvez e crerias se vos tivesse dito:
– Jejuai duas vezes na semana, fazei-vos frade, dai muito dinheiro para missas, edificai uma igreja a algum santo ou santa, andas como peregrino a Jerusalém açoitai-vos todos os dias, ou vesti uma camisa grossa e deixai-vos ser comido de piolhos e assim descontareis os pecados. Talvez gostaríeis mais se vos dissesse: procurai ser um bom cidadão, bom vizinho, bom amigo e não tenhais medo, pois assim descontareis os pecados e ficareis bem no mundo futuro, mas não; o que vos posso dizer como discípulo de Jesus é: crê no Senhor Jesus e serás salvo, e lá estão as palavras no livro de Deus. Dizendo isso mostrou-lh’as nos Atos dos Apóstolos.
   O boticário tinha falado como um homem que sentia a verdade do que dizia, e acrescentou algumas palavras sobre o amor do Deus-Homem em sofrer tamanhas agonias por nós.
– Admirável! Muito admirável! Disse o Sr. Gomes; mas não posso imaginar que Deus tem ligado a alegria, a paz, a salvação, a vida eterna com esta única palavra – crê. É incrível, é impossível.
– Não estão ligados ao dizer com os beiços, creio, mas ao crer verdadeiramente no coração as notícias mandadas por Deus ao mundo pecador. Se não quereis ser salvo assim pela fé, como haveis de salvar-vos?
     O professor abaixou a cabeça e parecia estar meditando profundamente. Quando levantou os olhos grandes, lágrimas lhe corriam pelas faces abaixo. Pegou na mão de seu amigo e dizem:
– Passe bem, Sr. Faria. Rogai a Deus por mim que estou muitíssimo agoniado. Adeus.
    O boticário retirou-se para pedir a Deus que socorresse depressa o espírito aflito de seu amigo.

Correio Mercantil. Ano XVI, nº 178, Rio de Janeiro-RJ, 30 de Junho de 1859.

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