O missionário Frederick Charles Glass em Canudos

     Foto de Frederick Charles Glass extraída de seu livro Through Brazilian Junglelands With the Book

“Frederick C. Glass é um missionário britannico que tem percorrido os nossos mais recônditos sertões, tendo, sobre o Brasil, principalmente sobre os costumes do interior, publicado um alentado volume em inglez, com uma tiragem de mais de 20.000 exemplares. [...]. “Viajando há pouco pelos sertões ínvios e pouco transitados no norte do Estado da Bahia, espalhando Evangelhos gratuitamente por conta duma missão ingleza, e atravessando uma grande zona quase inhabitada, de catingueiras repellentes, de eternos espinhos e pedras, e os inevitáveis imbuzeiros rachiticos e melancólicos, deparei um dia num pequeno logar que mal merecia o nome de povoação, pois consistia apenas de umas trintas casas, sendo uma o sobrado e residência dum ex-commandado do general Arthur Oscar, e agora o “mandão” do logar. O resto são casebres ou casas de taipa, pobres, na sua maior parte constituídas das ruinas de duas igrejas, das quaes existem hoje pouco mais do que os alicerces. Tinha perante os olhos tudo o que restava do que fora uma grande cidade, talvez a maior do sertão do norte, de muitos mil metros quadrados e de nada menos do que quarenta mil habitantes: – O Canudos de memória sombria e tristissima. Da velha cidade não ficou pedra sobre pedra, embora haja bastantes signaes da sua enorme extensão, e da sua antiga importância – tijolos por toda a parte. Onde hoje existe o pequeno mercado, havia um grande predio e casa de negocio dos antigos donos da fazenda, quando era apenas um curral de gado. Este prédio foi destruído pelos fanáticos logo após a debendada de Uaua, quando regressou o bando furioso de jagunços fanáticos (menos os muitos que tombaram baleados pela força da policia) porque o dono foi accusado de ter provocado esta primeira intervenção da força publica. Com  a destruição do prédio tambem morreu assassinada a maior parte dessa família infeliz. Senti profunda emoção e um sentimento quase de espanto – vendo estas recordações da grande desgraça que feriu então a pátria brasileira, e a mim parecia que o espirito negro do passado ainda pairava sobre essa terra infeliz e espiritualmente morta. Acheim-me em pé no centro da grande praça que havia entre a igreja nova – a fortaleza principal de Antonio Conselheiro – e a igreja velha, hoje assignalada por montões de ruinas disformes. Foi neste logar onde correu mais sangue, onde morreram tantas vidas preciosas de jagunços e soldados, todos filhos da grande Republica, aquelles porem, victimas incoscientes dos enredos fataes, da fé sem discernimento, e do zelo sem saber. A menos de cem metros de distancia corriam as águas barrentas do Vasa-Barris, bem proximo do logar fatal onde foi baleado um commandante de exercito pela bala dum jagunço escondido, justamente quando aquelle bravo official procurava animar os seus soldados, no momento critico da luta. Mais um kilometro além apparecia o legendário monte Favella, assim chamado por engano, pois o verdadeiro monte Favella dista tres léguas de Canudos e o nome verdadeiro e actual do logar onde acampou a maior parte dos exercitos é o Morro da Fazenda. Ainda são bem visiveis as trincheiras e os reductos da artilharia da força do governo, e espalhados aqui e acolá cartuchos, balas e outras cousas commoventes e tristes, e pouco distante o canhão Krupp, do primeiro exercito, jogado no meio do mato. Á minha esquerda vi o morro da Graça, grande arrabalde de Canudos, onde qualquer pobre podia erguer a sua humilde choupana sem pagar imposto a Antonio Conselheiro; e mais um pouco além, o tectrico Valle dos Degolamentos, onde o official do general Oscar, me disse que tinha presenciado a morte de duzentos prisioneiros, cedo ainda, numa manhã. E não foi a unica vez! Estremeci de horror! Parecia que tudo aquillo não passava de um plano astuto de Satanaz para arruinar tantos milhares de seres humanos, e lançar – se fosse possivel – o paiz inteiro em ruína completa, justamente na véspera de uma era de esperança e ventura. Mas, o que mais me impressionou como inglez, viajante de muitos paizes, e amante da historia e da tradição, foi o estranho e completo descuido na conservação do que ali existiu e das reliquias, que vão rapidamente desaparecendo, de um lugar tão historico e scenario de acontecimentos tão commoventes e tragicos como aquelles que fizeram estremecer a alma brasileira durante dois anos sombrios e afflictivos. Tudo está entregue ao mais completo olvidio, e o viajante, curioso não pode achar a mais modesta lapide commemorativa ou signal qualquer que lhe diga que ali se deram factos tão tremendos na historia do paiz e que ahi correram tanto sangue e tantas lagrimas dos filhos do Brasil. Procurei, não sem difficuldade, localizar o lugar onde o infeliz Moreira Cesar recebeu a ferida que o prostrou, andei muito pelo monte – erradamente chamado Favella – e corri para cima e para baixo, sem encontrar o menor signal commemorativo ou conservador neste tumulo vastissimo de tantas esperanças. Antonio Conselheiro, foi uma figura sombria e trágica – talvez detestável – porém, assim mesmo, incontestavelmente um vulto de grande destaque na vida do sertão, numa época de grande crise. Foi com trabalho que consegui verificar o local de sua sepultura, entre o montão de lixo e de pedras da igreja nova. Toda esta zona infeliz, quasi desde Monte Santo até Geremoabo, está debaixo de uma maldição senisvel, num estado de abandono onde a ignorância (mãe de todos os males) a pobreza, doença e o peccado são frutos únicos do seu passado lugubre. O unico guia espiritual nesta zona immensa é o vigário de Geremoabo. Nenhuma estrada boa, e nada de linhas telegraphicas, estafetas, escolas ou outros beneficios do governo existem para introduzir um novo sopro de vida e de prosperidade no meio deste povo. Parece mesmo que este nosso esforço humilde foi a primeira tentativa após tão longos annos, para levar uma mensagem de esperança, de graça e de verdade a Canudos. Porque tanto indifferentismo e descuido? Foi então debalde que morreram tantos jovens no desabrochar da vida? Não merecem a nossa recordação de gratidão, e de amor? Será possível que o odio velho ainda não se aplacasse ou que ainda sirva para anniquilar o nosso senso historico e tradicional, e o nosso amor da historia da patria – boa ou má que seja? Porque tenho achado em minha própria vida que as maiores desgraças, bem aproveitadas, podem tornar-se os melhores monumentos de arrependimento e magnanimidade, sei que das ruinas de Canudos sombrio, pode ainda jorrar uma fonte perenne de bençams para as gerações futuras deste grande e amado Brasil.”

Extraído de: Diario Nacional, nº 600, 16 de Junho de 1929, p. 8.

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