A feira da vaidade....

 

                                               CAPÍTULO XX 
                         Os filhos de Deus no meio do mundo 
  
Vi em meu sonho que ao sair do deserto descobriram uma cidade, chamada a cidade de Vaidade, onde há uma grande feira, a feira dura todo o ano, e que se chama a Feira de Vaidade, porque a cidade, onde ela se faz, é Vaidade, e tudo o que aí concorre e se vende, não é senão vaidade; segundo a palavra do sábio. (Eclesiastes 1:2) “Tudo é vaidade.”  

    Esta feira não é coisa nova; principiou há alguns cinco mil anos, e vos contarei sua origem.    

     Uns viajantes caminhavam para a cidade Celeste (como Cristão e Fiel fazem agora), quando Belzebu, Apoleão e Legião, com seus companheiros, vendo que o caminho ao céu passava pelo meio da cidade de Vaidade, conseguiram estabelecer aí uma feira, onde estivessem a vender todos as sortes de vaidades, e que continuasse o ano inteiro. Lá, pois, se vendem casas, terras, negócios, dignidades, ofícios, títulos, senhorias, reinos e prazeres. Lá também estão a vender maridos, mulheres, filhos, amos, criados, vidas, sangue, corpos, almas, ouro, prata, pérolas, pedras preciosas, e todas as qualidades de vícios.  

     Lá também pode se ver, em todo o tempo, jogos de passe-passe, enganos, espetáculos, divertimentos, macaquices, velhacarias e loucuras de toda a sorte.  

      Aí também se vendem e mui baratos, perjúrios, furtos, adultérios, assassinos e as mais atrozes mortes.  

     Como em outras feiras de menor importância há várias ruas e estradas, que tem cada uma seu próprio nome e suas próprias mercadorias, assim também nesta feira há lugares, ruas e estradas (isto é, países e reinos) em que se pode achar mais facilmente as diferentes qualidades de mercadorias. Aí está a rua Inglesa, a rua Francesa, a rua Italiana, a rua de Espanha, a rua de Alemanha, a rua Brasileira e outras.  

     Ora, como disse, o caminho para a cidade Celeste passa pelo meio da cidade, onde fazem essa grande feira: e aquele que quer ir para a pátria Celeste sem passar por esta cidade de Vaidade, há de sair do mundo. O mesmo rei dos reis quando estava neste mundo e voltava para seu próprio país, passou pelo meio da cidade, e era num dia de grande feira: sim, e creio que foi Belzebu; o maior senhor da feira que o convidou a comprar das suas vaidades, e até o teria feito príncipe da feira se quisesse fazer-lhe reverência somente enquanto passava pela feira: também o levou de rua em rua, porque era uma pessoa de altíssima dignidade, e mostrou-lhe todos os reinos do mundo e a glória deles, para aliciar, se lhe fosse possível, o bendito a desejar e comprar alguma vaidade. Ele porém não tinha a mínima vontade para com tais mercadorias, e saiu da cidade sem ter gastado nelas sequer um só real.  

     Era preciso que os viajantes passassem através da feira, e principiaram a passar; mas logo se levantou uma grande desordem na feira, e toda a cidade foi perturbada, e isso por vários motivos.
 
    1º Porque os vestidos dos viajantes eram muito diferentes daqueles que os traficantes naquela feira traziam. Por isso olharam-os com vistas fixas: alguns disseram que eram loucos, outros que eram maníacos, e alguns que eram estrangeiros.  

    2º Porque os viajantes falavam a linguagem de Canaã, uma língua que poucos negociantes na feira podiam compreender, pois estes serão os homens deste mundo só; por isso, desde uma extremidade da feira até a outra, todos os tiveram por bárbaros.  

     3º Divertiu os traficantes muito ver que os viajantes não faziam caso das mercadorias, e nem sequer olhavam para elas: e quando alguém gritava-lhes que comprassem, meteram os dedos nos ouvidos e disseram: (119:37)  “Aparta os meus olhos para que não vejam a vaidade.” E olharam para cima, querendo dizer assim que seus negócios estavam no céu.  

     Um que estava vigiando a conduta deles, disse-lhes, mofando: Senhores, que quereis comprar. Responderam, olhando-o gravemente. Nós (Provérbios 23:23) compramos a verdade; o que deu ocasião a serem mais maltratados. Uns bradaram somente com desdém, mas houve quem gritasse que fossem espancados. Enfim, levantou-se um tal tumulto, tal barafunda que tudo estava
em desordem e confusão. Deu-se logo parte ao grande senhor da feira, que encheu-se de raiva e despachou imediatamente alguns dos seus confidentes com ordens de examinar os dois homens que causavam tanto motim à feira. Prenderam-os, pois, e examinaram-os, perguntando-lhes donde vieram, para onde iam e porque se vestiam em trajes estranhos. Responderam que (Hebreus 11:13) eram estrangeiros e peregrinos sobre a terra, que iam para sua pátria, (Apocalipse 21:2) a Jerusalém celeste; e que não haviam dado motivo nem aos habitantes da cidade, nem aos negociantes para os tratarem tão mal e interromper-lhes a viagem; senão só que, quando alguém lhes perguntara que queriam comprar, eles tinham respondido: Nós compramos a verdade. Os seus examinadores porém não acreditaram outra coisa senão que eram loucos ou que vieram de propósito pôr a feira em desordem. Em vista disto açoitaram-os, cobriram-os de lama, e depois meteram-os na gaiola para servirem de espetáculo a todos. Lá ficaram por algum tempo expostos a todas às sortes de escárnio, de zombaria e violência; e o grande senhor da feira se divertia com tudo que lhes fizeram. Os
homens, porém, eram pacientes, (1 S. Pedro 3:9) não pagando mal por mal, nem maldições por maldições, mas pelo contrário, bendizendo, e fazendo bem aos que os injuriavam; e quando alguns homens da feira, que eram menos prevenidos e mais considerados que os outros, queixavam-se dos mais vis e turbulentos por suas crueldades, estes tornaram-se contra aqueles, e enfurecendo-se disseram-lhes que eram tão maus como os homens na gaiola; e que tomando parte com eles haviam de ter parte também nos seus tormentos. Os outros responderam que os homens na gaiola pareciam estar sempre quietos e bem criados, que não queiram fazer mal a alguém; e que havia muitas pessoas na feira que seriam metidas não só na gaiola, mas também na gaiola, com mais razão que estes que tratavam tão inumanamente. Depois de muitas palavras de parte a parte (os viajantes conduzindo-se sempre sabiamente e sobriamente)  chegaram a dar pancadas uns nos outros, e alguns ficaram feridos.  

     Por isso os dois pobres viajantes foram levados outra vez diante dos seus inquisidores, e acusados de haver causado este último motim na feira. Foram espancados desapiedadamente e carregados de ferros: depois arrastaram-os pelas ruas em cadeias para fazer inspirar medo a todos, e proibi-los de falar a favor destes homens ou tomar partido com eles. No entanto Cristão e Fiel se conduziram cada vez mais sabiamente, e receberam todos estes maus tratamentos com tanta mansidão e paciência, que alguns (posto que poucos em comparação da gente da feira) se uniram a eles. Isto fez aumentar mais a fúria dos inimigos, de sorte que resolveram fazê-los morrer, e declararam que vendo que nem gaiola, nem grilhões os fazia mudar, haviam de pagar com a vida pela maldade com que enganaram os homens da feira. 
  
                                              CAPÍTULO XXI 
                           O mundo condena os discípulos de Jesus 

  
       Cristão e Fiel foram metidos outra vez na gaiola, até que fosse determinado o que havia de se fazer com eles. O carcereiro apertou-lhes os pés no cepo. Nessas circunstâncias eles se lembraram das palavras do seu fiel amigo Evangelista, e por consequências acharam-se confirmados. Consolaram-se também mutuamente pela certeza de que aquele que lá sofresse a morte seria o mais feliz: e cada um, em segredo, desejava essa felicidade; mas se entregaram com confiança nas mãos daquele que dispõe de todas as coisas, e ficaram tranquilos e contentes na prisão.  

    Quando chegou o dia marcado, foram apresentados ao tribunal para serem condenados: o nome do juiz foi o Sr. Aborrece-o-bem. As acusações contra ambos eram as mesmas, com pouca diferença, e os pontos principais eram estes:  

    Que se mostraram inimigos do estado, e perturbadores do comércio; que já tinham causado motins e divisões na cidade; que tinham formado aí um partido, que seduziram a abraçar as suas perigosas opiniões, com desprezo da lei do príncipe.
 
    Fiel respondeu primeiro que ele não se opunha a coisa alguma, senão ao que se opunha ao altíssimo. Quanto ao tumulto, ajuntou ele, eu não o fiz, pois sou um homem de paz; e enquanto ao partido de que se fala, consiste inteiramente  de pessoas que foram persuadidas pela força da verdade, e a convicção da nossa inocência; e que também não virá – virão senão do mal para melhor. Tocante  a este príncipe de que falais, vendo que ele é Belzebu, o inimigo de nosso senhor, o desafio, com todos os seus anjos.   

    Então publicou-se que todos os que tivessem qualquer coisa a depor a favor do seu senhor e rei e contra o réu se apresentassem a dar testemunho. Vieram três testemunhas, a saber, Inveja, Superstição, e Busca-favores. Perguntou-se-lhes se conheceram o preso que estava diante da justiça, e o que tinham a dizer contra ele, e a favor de seu próprio senhor.  

    Levantou-se Inveja e disse: meu senhor, conheço este homem há muito tempo, e declaro com juramento diante deste tribunal augusto que é... 
  
JUIZ. – Esperai. Defiramos-lhe o juramento.  

         Depois de jurar, Inveja disse: meu senhor, ainda que este homem tenha um bom nome, é um dos mais perversos neste país. Ele não faz caso, nem de príncipe, nem de povo, nem de lei, nem de costume; mas esforça-se por incutir no espírito de cada um certas opiniões desleais que ele chama “Os princípios fundamentais da fé e da santidade.” Em particular, eu lhe ouvi dizer em uma
ocasião que o cristianismo e os costumes de nossa cidade de Vaidade são diametralmente opostos, e nunca podem concordar. Desta sorte, meu senhor, ele condena não somente nossos bons costumes, mas também nós todos que os praticamos. 
  
JUIZ. – Tendes mais alguma coisa a dizer? 
  
INVEJA. – Meu senhor, posso dizer muito mais; porém não quero importunar o tribunal. Sendo preciso, depois que os outros senhores tiveram dado seu testemunho, acrescentarei bastante para mostrar que deve ter pena de morte.  

      Em seguida chamou-se Superstição, e o juiz lhe disse que observasse bem o réu; e depois perguntou-lhe o que tinha a dizer a favor do rei contra o preso. Tendo prestado o juramento, Superstição fez seu depoimento assim:  

    Meu senhor, não tenho grandes conhecimentos deste homem, nem quero ter mais: sei, porém, por uma conversação que há poucos dias tive com ele que é uma peste pública; porque, falando com ele nesta mesma cidade, o ouvi dizer que nossa religião não presta, e que por ela ninguém pode agradar a Deus. ora, se fosse assim, vossa Ex. bem sabe o que há de seguir, a saber, que todo o nosso culto é vão: estamos ainda nos nossos pecados, e por consequência perdidos. Assim transtorna nossa religião inteiramente. Eis aqui o que tenho a dizer.  

    Então chamou-se Busca-favores, e depois de prestar juramento, teve ordem de dizer o que sabia em favor de seu senhor e contra o réu.  

     Meu senhor, disse ele, e vós todos nobres espectadores, há muito tempo que eu conheço este desgraçado, e lhe tenho ouvido proferir ditos que não são capazes de se repetirem, pois blasfemou ao nosso grande príncipe, Belzebu e falou com muito desprezo dos seus mais nobres amigos, que são os mui nobres fidalgos Homem-velho e Deleite-sensual, os condes Luxúria e Vanglória, meu velho
senhor Impudícia e o senhor Mais-tem-mais-quer. Ele disse que se todos os homens fossem de seus sentimentos nenhum desses senhores existiria nem sequer um dia em nossa cidade. Além disso, não tinha medo de falar mal de vós, meu senhor, que sois agora seu juiz, chamando-vos um ímpio escelerato, e outros tais nomes vergonhosos com que tem insultado a maior parte da nobreza de nossa cidade.  

    Logo que Busca-favores acabou de falar, o juiz se dirigiu ao preso Fiel, e lhe disse: vagabundo, herege, traidor, tens ouvido o que estes senhores honrados têm deposto contra ti? 
  
FIEL. – Posso falar algumas poucas palavras em minha defesa? 
  
JUIZ. – Atrevidíssimo malvado! Não sois digno de viver mais um momento. Deveis morrer aqui mesmo num instante; mas, para que todos vejam a nossa brandura para convosco, ouviremos, maldito cão, o que ainda tendes a dizer. 
  
FIEL. – Digo, pois, primeiramente, em resposta ao depoimento de Inveja, que eu não tenho dito outra coisa senão que todas as autoridades, todas as leis, todos os costumes e todos os povos que opõem também diretamente às palavras de Deus se opõem também diretamente ao cristianismo. Se nisto errei, mostrai-me o erro, e estarei pronto a desdizer-me.  
  
SEGUNDO. – Quanto ao testemunho de Superstição e suas acusações, eu disse somente que, para saber com certeza qual é o culto que agrada a Deus, é preciso que Ele mesmo diga o que quer: que, para dar-lhe o culto que Ele quer, havemos de andar conforme as suas palavras; que as coisas que os homens introduzem no culto sem serem ordenadas por Deus não são do seu agrado, nem prestam para a vida eterna: e que em todas as matérias religiosas devemos cingir-nos às Escrituras sagradas.  
  
TERCEIRO. – Ao depoimento de Busca-favores, respondo simplesmente (evitando os termos de desprezo e outros) que o príncipe desta cidade e toda a gentalha, seus companheiros, nomeados por este senhor, são mais dignos de estar no inferno que neste país; assim o Senhor do Céu tenha compaixão de mim.
 
    O juiz chamou então os jurados que assistiram a todo o processo e disse-lhes: nobres assessores da justiça, tendes diante de vós este homem que causou um tão grande tumulto na cidade; haveis ouvido também o que pessoas fidedignas têm deposto contra ele e acabais de ouvir sua defesa e confissão: depende agora de vós ou condená-lo à morte, ou salvar-lhe a vida. No entanto parece a propósito expor-vos a lei a este respeito.  

    Nos dias de Faraó, um grande servo de nosso príncipe, publicou-se um edito, a fim de que aqueles que praticaram outro culto não se tornassem poderosos: e era que todos os recém-nascidos de sexo masculino fossem lançados ao rio. No tempo de Nabucodonosor, outro servidor célebre de nosso príncipe, foi decretado que todo aquele que não se prostrasse e adorasse a imagem de ouro fosse lançado vivo numa fornalha ardente. Da mesma maneira no reinado de Dário promulgou-se um decreto imperial determinado que, se durante certo tempo alguém invocasse um outro Deus que não fosse o mesmo rei, seria lançado na cova dos leões. Ora, este rebelde tem violado o essencial contido nestas leis, não só por seus pensamento (o que se não poderia tolerar), mas também por suas
palavras e ações, que são crimes altamente insultantes.  

    A lei de Faraó foi para prevenir o mal que ainda não se via, mas aqui vemos o crime. A segunda e a terceira falavam da religião. Portanto, e pela traição que já confessou, ele merece a pena de morte.   

    Então saíram os jurados, que se chamavam Sr. Cego, Sr. Bem-nenhum, Sr. Malícia, Sr. Gosto-de-vícios, Sr. Má-vida, Sr. Porfiado, Sr. Orgulho, Sr. Ódio, Sr. Mentira, Sr. Crueldade, Sr. Aborrece-a-luz e Sr. Implacável.  

     Estes proferiram cada um separadamente seu julgamento contra Fiel, e depois resolveram unanimemente declarar diante do juiz que o achavam culpado. Primeiramente, entre si, o Sr. Cego disse, na qualidade de presidente, eu vejo perfeitamente que este homem é um herege. Então, disse o Sr. Bem-nenhum, fora do mundo com todos os tais. Sim, gritou o Sr. Malícia, porque aborreço até ver a cara dele. O Sr. Gosto-de-vícios disse: eu nunca pude aturá-lo. Nem eu, respondeu o Sr. Má-vida, porque condenaria tudo que eu faço. Enforcai-o, enforcai-o, disse o Sr. Porfiado. É um vil bruto, disse o Sr. Orgulho. Meu coração se levanta contra ele, disse o Sr. Ódio. É um homem detestável, disse o Sr. Mentira. A forca é um suplício brando demais para ele, disse o Sr. Crueldade. Botemo-lo fora do mundo, disse o Sr. Inimigo-da-Luz. E o Sr. Implacável disse: quando se me desse o mundo todo, eu não poderei nunca reconciliar-me com ele. Por isso digamos que é réu de morte. Assim o fizeram, e Fiel foi logo condenado a ser conduzido do lugar onde se achava para o lugar donde veio, e a sofre ali a morte mais cruel que se pudesse inventar.  

    Trouxeram-o, pois, para fora, a fazer com ele conforme a sua lei. Açoitaram-o, esbofetearam-o, golpearam-o com facas, apedrejaram-o, picaram-o com espadas, arrancaram-lhe pedaços de carne com tenazes ardentes, e enfim amarram-o a uma estaca, queimaram-o, e reduziram-o à cinzas. Tal foi o fim de Fiel.   
   Observei, porém, que por detrás da multidão de povo havia um carro com dois cavalos que o esperava; e logo que os inimigos acabaram de matá-lo, foi recebido nele, e levado ao céu através das nuvens, e ao clangor de trombetas, pelo caminho mais direito à porta celeste.  

    Enquanto se fartavam com os tormentos de Fiel, tinha Cristão algum alívio: foi remetido à prisão, e lá ficou por algum tempo. Mas aquele que governa tudo, e sabe refrear a fúria das tempestades e dos povos, dispôs as coisas de tal maneira que Cristão escapou, e foi adiante no seu caminho, cantando: 
  
Bem fez Fiel, e bem ficou. 
Fiel na glória chegou. 
Na morte terrível que passou 
Valente Fiel triunfou. 
E quando o Senhor voltar, 
Os matadores vão penar, 
Em desespero e horror.  Mas os amigos do Senhor 
Com Ele, no trono, hão de estar, 
Com Ele sempre habitar. 
  
Extraído de: A Viagem do Cristão para a bem-aventurança eterna por um dos seus companheiros [Pilgrim’s Progress, John Bunyan (1628-1688)]: Traduzido por Robert Reid Kalley(1809-1688)

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