“Na última
década do século passado frequentava Great Eastern Ry., escola de preparação de
técnicos mecânica nos arredores de Londres um jovem inglês de espírito
aventureiro e alma simples voltada para os mistérios do Senhor. Chamava-se
Frederick Charles Glass e vivia aquele aprendizado menos com o fim de tirar
proventos para a subsistência que como um meio de realizar suas aspirações de
místico. Vamos começar a historia desse desbravador dos sertões do centro e do
oeste brasileiro por volta de 1892, quando contava 21 anos. Por esse tempo já
havia concluído o aprendizado de Great Eastern Ry., e um dia, à hora do jantar,
viu um grupo de colegas palestrando sobre cousas do Brasil. Como seria esse
país, de que apenas tivera notícia através de um selo postal? – pensou Glass.
Aproximou-se do grupo; os rapazes pintavam o Brasil com as tintas vistosas de
um novo Eldorado. Todos estavam decididos a vir trabalhar como mecânicos na
Estrada de Ferro Mogiana, que então lançava seus primeiros trilhos no Estado de
São Paulo; mas falavam de um perigo, que para o espírito aventureiro do jovem
Frederick constituía outro atrativo para a viagem – os índios. Os detalhes da
conversa aguçaram ainda mais o desejo do estudante inglês, que no dia seguinte,
com a roupa suja do óleo das máquinas, procurara O escritório da empresa, no
centro de Londres, para dar seu nome de candidato à viagem para a America. Apesar
da insistência do pedido seus chefes não o atenderam; a lista de mecânicos estava completa. Glass
ficou desolado. E nessa noite não conseguiu quase dormir porque figuras e
cousas do novo país povoaram-lhe o cérebro de poéticas imaginações. PARA O BRASIL. Na manhã imediata teve
agradável surpresa; a companhia resolvera mandar nova leva de mecânicos e os
diretores haviam incluído seu nome, tal o empenho de pedido da véspera. A 20 de
junho do ano 1892 Glass embarcou em Southampton, no Madeleine, um navio pequeno
e de nome poético, da Royal Mail; no mês de julho desembarcava em Pernambuco,
na antiga Lingueta, “onde havia muita sujeira, lama e fedor”. Foi péssima a
impressão desse europeu ao primeiro contacto com a nova terra. É ele mesmo que
nos diz: – “Em Pernambuco não havia então um prédio recomendável. Resolvi
prosseguir na viagem, destino ao Rio”. Glass achou a capital um pouco melhor;
mas ainda encontrou bondes de burro e ruas muito estreitas, que mal davam para
passear. Não ficou desapontado porque viera prevenido de Pernambuco. Apenas
demorou no Rio o tempo suficiente para transitar para São Paulo. Ali, iniciou
suas atividades na Mogiana, até o tempo de Custódio de Melo. Glass conta-nos
agora um detalhe pitoresco de sua vida no país. Deixemos que ele próprio narre
a aventura: – “Encontrava-me no Brasil há apenas um mês. Estávamos no governo
Floriano, nos primeiros e agitados anos da República; a todo o momento se
esperavam desordens, especialmente nas cidades do interior. A policia tomara
medidas enérgicas e até proibira aos rapazes o uso de bengala. PRESO POR CONDUZIR BENGALA. Eu trouxera
comigo bonita bengala inglesa, então muito em moda em Londres, e a levei a um
de meus primeiros passeios brasileiros. Procurei o circo d cavalinhos e no meio
da função fui interpelado por um sujeito que tentou tomar-me a bengala. Protestei
em linguagem que não era propriamente nem o meu velho inglês nem o português em
que me iniciara; pareça antes uma incompreensível transição entre as duas línguas.
Também resisti, mas de nada valeram protesto e resistência porque o sujeito, a
um apito, teve a ajuda de outros homens que me dominaram no meio de apupos da assistência
e temores das famílias, e me conduziram ao xadrez. Essa noite de prisão foi uma
das coisas mais tétricas de minha vida. Ignorava o motivo porque fora detido, o
que aumentava os temores. E no meio dos outros presos, com frio e com medo dos
companheiros, formulei o juramento solene e nunca cumprido de retornar
definitivamente à Inglaterra. Cerca das 3 horas da madrugada o carcereiro deu
uma volta na prisão; com uma lanterna antiga, de luz semi-morta, chegava-se e
iluminava o rosto de cada detento, como se estivesse à procura de alguém. Quando
chegou a minha vez julguei que aquela era a hora em que me caçavam para a
morte. Mas o homem passou adiante. Saí então daquele pesadelo e acreditei estar
salvo. “GALEGO MALCRIADO”. Pouco depois
o carcereiro repetiu a visita. Decididamente, chegara minha ultima hora. Veio direto
a mim... para dizer, numa linguagem que a inteligência não entendia mas o instinto
adivinhava, para ir embora. Hoje é que compreendo suas palavras: – “Puxe daqui
galego malcriado”. A saída a soldadesca e gargalhadas e eu os tomei como
verdadeiros demônios”. EM MORRO
VERMELHO. Depois o jovem Glass deixa a Mogiana. A direção da companhia
resolvera que os contratos de serviço passariam a ser feitos em moeda
brasileira e não à base de libras, como até então se processara. Desgostoso com
a resolução de Londres decidiu-se a embarcar para a Argentina, de onde recebera
convite. No dia da viagem teve uma proposta para as minas de ouro de Morro
Vermelho, em Vila Nova, Estado de Minas. Foi em Morro Vermelho que deixou de
ser mecânico para trabalhar como mineralogista. Glass relata a grande catástrofe
de 1880, quando diversos mineiros ficaram soterrados por um desabamento. E depois
continua sua história: a – “Em Morro Vermelho, influenciado por leituras,
comecei a interessar-me pela vida de missionário. Talvez o espírito aventureiro
me tenha também inclinado para a nova missão.” VENDEDOR DE BÍBLIAS. Em 1898 Frederick Charles Glass realizou sua
primeira viagem como vendedor de bíblias, indo a cavalo de Ouro Preto a Vitória
do Espírito Santo. – “Mas, era muito difícil convencer os fregueses com o meu
português complicado”. No ano seguinte viajou por estrada de ferro de
Petrópolis até Araguari, onde comprou sete animais e com eles atravessou todo o
Estado de Goiaz. Dessa vez ganhou o Estado de Mato Grosso e então teve o
primeiro contacto com índios brasileiros – os bororós, perto das nascentes do
rio das Mortes. – “Não vi os indígenas, mas os ouvi acompanhando-me à estrada
de dentro do mato. Foi nas proximidades de Cuiabá que encontrei um índio pela
primeira vez. Era um tipo sadio e forte, mas que me pareceu de feição muito
sensual”. Nessa excursão pelo oeste brasileiro prosseguiu até o Paraguai,
esteve em Buenos Aires e depois retornou ao Rio. Era a atração dos índios que
agora o fazia voltar ao Brasil. Passou depois a residir em Goiaz, e uma dia
apareceram na cidade 8 carajás. – “Vinham
pintados, inteiramente despidos e mesmo entre os brancos, pelo que me foi dado
observar, não faziam cerimônia de sua nudez. Esses índios pintados, nus, de
cabelo crescido quase a alcançar a cintura, eram o centro da curiosidade da
população da capital. Chamei-os para casa e lhes ofereci farinha e rapadura,
alimentação ideal para eles. Hospedei-os durante quatro dias e lhes consegui a
confiança. Nessa época iniciei o vocabulário carajá de que guardo algumas
palavras. O índio mais simpático desse grupo, um nature’s gentleman, chamava-se
Odidi. Interessei-me pelo rapaz que com pouco tempo aprendeu a ler e escrever. A
língua carajá é uma mistura de tupi e caribe; idioma interessante porque há
frases masculinas que só podem ser empregadas tratando-se de homem; outras,
femininas, somente são usadas em relação à mulher. Será fiasco indesculpável
entre os índios empregar frases masculinas para indivíduos do sexo feminino. VIAGEM PELO ARAGUAIA. Foi desta vez que
recebi convite para uma viagem pelo rio Araguaia, até a Ilha de Bananal. O convite
partiu de Odidi, índio sagaz, honesto, fiel e amoroso. Para explicar a este
jovem selvagem, mais tarde chefe de uma aldeia de sua tribo, o que eram as
cousas do mundo civilizado, tinha de recorrer a animais e objetos conhecidos. Descrevia-lhe
o trem com um cavalo de ferro com barriga de fogo. Odidi sorria quase
incrédulo, com os olhos acesos de curiosidade. Mas não demorava em
convencer-se. Mais tarde fiz-lhe ver um trem correr sobre os trilhos. Odidi foi
o meu piloto e livrou-me de sérios perigos na viagem à Ilha de Bananal. Dessa vez
fui preso pelos índios Carajás, meus anfitriões, porque não queriam que tomasse
amizade com os índios tapirapés, seus inimigos mortais. Os índios são
demasiadamente ciumentos e prezam como ninguém suas amizades. Com o fim de
impedir que alcançasse o território tapirapé tomaram-me a canoa e o remo. Para resolver
o mal entendido chamei Odidi e pedi que repartisse entre eles as rapaduras que
conduzia; assim consegui adocicar temporariamente a situação. CEMITÉRIO DE ÍNDIOS. Nessa viagem ao
Araguaia manifestei aos indígenas o desejo de visitar um de seus cemitérios. Os
índios se reuniram e passaram a discutir se deviam satisfazer o pedido do tauri
(homem branco). Afinal, depois da oposição de uns e da permissão de outros,
consentiram em atender. Quando o índio morre cava-se a cova e em cada
extremidade fixa-se uma estaca. O cadáver é posto em rede que se prende às estacas,
ficando a balançar suspensa no centro da cova. Então cobre-se a sepultura com a
folhagem das árvores vizinhas, formando a cobertura uma espécie de cumieira. Com
o corpo ficam alimentos e as armas que o índio usou em vida. Depois de algum
tempo retira-se o cadáver e as mulheres conduzem os restos até o rio mais
próximo, onde destacam dos ossos as partes moles. A ossatura é posta em urnas,
deixadas expostas nos cemitérios. Na minha viagem à Ilha do Bananal,
prisioneiro dos Carajás, seguia com Odidi na igaraté (canoa grande e comprida)
abarrotada de índios: nem sei mesmo como não ia ao fundo. Enquanto subíamos,
descia o rio verdadeira procissão de canoas, conduzindo os indígenas em festas.
Afinal a igaraté tocou em um barranco; os índios saltaram e a conduziram para a
terra. NA TAPERA DO CACIQUE. Com pouco
o cacique apareceu; fez-me exigências que mal compreendia e conduziu-me à
tapera, construída de varas e palmeiras. Então sentou-se no tapete da sala. Lembrei-me
naquele momento difícil que deixara um pijama na igaraté. Distingui uma lança
no canto da cabana, arcos e flechas; e propositadamente fingi muito interesse
pela lança. Os índios ofereceram-se para vendê-las. Propus a compra por um
lenço, por canodé (farinha de mandioca) ou espelho. Os indígenas recusaram. Então
lembrei o pijama. Os índios puseram-se em pé de um salto: roupa de tauri! E o
cacique bradou num convite – barabe – doçar (vamos embora com muita pressa). Fomos
todos – eu, Odidi e os Carajás – correndo até à canoa. Facilmente vesti a calça
da pijama no cacique; mas para consegui pôr-lhe o paletó lutei com enorme
dificuldade. Os braços do homem, forte como um touro, eram retesos e não
dobravam com facilidade. O índio vestido olhava deslumbrado para a roupa; os
outros sorriam e festejavam. Quando libertaram a canoa remamos com toda a força
um quilômetro, sem tirar o remo d’água nem voltar os olhos para trás. UM RECANTO DE PAZ. Frederick Charles
Glass reside hoje em Garanhuns; em um sítio que construiu distante um
quilômetro do centro da cidade, com quarenta e cinco espécies de fruteiras. Dali
se descortina uma paisagem bonita, dominada pela vegetação verde e viçosa que
durante todo o ano cobre as encostas ubérrimas da serra de Garanhuns. Conta 72
anos e ainda é árdego como nos 20. Nós o chamamos apenas Mr. Glass. Sua casa,
em estilo colonial, lembra uma dessas antigas residências inglesas da zona
rural, de linhas simples e austeras. Mr. Glass recebe-nos no gabinete de
trabalho; e uma sala clara, com três poltronas e uma estante antiga. Nas paredes,
retratos da família, instrumentos e armas dos índios e esta inscrição bíblica,
que sugere uma legenda: – Quanto a minha casa, digo que servimos ao Senhor. Faz
17 anos que se encontra em Garanhuns, “um recanto de paz” como ele próprio diz;
leva uma vida modesta e calma, somente interrompida com uma visita à cidade ou
viagens ao Recife. Mr. Glass mostrou os objetos que possui, recordações que
guarda como relíquias – flechas, tacapes, remos, arcos e um machado de pedra
articulada em madeira encontrado entre os apinagés, índios do norte de Goiaz. Nesse
recanto do interior pernambucano, no alto da serra de Garanhuns, outrora
habitada por índios bravios e pássaros negros, fomos encontrar sob um clima
suave e ameno esse hospitaleiro inglês que dedica aos índios brasileiros
amizade sincera e carinho quase paternal."
Um
missionário inglês entre indios brasileiros. Reportagem de A. Malta
para Diario de Pernambuco, nº 262, 7 de Novembro de 1943, p. 3 e 9.
Comentários
Postar um comentário