Atravez do Territorio dos Indios Carajás de Frederick Charles Glass

 

 Foto: With the Bible in the Brazil de Frederick Charles Glass, 1914, p. 134

Atravez do Territorio dos Indios Carajás de Frederick Charles Glass

(Publicado no Jornal Batista, Ano XIX, nº 51, 18 de Dezembro de 1919, p. 8-9)

    DEIXANDO Maceió em 27 de Abril, acompanhado do nosso fiel ex-barqueiro e colportor Antão Pessoa, viajando via Rio e S. Paulo, chegamos á margem do grande rio Araguaya, em 7 de Junho, tendo gasto quasi um mez, montados nas costas de animaes, atravéz do interior. Ali tivemos a perspectiva de uma longa e aventurosa viagem de umas duas mil milhas descendo em canoa até ao oceano, no Estado do Pará. Nossas provisões eram bastantes mas tivemos que gastar dez dias até se fazer uma canoa bastante ampla e solida para emprehendermos a viagem.

    Estes dias, entretanto, não foram por nós passados na ociosidade, porque cada tarde ao declinar do sol, eu e o colportor Antão tomavamos logar na escadaria da pequena capella catholica, da decadente povoação de Santa Leopoldina, pregávamos o Evangelho, faziamos orações e larga distribuição de novos testamentos entre os ouvintes.

     Logo que embarcamos rio acima, vemos que a canoa fôra tão mal feita, que fazia água por todos os lados, de modo que tivemos que gastar mais um dia para calafetar as fendas maiores com alcatrão e resina.

    Finalmente puzemos a canoa a navegar no dia 17 de Junho, e dois dias depois chegamos ao primeiro aldeamento de Carajás onde tivemos feliz e alegre entrevista com os nossos amigos de tez vermelha. Acháma-os tão admiraveis e amaveis como sempre, e bem assim tão primitivos e rudimentarmente pitorescos no seu pequeno mundo, que não vae além das margens do Araguaya. Tão simples, elles nada sabiam da grande guerra, de que acabamos de ser alliviados, nem eu mesmo me dispuz a fallar-lhes de tal assumpto. Elles quasi absolutamente ignoram que exista uma nacionalidade que se chama Brasil, e nem imaginam alguma coisa de maior e mais bello, que a sua aldeola, a sua taba de folhas de palmeira, os seus pennachos multicores, as suas tangas de fibras vegetaes, coloridas de vermelho e preto.

     Nossa chegada foi festejada com um bailado indígena, e todos se mostraram muito alegres á nossa visita e alegres tambem em receber espelhinhos e outros pequenos objectos que lhes demos.

    Descendo o rio, em uma corrente muito favoravel, fizemos uma viagem muito boa; e no domingo de tarde fizemos uma pregação evangélica em S. José, á sombra de uma grande arvore de tamarindo. Este logar é o ponto mais ou menos civilizado, mais afastado da civilização, e que só é visitado de dois em dois ou de tres em tres annos por um frade catholico. Neste lugar deixei grande numero de Novos Testamentos distribuidos com seu poder de derramar luz nos logares escuros. Um homem declarou-me que queria muito aprender a ler, a fim de poder conhecer o conteudo do livro.

     Prosseguindo em nossa viagem chegamos a outros aldeamentos de índios; e no terceiro dia chegamos á formosa ilha de Bananal, a maior ilha fluvial do mundo, que tem duzentas e cincoenta milhas de extensão, e é exclusivamente povoada por índios. Navegamos pelo canal occidental, chegando ao extremo norte da ilha duas semanas depois.

     O Araguaya, que é tão largo como o Rio Ganges, é o rio mais plácido do Brasil; não obstante, é um dos menos conhecidos. Suas praias alvíssimas, águas crystallinas, esplendidas florestas marginaes, povoadas de riquíssima fauna; uma vez vistas, jamais poderão ser esquecidas.

    No primeiro percurso de mil milhas, somente encontrei um homem branco, de canoa.

    Viajamos havia poucos dias, quando Thiago, que com Antão fazia o trabalho de canoeiro, começou a sentir grande receio dos índios, e para encobri-lo deu parte de doente. Este temor e desconfiança dos índios é geral, entre os brasileiros civilizados, talvez echos da consciência collectiva accusada, oriundos do tratamento que os seus antepassados haviam dado aos mesmos índios. O fracasso deste canoeiro, veio atrapalhar-nos, e a unica coisa que pudemos fazer foi improvisar um mastro e uma vela para aproveitar o vento favorável. Nada conhecendo, nós, porém, do officio, custou-nos muito a colher algum proveito da experiência; e quando mal esperávamos desabou sobre nós um temporal de vento e chuva, justamente no momento em que não podíamos enrolar a tosca vela, sem perigo.

     Emquanto Thiago, sob a minha tolda, se dizia doente, Antão segurava o mastro improvisado, e eu com uma das mãos segurava a corda da vela, e com a outra prendia o leme. A canoa corria temerosamente veloz, e ao mesmo tempo se enchia de água; as forças de Antão se extinguiam, de modo que tivemos que chamar o “doente” para fora, para esgotar a água da canoa. Foram uns momentos críticos, tanto mais que não vimos um logar acostavel. Felizmente, passados os tempos de anciedade, divisamos uma pequena Bahia, onde pudemos refugiar-nos.

  Visitei muitos aldeamentos de indios, pernoitando em alguns delles, e encontrando pouca difficuldade no tratamento com os affectivos habitantes. Vivendo numa região isolada, muito longe da esphera do homem branco, com suas leis, virtudes e vícios, os indios Carajás, são os verdadeiros senhores de toda a região do Araguaya, e podemos fazer o que bem quizerem daquelle que ouse atravessar os seus domínios; mas não abusam da sua força e, com raras excepções achei que são de caracter nobre, honrado e digno de confiança.

     É um povo digno, de boa apparencia physica, com poucas anormalidades. Não vi entre elles doenças de pello, ainda que a sua alimentação seja quasi exclusivamente de peixe sem sal. Os moços apresentam notável forçoa muscular, desenvolvida á custa da lucta corpo a corpo, seu jogo favorito e no qual elles são peritos. As mulheres e crianças são pacificas e modestas; as creanças são especialmente attractivas.

    Não há entre os carajás a polygamia, e as mulheres exercem entre elles uma influencia real e benéfica. Esse povo não usa roupa de espécie alguma (a não ser as mulheres, que usam uma curta tanga de tecido de fibras vegetaes), mas para a substituir usam pintar o corpo com uma cor vermelha vegetal muito viva sobre fundo preto, feita com o succo da fructa do genipapo, em elaborados desenhos.

     Qualquer pessoa que tratar com este povo, necessita ter muito cuidado e domínio proprio, e sobretudo deve occultar bem todo e qualquer receio que porventura esteja sentindo. Uma vez, quando explorávamos as vertentes de um tributario do Araguaya, em demanda de uma tribu famosa inimiga dos Carajás, vimos com dolorosa surpreza que éramos perseguidos por quatro pirogas, tripuladas por quatorze indios que abordaram e penetram todos de uma só vez na nossa canoa, quasi fazendo-a afundar, e que incontinente me tiraram o leme da mão, e os remos da mão de Antão, ficando nós inteiramente á mercê delles. Apezar da situação critica que atravessamos, tive que mostrar-me superior a ella; e apparentando a maior serenidade e boa presença de espírito, ordenei a Antão que tirasse para fora algumas rapaduras, e as repartisse com os índios; por minha vez distribui com elles alguns peixes apanhados a anzol, e em pouco eramos os melhores amigos, ainda que só passado algum tempo pudemos novamente ficar senhores da canôa. Dois destes indios levei-os commigo diversas centenas de milhas, e que bons companheiros elles eram! Nossa despensa estava continuadamente abarrotada de peixe, porque todos os indios são hábeis pescadores por meio do arco e da flexa.

     Os Carajás teem uma boa disposição de animo, um bom humor nato, espírito alegre e flgazão. Seus cânticos selvagens são bellos e attractivos. Estendidos pela macia e branca areia da praia, elles cantaram em nossa presença durante mais de uma hora; e quando, para retribui-lhes o cumprimento, comecei a cantar para elles, começaram a imitar-me mimicamente, como se fossem creanças e a rir com grande satisfação.

     Parece que a sua maior felicidade consiste em participar da pannela de um homem branco ou receber uma rapadura ou espelhinho.

      Como já foi dicto, elles vivem quasi exclusivamente de peixe, que no rio Araguaya é muito abundante e variado. Algumas famílias de peixes são muito perigosas, como a carnívora piranha, que ataca furiosamente em cardumes as pessoas na agua, como me aconteceu numa viagem, conseguindo eu safar-me rapidamente antes que cahissem sobre mim. lembrando-me do numero de piranhas que tenho comido, fritas com farinha, considero-me bem pago! Achei que a melhor isca para pegar as piranhas, era um pedacinho da minha camisa vermelha, e raras vezes tinha que esperar mais de 4 segundos para apanhar uma. Ellas atacavam furiosamente o pedaço da minha camisa, que pensavam ser carne ensangüentada, e mais furiosamente atacariam a mim se eu cahisse na agua!

      Outro peixe digno de nota é o peixe serra, um dos quaes, quando eu uma vez nadava, produziu-me uma terrível ferida, que levou mezes a sarar. Certamente aquellas paragens não são ainda o paraiso terrestre. Fomos muitas vezes perseguidos pelos mosquitos, e até por jacarés, mas aqui há que se comer o doce com o amargoso. Felizmente desta vez não vimos onças.

      Não vi o menor signal de adoração de ídolos entre os Carajás, ainda que elles tenham uma forte crença no mundo espiritual. Fazem grande lamentação aos seus mortos, lamentações que se estendem por mezes, dia e noite, mesmo que o morto seja uma creança.

     Se alguem que transitar  entre elles carregar armas é necessário leva-las escondidas para não causarem suspeitas; e mesmo uma machina photographica é necessário usa-la com muito cuidado e argucia. Eu costumo olhar para dentro da machina pelo foco, mostrando-me muito interessado. Isto excita nos índios tambem a curiosidade e nessa occasião faço a machina funccionar.

    A única occasião em que tive uma difficuldade série, foi numa villa onde já oito annos antes tinha tido outra difficuldade. Desta vez já não existia o velho chefe da tribu, mas o seu successor, evidentemente herdou delle os defeitos.

    Ao approximar-me da villa o chefe fez-me arcar a pesada carga e, sabendo-me inteiramente ao seu dispor, começou a exigir coisas exhorbitantes, para si e seus numerosos parentes, como fossem canivetes, machados, espelhos, collares de contas, anzoes, roupas – um sortimento completo, emfim. Tibve que humilhar-me o mais possivel, pois não tinha a maior parte das coisas exigidas, e necessitava reflectir sobre o modo de encarar a situação. Suggeri-lhe fazer eu uma visita á sua taba de folhas de palmeira. Lá chegando, vi a um canto um arco de indio, mas desgracioso e imprestável; mostrei-me, porém, grandemente interessado por elle. Como os índios gostam muito de fazer trocas, esquecendo-se de suas exorbitantes exigências, perguntou-lhe logo o que lhe daria em troca. Depois de mencionar varias coisas que o não attrahiam, falei-lhe de um casaco. Isto tocou o ponto sensivel. “Deixe ve-lo”, disse elle incontinenti. Logo que lhe mostrei o meu casaco-pyjama de cores vivas, os olhos do chefe indio brilharam de satisfação. Ajudei-o a vesti-lo; e elle mais encantado ficou ao ver os cordões e os botões. Antes que cessasse o bom effeito tratámos de nos despedir, deixando o chefe indio gozando a sua grotesca gloria. E não cessamos de remar com coragem, emquanto a aldeia não desapparecesse da nossa vista, temendo que os signaes de preparação do nosso almoço attrahissem novamente a attenção dos indios sobre nós.

     Em outro aldeamento, o chefe tomou a minha garrafa de espírito camphorado, que eu uso como remédio contra picadas de mosquitos, e pensando que fosse bebida de branco, e tambem que o nosso aviso não era sincero, levou á bocca e bebeu um bom trago. O seu incommodo produziu um grande alvoroço, e nós, aproveitando a confusão, raspámo-nos, sem saber qual foi o resultado final!

    Desde o dia de nossa partida corriam rumores da morte do meu amado e joven indio Odidi. Entre os proprios carajás as noticias a tal respeito eram contraditórias; mas depois de muitas decepções achamo-lo vivo e perfeitamente bom de saude. Nosso encontro foi quasi sensacional, porque os Carajás daquelle aldeamento, apreciam-n’o tanto como eu, e nem demonstravam ter inveja das dadivas que de longe eu lhe levára. Elle estava muito alegre, mas muito modesto e reservado, lembrando-se talvez do tempo quando vestido, como qualquer civilizado, em Goyaz, comia á nossa mesa e assistias aos nossos cultos. Entre outras coisas dei-lhe um Novo Testamento, que elle póde bem decifrar.

      Gastei dois dias neste aldeamento e tornei-me muito intimo com os habitantes, os quaes nos abasteceram abundantemente de bananas e de inhame. Ha nestas aldeias grande variedade de aves, taes como falcões, aguias, mochos, patos selvagens, papagaios de varias especies, etc. Das pennas destas aves os indios fazem ornamentos para o corpo, os seus arcos, e outros objectos artísticos.

     Chegando á zona objecto principal das nossas pesquizas, achei que as condições geraes eram muito mais favoraveis ao estabelecimento de uma missão evangelica entre os indios, do que eu presumia. É uma maravilhosa porta aberta sob a providencia de Deus, para pregar o Evangelho, não sómente a uma raça de índios, mas a diversas que se veem na região, mais ou menos bem representadas.

         No baixo Araguaya, perto do extremo limite da zona dos indios, acha-se a cidade de Conceição, quase fora de contacto com o mundo civilizado, não tendo mesmo serviço postal. Aqui gastei eu uma semana emquanto se preparava uma canoa e tripulação para descermos as cataratas até o oceano. Fiz neste logar uma interessante visita a um convento de frades dominicanos, e deixei dois Novos Testamentos nas mãos de dois affaveis monges da ordem, que pareceram sentir prazer em recebe-los. Casualmente soube que vivia um crente do outro lado do rio, na casa de quem realizei uma reunião muito concorrida.

      Minha longa viagem estava quasi concluida. Deixando a terra dos carajás, descemos as perigosas cataratas do Araguaya e Tocantins, gastando duas semanas de trabalhos arduos e anciedade, em que não poucas vezes a tripulação deu bem pouco pela nossa segurança. Porém, ainda que uma vez fosse apanhada a nossa canoa em um turbilhão, conseguimos safar-nos delle sem perda alguma, quando muitas vidas teem no mesmo logar perecido. Cada manhã que o sol se levantava a illuminar com a sua radiante claridade as aguas do rio e as densas florestas marginaes, cruzavamos os remos, elevavamos nossos corações a Deus em oração e louvor; e depois Antão e eu cantavamos juntos um hymno, ou um cantava após o outro.

      Chegámos ao porto do Pará em 11 de agosto, sendo hospitaleiramente recebido pelo agente da Sociedade Biblica Britannica e Estrangeira, sr. O. Walkey, e cinco dias depois embarcamos no paquete inglez que nos trouxe á nossa residência em Maceió.

Maceió, 25 de outubro de 1919

 

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