VIII
“OS EXCOMUNGADOS”
Em outra choupana especial
isolada, achamos guardados os meninos que, chegados á puberdade, não se
comportam bem. Rapam-se coroas nas cabeças destes rapazes, e num certo sentido
elles ficam presos naquella casa, não lhes sendo permittido de modo nenhum
misturarem-se com o resto da gente da aldeia. A occupação principal delles é, freqüentes
vezes de dia e de noite até as nove horas, marcharem juntos ao toque da buzina
ao ribeiro para se banharem; e de vez em quando um e outro vae com o pae
trabalhar na roça. Ficam presos até darem provas de poderem comportar-se com
rectidão ou chegarem a idade de casarem-se.
UM
BAILE SELVAGEM
Á bocca da noite o
pregoeiro com muito energia chama a gente toda para assistir a uma dança na
“praça publica”. Ajunta-se todo ou quase todo o povo, e cantam todos, dirigidos
pelos velhos e pelo tocar das buzinas, e dançam todos, grandes e pequenos,
quando a dança vae bem animada.
Quem viu nunca
poderá esquecer da scena dessa multidão de vultos nus e vermelhos, dançando lá
na escuridão, animados pela nota sepulchral da buzina e por esse cântico tão
proprio para uma noite medonha. Nunca ouvimos os indios cherentes cantar um
hymno de alegria. Os hymnos delles são todos tristes ou tenebrosos.
De manhã cedo,
todos ou quasi tosos os dias, para de divertirem, os velhos reúnem-se e dançam
uma roda com as mãos dadas e cantam.
Quando alguém
practica uma desfeita, ajunta-se um conselho dos velhos, pronunciam discursos e
censuram o réo. Quando se casam, reune-se o povo e come-se uma certa qualidade
de pão.
Sempre achamos
moléstias muito feias entre estes indios; e vimos um menino quase apodrecido
com pulga penetrante e outro bicho.
A aldeia tem tres
ou quatro pessoas que são quase escravas. Estão ás ordens de toda a gente, e
até das crianças.
UMA
NECESSIDADE
Conversámos com
estes índios quanto ao estabelecermos uma eschola, e elles reconhecem que teem
muita necessidade de apprender alguma cousa. Posto que não saibam nada do
Evangelho e das bênçãos que o acompanham, fallam em aprender a leitura, a
agricultura, a costura, a arte de ferreiro e a de carpinteiro; e confessam que,
se não melhorarem a sua sorte, hão de acabar.
Quase todos
Cherentes sabem alguma cousa da língua portugueza, mas para ensinar-lhes o
Evangelho seria necessario saber soffrivelmente a sua lingua.
Essa primeira
aldeia que visitamos e que é chamada a “Aldeia do Bananal,” era a única
verdadeira aldeia dos Cherentes que vimos. Os demais índios Cherentes estão
espalhados por toda a parte morando em ajuntamentos de duas ate cinco familias
e seguindo uma vida miseravel.
OS
INDIOS E OS FRADES
Faz cincoenta
annos ou mais que estes indios Cherentes estão sob a direcção dos “pastores
christãos” (?) os frades virtuosos (?)”. mas, não obstante isto, a condição
moral e social delles é incontestavelmente peior do que nos bons dias que se
passaram antes de terem a felicidade (?) de conhecer os senhores que teem “as
chaves do inferno.” De certo estes indios têm apprendido a não andar mais como
um batalhão de guerreiros, mas têm apprendido tambem os vicios dos
“reverendíssimos excelentissimos frades” e os da sua “santa (n?)” gente que
lhes mora aos pés. No seu estado primitivo, estes pobres indios moravam juntos,
tinham chefes e existiam leis e regras para protegerem-se contra os extremos de
immoralidades e crimes. Hoje, porém, elles estão espalhados por toda a parte,
e, salvo na aldeia supra mencionada, não existem mais as restricções
primitivas.
Frei Raphael foi o
primeiro director destes indios, e tem em varias partes do mundo uma fama
bonita, romantica, e poetica; mas os do seu antigo rebanho disseram-nos que
elle gostava muito da cachaça e ficou louco alguns annos antes de morrer; e é
bem provável que elle gostasse de outras cousas ainda menos bonitas que
cachaça.
O frade italiano
que é actualmente director destes índios é uma boa pipa e tem mais outras “virtudes(?)”.
Como elle mesmo disse, está naquelle sertão ha trinta e tres annos, e nem elle
nem Frei Raphael têm feito cousa alguma por estes indios excepto baptisar
alguns e lhes arranjar padrinhos para ensinal-os a “Ave Maria”, etc.
Mas a cousa peior
de tudo é que, não obstante este ultimo director nunca dar instrucção alguma a
estes indios nem poder instruil-os, elle é como o cachorro deitado em cima do
feixe de capim, que não podia comer nem deixava ao boi comel-o. Este frade
posto que incapaz de melhorar a condição destes indios, impede de todo o modo possivel
que outras pessoas vão lá para lhes fazer bem. Elle é pago pelo governo para
ser protector desta pobre gente, mas é mais parasita e vampiro do que
protector. A povoação onde elle mora é chamada nos relatorios do governo um
aldeiamento, mas os índios não moram e nunca moram lá. Imagine-se este homem
tão estranho á verdadeira Luz e tão entregue ao peccado, conduzindo das trevas
medonhas em que teem andado por seculos, estes pobres aboriginas!
JOAQUIM
SÉPÉ BRAZIL
Joaquim Sépé
Brazil, o índio cherente que veiu a São Paulo e foi ao Rio de Janeiro solicitar
do governo um professor para ensinar o seu povo e pedir apetrechos de lavoura,
roupa, etc., e que se dava por chefe dos cherentes foi por alguns annos
sachristão de Frei Raphael, tem andando muito fazendo viagens ao Pará, e é
intelligente e instruido nas cousas mundanas. Elle não é chefe officialmente
dos cherentes, porque faz muito tempo que estes não teem chefe, mas é um dos
capitães principaes, e sendo “muito ladino” gosa muita influencia sobre todos
os indios cherentes. Elle é pagão baptizado: não sabe nada do Evangelho, mas
tem muita experiência dos vicios todos e é muito interesseiro. Porém, não
obstante isto, tem boas ideas, ama sinceramente o seu povo desgraçado, e deseja
melhorar sua sorte. Por muito tempo tem nutrido o desejo de haver por seu povo
pessoa ou pessoas illustradas e virtuosas
para lhes ensinar a leitura, a lavoura e algumas outras artes. Repartindo pois
este desejo com sua gente, veiu por fim ao Rio de Janeiro e a São Paulo para
ver se poderia realisar as suas esperanças.
O
Estandarte. Ano VIII, nº 15. São Paulo-SP, 12 de Abril de 1900, p. 2-3.
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