A viagem da Christiana com os seus filhos – John Bunyan (1628-1688)




         Então Temerosa injuriou-a, e voltando-se para a sua companheira, disse-lhe:
– Vamos, vizinha Piedade, deixemo-la, visto que ela despreza a nossa companhia e o nosso conselho. Piedade, porém, hesitou e não quis ir com a sua vizinha por dois motivos:
     1º Ela estimava muito a Cristiana e disse consigo: Se ela parte, com certeza, segui-la-ei um pouco para ajudá-la.
     2º Ela pensava na sua própria alma, porque as palavras de Cristiana tocaram-lhe o coração e ela raciocinou consigo: Conversarei com ela mais largamente, e se achar verdade no que ela disser, de boa vontade a acompanharei.
    Portanto, respondeu a sua vizinha Temerosa da seguinte maneira:
Piedade. – É certo que vim contigo visitar a Cristiana hoje, mas como ela está prestes a despedir-se da sua terra, acompanhá-la-ei um pouco neste belo dia, para ajudá-la. Ela, porém, nada disse do segundo motivo que levou-a a proceder assim.
Temerosa. – Está bom, vejo que tu também queres tornar-te louca, mas aceita um conselho e sejas avisada enquanto estamos livres de perigo, estamos seguras, mas quando já estivermos no perigo, o que sucederá então?
    Dizendo isto, a Sra. Temerosa seguiu para a sua casa e Cristiana partiu. Mas quando Temerosa chegou à casa, mandou chamar algumas vizinhas, a saber: a Sra. Olhos de Morcego, a Sra. Sem Consideração, a Sra. Leviana e a Sra. Ignorância.
    Quando chegaram, ela principiou a contar-lhes assim a história de Cristiana, e da viagem que ia empreender:
– Minhas vizinhas: tendo pouco que fazer em casa, fui visitar a Cristiana esta manhã, e quando bati na sua porta, como de costume, ela respondeu: Se vens em nome do Senhor, entra.
    Entrei, supondo que tudo estava bom, e eis que a encontrei preparando-se para sair da cidade, juntamente com os filhos. Então perguntei-lhe o que significava aquilo. Enfim, ela disse-me que tinha vontade de fazer uma viagem, como já tinha feito seu marido. Ela contou-me um sonho que teve, e como o Rei do país onde estava o seu marido tinha-lhe mandado uma carta convidando-a para ir lá. A Sra. Ignorância respondeu-lhe e disse: Pois pensas que ela irá?
Temerosa. – Vai, sim; custe o que lhe custar. Sei pela seguinte razão, que quando procurei persuadi-la a ficar em casa, o argumento mais forte que lhe apresentei, a saber, os incômodos da viagem, pois disse-me que às tristezas precedem as alegrias, e por isso as alegrias são maiores.
Olhos de Morcego. – Ora que louca! E ela não quer aceitar o aviso das aflições de seu marido? Quanto a mim, estou certa de que, se ele estivesse aqui outra vez, havia de contentar-se e nunca mais afrontar tantos desgostos inúteis.
    A Sra. Sem Consideração respondeu: Fora com tais loucas fantásticas; é bom estar-se livre dela; se ficasse aqui e tivesse tais ideias absurdas, quem poderia viver em sossego? Ela estaria triste ou aborrecida, ou havia de falar de coisas que ninguém poderia suportar. Portanto, eu não hei de lamentar a sua partida, deixai-a ir, para que gente melhor tome o seu lugar. O mundo nunca tem sido feliz desde que tais loucos têm entrado nele.
Então a Sra. Impudica tomou a palavra e disse:
– Não falemos mais nessas coisas. Ontem fui à casa de madame Lascívia e divertimo-nos bastante. Lá estava a Sra. Concupiscência da carne, e mais três ou quatro pessoas; a Sra. Impureza, o Sr. Imundícia e mais outras, e lá tivemos todos os divertimentos mundanos. Eu digo que madame é uma pessoa muito agradável e o senhor Imundícia é um bom homem.
     Entretanto Cristiana seguia o caminho, e Piedade ia junto dela, e como caminhavam, Cristiana principiou a conversar e disse:
– Tenho isso por um favor, Piedade, o acompanhares-me um pouco.
     Piedade, que era ainda mocinha, respondeu-lhe:
– Se eu pensasse que seria proveitoso acompanhar-te, nunca tornaria a voltar à cidade.
Cristiana. – Está bom, venha comigo, eu sei qual será o fim da nossa peregrinação; meu marido lá está, e não deixaria o lugar em que se acha pelo ouro de todas as minas do mundo. Tu não hás de ser rejeitada. O Rei que mandou chamar-me e aos meus filhos, deleita-se em piedade. Além disso, se quiseres ir comigo, te alugarei, acompanhar-me-ás como companheira e teremos todas as coisas em comum; venha comigo.
Piedade. – Mas, como terei a certeza de ser bem acolhida? Se tivesse a certeza, não hesitaria um só instante em acompanhar-te, por mais escabroso que fosse o caminho, sendo ajudada por aquele que sabe ajudar.
– Pois, cara Piedade, eu te direi o que deves fazer; venha comigo até à porta estreita e lá poderás indagar, e se não tiveres ânimo das palavras que lá ouvires, então ficarei satisfeita que voltes para o teu lugar; recompensar-te-ei também pela bondade que tens tido para comigo e os meus filhos, servindo-nos de companhia.
Piedade. – Lá irei e calcularei as consequências, e oxalá que tudo ande como o Rei dos céus tem determinado.
    Cristiana alegrou-se então, não somente por ter uma companheira, mas por haver persuadido a pobre moça em pensar na sua salvação.
    Seguiram juntas, e Piedade começou logo a chorar. Então perguntou-lhe Cristiana: Por que choras, minha amiga?
Piedade. – Ai, ai! Quem pode deixar de chorar pensando na condição triste dos parentes que ficam ainda naquela cidade desafortunada! Entristeço-me quando lembro-me de não terem quem os ensine, nem os avise dos juízos vindouros.
Cristiana. – Tu choras pelos teus amigos, como o meu bom Cristão chorava por mim quando deixou-me; chorou por eu não atender ao que ele dizia-me; porém o seu e nosso Senhor, lembrou-se das suas lágrimas e agora eu e os seus filhinhos estamos colhendo os frutos das suas orações. Espera, Piedade, que as tuas lágrimas não sejam perdidas, porque está escrito: “Os que semeiam em lágrimas, com regozijo ceifarão, andando iam e chorando semeavam a sua semente, mas vindo virão com regozijo, trazendo os seus feixes.”
   O velho continuou, dizendo: – Logo que Christiana chegou ao Atoleiro de Desespero, principiou a entristecer-se.
– Ai, ai de mim, disse ela, este é o lugar no qual o meu caro marido quase afundou-se na lama.
    Viu também que, ainda que o Rei tivesse mandado concertar este lugar por amor dos peregrinos, contudo estava ainda pior do que antigamente.
    Perguntei se era isso verdade.                  
– Sim, respondeu o velho, porque há muitos que pretendem ser servos do Rei, que dizem que estão concertando o caminho, que trazem esterco e lama em vez de pedras, e assim tornam pior o lugar em vez de concertá-lo. Aí, portanto, Christiana e os seus filhos ficaram parados. Mas Piedade disse: Vamos adiante, e com muita cautela e andando com passos firmes, conseguiram enfim chegar ao outro lado.

Imprensa Evangelica, nº 41,
10 de Outubro de 1878, p. 323-324
              

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