RODEANDO O MUNDO E PASSANDO POR ELE – WILLIAM AZEL COOK




VIII “OS EXCOMUNGADOS”

     Em outra choupana especial isolada, achamos guardados os meninos que, chegados á puberdade, não se comportam bem. Rapam-se coroas nas cabeças destes rapazes, e num certo sentido elles ficam presos naquella casa, não lhes sendo permittido de modo nenhum misturarem-se com o resto da gente da aldeia. A occupação principal delles é, freqüentes vezes de dia e de noite até as nove horas, marcharem juntos ao toque da buzina ao ribeiro para se banharem; e de vez em quando um e outro vae com o pae trabalhar na roça. Ficam presos até darem provas de poderem comportar-se com rectidão ou chegarem a idade de casarem-se.

UM BAILE SELVAGEM

    Á bocca da noite o pregoeiro com muito energia chama a gente toda para assistir a uma dança na “praça publica”. Ajunta-se todo ou quase todo o povo, e cantam todos, dirigidos pelos velhos e pelo tocar das buzinas, e dançam todos, grandes e pequenos, quando a dança vae bem animada.

     Quem viu nunca poderá esquecer da scena dessa multidão de vultos nus e vermelhos, dançando lá na escuridão, animados pela nota sepulchral da buzina e por esse cântico tão proprio para uma noite medonha. Nunca ouvimos os indios cherentes cantar um hymno de alegria. Os hymnos delles são todos tristes ou tenebrosos.
    De manhã cedo, todos ou quasi tosos os dias, para de divertirem, os velhos reúnem-se e dançam uma roda com as mãos dadas e cantam.

    Quando alguém practica uma desfeita, ajunta-se um conselho dos velhos, pronunciam discursos e censuram o réo. Quando se casam, reune-se o povo e come-se uma certa qualidade de pão.

     Sempre achamos moléstias muito feias entre estes indios; e vimos um menino quase apodrecido com pulga penetrante e outro bicho.
     A aldeia tem tres ou quatro pessoas que são quase escravas. Estão ás ordens de toda a gente, e até das crianças.

UMA NECESSIDADE

      Conversámos com estes índios quanto ao estabelecermos uma eschola, e elles reconhecem que teem muita necessidade de apprender alguma cousa. Posto que não saibam nada do Evangelho e das bênçãos que o acompanham, fallam em aprender a leitura, a agricultura, a costura, a arte de ferreiro e a de carpinteiro; e confessam que, se não melhorarem a sua sorte, hão de acabar.

     Quase todos Cherentes sabem alguma cousa da língua portugueza, mas para ensinar-lhes o Evangelho seria necessario saber soffrivelmente a sua lingua.
   Essa primeira aldeia que visitamos e que é chamada a “Aldeia do Bananal,” era a única verdadeira aldeia dos Cherentes que vimos. Os demais índios Cherentes estão espalhados por toda a parte morando em ajuntamentos de duas ate cinco familias e seguindo uma vida miseravel.

OS INDIOS E OS FRADES

    Faz cincoenta annos ou mais que estes indios Cherentes estão sob a direcção dos “pastores christãos” (?) os frades virtuosos (?)”. mas, não obstante isto, a condição moral e social delles é incontestavelmente peior do que nos bons dias que se passaram antes de terem a felicidade (?) de conhecer os senhores que teem “as chaves do inferno.” De certo estes indios têm apprendido a não andar mais como um batalhão de guerreiros, mas têm apprendido tambem os vicios dos “reverendíssimos excelentissimos frades” e os da sua “santa (n?)” gente que lhes mora aos pés. No seu estado primitivo, estes pobres indios moravam juntos, tinham chefes e existiam leis e regras para protegerem-se contra os extremos de immoralidades e crimes. Hoje, porém, elles estão espalhados por toda a parte, e, salvo na aldeia supra mencionada, não existem mais as restricções primitivas.

    Frei Raphael foi o primeiro director destes indios, e tem em varias partes do mundo uma fama bonita, romantica, e poetica; mas os do seu antigo rebanho disseram-nos que elle gostava muito da cachaça e ficou louco alguns annos antes de morrer; e é bem provável que elle gostasse de outras cousas ainda menos bonitas que cachaça.
     O frade italiano que é actualmente director destes índios é uma boa pipa e tem mais outras “virtudes(?)”. Como elle mesmo disse, está naquelle sertão ha trinta e tres annos, e nem elle nem Frei Raphael têm feito cousa alguma por estes indios excepto baptisar alguns e lhes arranjar padrinhos para ensinal-os a “Ave Maria”, etc.
    Mas a cousa peior de tudo é que, não obstante este ultimo director nunca dar instrucção alguma a estes indios nem poder instruil-os, elle é como o cachorro deitado em cima do feixe de capim, que não podia comer nem deixava ao boi comel-o. Este frade posto que incapaz de melhorar a condição destes indios, impede de todo o modo possivel que outras pessoas vão lá para lhes fazer bem. Elle é pago pelo governo para ser protector desta pobre gente, mas é mais parasita e vampiro do que protector. A povoação onde elle mora é chamada nos relatorios do governo um aldeiamento, mas os índios não moram e nunca moram lá. Imagine-se este homem tão estranho á verdadeira Luz e tão entregue ao peccado, conduzindo das trevas medonhas em que teem andado por seculos, estes pobres aboriginas!

JOAQUIM SÉPÉ BRAZIL

    Joaquim Sépé Brazil, o índio cherente que veiu a São Paulo e foi ao Rio de Janeiro solicitar do governo um professor para ensinar o seu povo e pedir apetrechos de lavoura, roupa, etc., e que se dava por chefe dos cherentes foi por alguns annos sachristão de Frei Raphael, tem andando muito fazendo viagens ao Pará, e é intelligente e instruido nas cousas mundanas. Elle não é chefe officialmente dos cherentes, porque faz muito tempo que estes não teem chefe, mas é um dos capitães principaes, e sendo “muito ladino” gosa muita influencia sobre todos os indios cherentes. Elle é pagão baptizado: não sabe nada do Evangelho, mas tem muita experiência dos vicios todos e é muito interesseiro. Porém, não obstante isto, tem boas ideas, ama sinceramente o seu povo desgraçado, e deseja melhorar sua sorte. Por muito tempo tem nutrido o desejo de haver por seu povo pessoa ou pessoas illustradas e virtuosas para lhes ensinar a leitura, a lavoura e algumas outras artes. Repartindo pois este desejo com sua gente, veiu por fim ao Rio de Janeiro e a São Paulo para ver se poderia realisar as suas esperanças.

O Estandarte. Ano VIII, nº 15. São Paulo-SP, 12 de Abril de 1900, p. 2-3.

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