A viagem da Christiana com os seus filhos – John Bunyan (1628-1688)




Depois levou-os ao seu campo, onde tinha semeado trigo e milho, mas todas as espigas estavam arruinadas, nada existindo senão palha. Ele lhes disse: “Esta terra estava estercada, arada e semeada, mas que colheita faremos?
Cristiana. – Era melhor queimar uma parte e fazer esterco da outra.
Intérprete. – Pois vedes que, procurando fruto e não achando, se condena tudo ao fogo e a ser pisado dos homens; tomai, pois, sentido, que vos não condeneis vós mesmos, por esta palavra que acabais de proferir.
      Voltaram então à casa, e quando caminhavam, viram um pinta-roxo com uma grande aranha no bico.
     O Intérprete nesta ocasião chamou-lhes a atenção para ele.
   Olharam; Piedade admirou-se, mas Cristiana disse: “É pena que um pássaro tão bonito e tão amigo do homem, coma coisas tão ruins. Supus que comia migalhas de pão. Já não gosto dele como dantes.
Intérprete. – O pinta-roxo é a figura de alguns homens que professam ser cristãos, que à vista são agradáveis e parecem ter sincera amizade para com os mais cristãos que desejam viver com eles e estão em sua companhia, parecendo mesmo ter vontade de comer as migalhas que caem, e por este motivo frequentam as casas dos cristãos e o culto do Senhor, porém depois, como o pinta-roxo que come aranhas, eles também mudam de costumes, alimentam-se de iniqüidades, engolindo o pecado como água.
     Entrando em casa e a ceia ainda não estando pronta, Cristiana pediu ao Intérprete que lhes mostrasse mais alguma coisa proveitosa. Ele, pois, principiou:
    “Por mais gorda que seja a porca, mais deseja o lamaçal; por mais gordo que seja o boi, mais alegre chega ao matadouro; por mais forte que seja o homem mundano, mais procura o mal. Todas as mulheres gostam de vestir-se com elegância e aceio, porém é mais desejável vestir-se de um espírito manso e humilde, que à vista de Deus é de grande preço. É mais fácil perder o sono por uma noite do que por um ano; também é mais fácil principiar uma boa carreira do que segui-la até o fim. Todo o capitão de navio durante uma tempestade atirará ao mar as coisas de pouco valor, porém quem lança primeiro as coisas preciosas? Ninguém, senão aquele que não teme a Deus.
    “Um rombo pode perder um navio, e o pecado perderá o pecador. Aquele que se esquece do seu amigo é ingrato, porém o que se esquece do seu Salvador, não tem piedade de si. Aquele que vive em pecado e espera a felicidade no futuro, é semelhante ao que semeia cizânia e pensa que encherá o seu celeiro de trigo ou cevada.
     “Se um homem quiser viver bem, que procure lembrar-se sempre do seu último dia, do dia final. Se o mundo, que para Deus é uma coisa desprezível, é tão estimado pelos homens, qual não será o valor do céu, que é a morada de Deus? Se esta vida, que é tão triste, nos é tão cara, quão preciosa nos será a vida de além?
     “Todos estão prontos a louvar os homens, mas quem presta o devido louvor a Deus, pela Sua bondade?
      “Raras são as vezes que não deixamos alguma coisa na mesa, depois de comer. Do mesmo modo há em Jesus Cristo justiça e merecimento que sobeja depois de salvar o mundo.”
      Levou-os depois outra vez ao jardim e mostrou-lhes uma árvore oca, que nesse estado crescia e tinha folhas.
Piedade. – O que significa isso?
     “Esta árvore, disse ele, representa muitos que estão no jardim de Deus, que por fora apresentam bonita aparência, mas interiormente são ocos; que falam muito em Deus, porém nada fazem por ele, e cujos corações não prestam senão para servirem de mechas para o fogo do demônio.”
    Como a ceia estivesse pronta, sentaram-se todos à mesa e deram graças. Era costume da casa divertir os hóspedes enquanto ceiavam, com os harmoniosos sons de uma boa música, que começou logo a ser ouvida, precedida de um magnífico e melodioso canto.
     Depois, o Intérprete perguntou à Cristiana o que a determinou a encetar a viagem, ao que ela respondeu:
    “Primeiramente a perda de meu marido, tornou-me bastante pesarosa, mas isto era simplesmente um sentimento natural. Depois pensei nos incômodos e na viagem que ele encetou, lembrei-me do meu péssimo procedimento para com ele, porém a minha consciência acusava-me da minha culpa e convencia-me de que eu caminhava para a perdição, e isto me entristecia; porém o rei daquele país mandou chamar-me para lá. Este chamado e a carta que me enviou, operaram uma tal mudança em mim, que julguei como um dever obedecer-lhe.”
    “Porém, disse ele, não encontraste impedimento antes de sair?”
Cristiana. – Sim, uma vizinha, uma tal Sra. Temerosa, parenta daquele indivíduo que encontrou meu marido e queria que ele voltasse com temor dos leões, me chamava de louca por causa do meu desesperado propósito, e disse tudo o que lhe veio à mente, para desanimar-me; ele recordou-me todos os incômodos e tristezas porque meu marido tinha passado; porém isso não me desviou. Tive também um sonho de dois espíritos feios que maquinavam a minha ruína, e isso me afligiu bastante. Sim, e até agora me aflige e me faz temer a todos que encontro, com receio de que pretendam desencaminhar-me, ou arruinar-me. Tenho também razão para temer, porque em viagem para cá fomos assaltados, e tivemos de gritar com toda a força, e aqueles que nos acometeram pareciam os mesmos que vi no meu sonho.

Imprensa Evangelica, nº 48, 
        28 de Novembro de 1878, p. 381

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