RODEANDO O MUNDO E PASSANDO POR ELE – WILLIAM AZEL COOK


RODEANDO O MUNDO E PASSANDO POR ELE
VIAGEM DE NOSSO IRMÃO W.A.COOK NO INTERIOR DO BRAZIL


VII - UM “SANTO” FRADE
 
    O medo do Coronel nasceu de um caso que se deu naquelle mesmo logar.
      Por muitos dias um frade andava “chumbeando”, “pintando o diabo”, e fazendo “barulhão”, e quando desenlameou-se um pouco, e “seccou-se”, denunciou que Deus lhe tinha dado uma revelação, que visitara o inferno, (sem duvida) e vira ahi alguns que outrora moravam naquelle sertão, e vira também alguns que ainda não tinhão entrado no descanço (?) inferno e prestes para entrar corporalmente. O povo, porque tinha muita confiança e fé neste fiscal do inferno acreditou na revelação e começou olhar o coronel com muitas suspeitas. Portanto este julgava bom fingir-se religioso.

UMA RUINA FREQUENTADA

      Um da nossa companhia cahiu bastante doente e ficou quase morto; e hospedou-se no antigo quartel militar. Esta casa estava muito estragada, e entravam francamente as chuvas e ventos. Entravam também as cabritas e berravam; entravam as galinhas e gallos e cantavam; entravam os cães e furatavam o pouco alimento que tínhamos; entravam as araras e gritavam e a gente fallava, e entrava a pulga penetrante e penetrava os pés do homem doente, e lhe arrancamos cincoenta destes bichos com os seus saccos. Só quasi não entravam “munições de bocca”.

    Ficámos tão doentes e abatidos em Santa Maria que começámos a julgar que nunca mais sahiriamos dalli. Por algum tempo ficamos meio-cegos e quasi incapazes em ficam em pé, sem podermos recuperar a saude e passando muita fome. Então fizemos oração a Deus para nos salvar e Elle nos deu segurança que teriamos mais alguns annos para o servir.
DE SANTA MARIA AO RIO DO SOMNO

     O caminho que vae de Santa Maria ao Rio do Somno é muito peior do que aquelle que vae de Goyaz á Santa Leopoldina, e no tempo da chuva faz-se esta viagem com grandes difficuldades. Subimos e descemos montanhas e morros ingrimes, atravessamos rios nos quaes nadavam os cavallos e passámo-nos a nós e a nossa bagagem, andando numa arvore e varas; da mesma maneira com que se anda num cabo tenso. Passamos ribeiros a váu, descendo em abysmos escuros com a agua dando até quasi as costas dos animaes, penetramos mattos onde os espinhos rasgaram-nos a roupa e a carne. Atravessámos terrenos pantanosos onde os animaes atolavam e cahiam. Naquele tempo o narrador estava doente e bastante fraco, e o seu animal que estava em estado – quasi de morte, cahiu num destes atoleiros, assentou-se e começou a deitar-se, obrigando aquelle a apear depressa e a caminhar a pé uma boa distancia com a agua e lama acima dos joelhos.

POBREZA

      A pobreza que se encontra naquelles sertões é quasi incomprehensivel em vista das riquezas naturaes da terra. Encontrámos uma familia que andava quasi nua, e naquelle tempo, como nos disseram, comiam principalmente aboboras. Em outro rancho onde chegamos á bocca da noite, achamos só quatro ovos e vimos uma pequena plantação de fumo.

A MÃO DE DEUS

       Era evidente que a mão de Deus cuidava de nós nesta viagem. Fizemos a viagem no tempo da chuva, e a tropa que nos adiantou mais de uma semana, sofreu horrores: porém nós, não obstante vermos quasi todos os dias a chuva cahindo em toda a parte ao redor de nós, não apanhamos nada senão um pouquinho uma vez.

     Choveu a cântaros com fortes ventos uma tarde e toda a noite, mas nós estávamos bem abrigados num bom rancho. Outra noite começou a chover no momento da nossa chegada a um rancho e acabou no momento em que estávamos promptos para seguir viagem. Do mesmo modo Deus cuidava de nós quanto ao alimento. Uma noite, chegados a um rancho, procuramos alguma cousa para comer sem acharmos nada; mas, na manhã seguinte, um pobre matuto, pae de famiia grande, tendo morto uma anta, deu-nos um quarto e appareceu uma gallinha e um boccado de arroz.

A PRIMEIRA VISITA A UMA ALDEIA CHERENTE

       Durante a viagem para Rio do Somno, sahimos do caminho sete legoas para visitar uma aldeia dos Cherentes.

      Estes índios tinhão-nos esperado por largo tempo, e sendo avisados de que nós iamos chegando, apromptaram-se e sahiram-nos ao encontro. Nunca vimos tal espectaculo como esse que se nos apresentou ao chegarmos á aldeia. – Gente vestida no uniforme completo da praça; gente vestida á moda de sertanejo, com calças e camisas de algodão e chapéo; gente trajando uma camada de tinta que faz afugentar as moscas. Essa congregação nos saudou com alegria, dando tiros de espingardas, tocando trombetas e buzinas, dando vivas e gritos. Tinham-nos reservado uma nova casa e logo nos conduziram para lá. Entrando nós em casa, ella logo regorgitou-se desta pobre gente mal vestida ou sem vestidos; mas de bom coração, para nos saudar e nos dar bemvindo, e para nos abraçar.

     Sabendo elles que nós não tinhamos comido quasi nada aquelle dia e já era tarde, logo começaram apparecer trazendo carne de anta e carne de porco do matto assada, e uma espécie de pão muito azedo, feito de farinha de milho. A nossa fome não era tanta que comessemos esse pão, mas comemos carne por quasi uma hora inteira. Tinhão reservado tambem para nós um pouco domestico e apressaram-se a mata-lo quando nós chegamos. Trouxeram-nos tambem ovos, gallinhas e vários vegetaes, etc.

    No dia seguinte visitamos uma grande roça onde se achava mandioca, milho, arroz, bananas, amendoim, aboboras e yames, provando-nos claramente que elles trabalham muito. Elles não teem animaes domesticos, senão umas galinhas. Só uma família tinha porcos e cavallos, a saber, um preto casado com uma india. Toda a carne que comem, vem da caça. Quando um caçador apanha algum animal, retalha-o e o assa. Se isto não lhe chega para uma carga, continúa a caça, ficando no matto ás vezes dia e noite, por tres ou quatro dias. Quando se acha carregado, volta á aldeia e reparte-se a carne entre todas as familias.

    As choupanas são feitas de ramos de palmeira e de barro; são divididas geralmente em tres quartos e teem estrados feitos de varas sobre os quaes dormem. Achamos morando numa choupana especial os velhos e as velhas.

O Estandarte. Ano VIII, nº 14. São Paulo-SP, 05 de Abril de 1900, p. 2-3.

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