Torquato Martins Cardoso, colportor português da Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira no ano de 1866, em Aracaju, capital de Sergipe, foi impedido pelo Delegado Antero Cicero de Assis, então Chefe de Polícia da Província de Sergipe, de distribuir Bíblias, declarando que esse ato era contrário à religião oficial do País. Havia autorização para que Torquato Martins Cardoso vendesse Bíblias, mas o delegado não quis aceitar a legalidade da autorização.
“A 17 de dezembro do anno passado chegou a Aracajú, Capital da província de Sergipe o súbdito portuguez Torquato Martins Cardoso; no dia seguinte despachou na alfândega volumes contendo Biblias e extrahio da thesouraria a competente autorisação para fazer acto de commercio vendendo-as; apresentou-se afinal ao chefe de policia da provincia communicando lhe o seu caracter de estrangeiro e a sua profissão, retirando-se da presença do magistrado conscio de que nada o perturbaria no exercício desse direito incontestavel. Vendidos alguns exemplares e decorridos poucos dias após o da chegada de Torquato a Aracajú, teve o vigario de subir ao pulpito, e dahi proferio excommunhão contra todos os que lessem e possuissem as Biblias de Torquato, por elle reputadas falsas.” (DIARIO DE PERNAMBUCO, nº 205, 07 de Setembro de 1867, p. 08)
O vigário local publicou que quem lesse as “bíblias falsas” de Torquato Martins, sofreria excomunhão. O delegado Antero chamou o colportor Torquato e o advertiu de que o povo estava com os ânimos acirrados e, por isso, ele deveria deixar Aracaju, e seguir para o interior para vender suas Bíblias. Torquato retirou-se para o centro da província de Sergipe, vendendo suas Bíblias sem oposição, mas foi intimado pelo Delegado Antero e teve que voltar a Aracaju. O subdelegado, a mando de seu chefe, o Dr. Antero, exigiu que Torquato Martins se abstivesse de vender Bíblias, sob pena de processo, e intimou o dono do hotel em que Torquato estava hospedado para que ele não permitisse venda de Bíblias em seu estabelecimento.
“[...] Cumpro o respeitavel despacho supra, para aqui mesmo o indeferir ao supplicante, que já foi advertido que a venda de seus livros, julgados falsos por autoridade ecclesiastica competente, seria a pratica do crime previsto no art. 277 do codigo criminal, e hoje, depois de advertido, é mais o crime do art, 128 do mesmo codigo, pelos quaes sera immediatamente processado se continuar a espalhar taes livros na população, e o supplicante, que já fez sua retirada desta cidade, o que lugar á demora deste despacho, mostrou estar convencido disto. Secretaria da policia de Sergipe, 28 de Fevereiro de 1867. – A. Assis.” (ANNAES DO PARLAMENTO BRAZILEIRO, Tomo 4, 1867, p. 14)
Torquato Martins chegou a ser preso pelo Delegado Antero Cicero de Assis. O episódio foi amplamente relatado por vários jornais seculares da época.
“INTOLERANCIA RELIGIOSA. Um portuguez, vendedor de Biblias, foi impedido pela policia de Sergipe de continuar a fazel-o, e preso por desobediência á autoridade. Eis um accidente desagradavel, para o qual importa chemar a attenção do governo. Não ha nenhuma lei que prohiba a venda de livros no Brasil, desde que tenham sido importados e despachados nas alfandegas. No regulamento das alfandegas é que ha uma infeliz restricção á liberdade de commercio, segundo a qual não devem ser despachados os livros que contiverem ataques á religião do Estado. Mas um aresto do governo, sob audiencia do conselho de Estado, em 1862, declara que tal prohibição deve ser restricção applicada ás publicações que zombarem da religião do Estado, que é o delicto definido pelo codigo criminal. Esse aresto foi tomado a proposito de umas brochuras contendo doutrinas do culto evangelico pelo Dr. Kelly...” (DIARIO DO RIO DE JANEIRO, nº 86, 09 de Abril de 1867, p. 02)
Torquato Martins recorreu via administrativa ao Governo Imperial em 14 de Março de 1866, e, em 04 de Maio de 1868, o Ministro da Justiça do Império do Brasil se manifestou sobre a questão, considerando legal a venda de Bíblias por parte do colportor português Torquato Martins Cardoso.
“Declara que a venda de livros sagrados, reputados contrarios á religião catholica, é permittida, por ser conforme a liberdade individual; salvo o procedimento criminal, por via de processo, nos casos expressos nos arts. 277 e 278 do Codigo Criminal. Rio de Janeiro, 4 de maio de 1868. Illm. E Exm. Sr. Foi presente a Sua Magestade o Imperador a representação de Torquato Martins Cardoso contra o acto desse presidencia e do chefe de policia dessa provincial, negando a licença para a venda de livros sagrados, por serem reputados contrarios ás doutrinas da Religião Catholica Apostolica Romana. E o mesmo augusto senhor, tendo ouvido a secção de justiça do conselho de estado, com cujo parecer se conformou por sua imperial e immediata resolução de 22 do mez proximo passado, houve por bem mandar declarar a V. Ex.: 1º que é do rigoroso dever dessa presidencia respeitar e manter a liberdade individual, consagrada no art. 169 §§ 1º, 5º e 24 da Constituição; 2º que o chefe de policia não podia proceder contra o reclamante senão nos casos expressos nos arts. 277 e 278 do Codigo, não arbitrariamente senão por via de processo criminal; 3º que não é licito a um delegado do governo imperial o dizer e sustentar o proposito de proceder arbitrariamente no caso de deficiencia das leis do paiz. O que lhe communico para sua intelligencia e devida execução. Deus guarde a V.Ex. – Martim Francisco Ribeiro de Andrada. – Sr. presidente da provincia de Sergipe.” (REVISTA DO INSTITUTO DA ORDEM DOS ADVOGADOS BRASILEIROS, nº 01/02, 1868, p. 228)
O colportor português Torquato Martins Cardoso e a distribuição de Bíblias no Brasil © 2024 by Daiane Firme Cavalcante is licensed under CC BY-NC-ND 4.0
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