A viagem da Christiana com os seus filhos – John Bunyan (1628-1688)




Então Inocência (assim se chamava a moça), entrou e disse àqueles que lá estavam: “Podeis imaginar quem está à porta? Lá estão Cristiana, seus filhos e sua companheira querendo entrar.”
     Ficaram todos muito satisfeitos e foram participar ao seu senhor. Imediatamente ela entrou e disse: “És tu, aquela Cristiana a quem Cristão deixou quando saiu de casa para viajar?
Cristiana. – Sim, sou aquela mulher que era tão dura, que não se importava com os incômodos de seu marido; deixei-o sair só, e estes são seus quatro filhos; porém agora venho, porque estou convencida que este é o único verdadeiro caminho.
Intérprete. – Está cumprido assim o que se acha escrito do homem que disse ao seu filho: “Vai trabalhar hoje na minha vinha; porém ele respondeu: Não vou; mas depois arrependeu-se e foi.” (Mateus 21:29)
  Então disse Cristiana: “Assim seja; oxalá que eu esteja nesse caso e seja considerada sem mancha, nem falta.
Intérprete. – Por que ficas à porta? Entra, filha de Abraão; agora mesmo estávamos falando de ti, porque tivemos a notícia de te haveres tornado peregrina. Entrai, meus filhos, e tu também, moça. E levou todos para dentro. Logo que entraram, os fizeram descansar, e os da casa, que costumavam a tratar dos hóspedes, vieram vê-los. E todos mostravam-se contentes, visto Cristiana ter-se tornado peregrina. Acariciavam os meninos e tratavam Piedade com muita bondade, bendizendo a todos.
    Como o chá ainda não estivesse pronto, o Intérprete levou-os aos seus quartos e mostrou-lhes as coisas que Cristão já tinha visto. Viram o homem na gaiola, o sonhador, o homem que venceu os seus inimigos, os quadros, e todas as mais coisas tão proveitosas ao cristão.
     Depois que Cristiana e os seus companheiros entenderam estas coisas, o Intérprete levou-os a um quarto onde estava um homem que não podia olhar senão para o chão, tendo na mão um ancilho de lixo; porém o homem não levantou os olhos, e de nada fez caso; mas continuou a ajuntar a palha, o cisco e a poeira. Cristiana disse: “Julgo saber o que significa isso. Este é um homem do mundo, não é assim?”
“É verdade, disse o Intérprete, o seu ancilho de lixo representa o seu espírito carnal, e ali vede-o ajuntar para si a palha, o cisco e a poeira sem fazer caso daquele que lhe oferece a coroa celeste, e que o chama lá de cima. tudo isso nos ensina que os mundanos consideram a ceia como uma fábula, e que as coisas do mundo são para eles as únicas reais. E como vês que ele somente olha para o chão, aprende que os homens do mundo cuidam unicamente das coisas mundanas, e para eles as coisas de Deus não têm valor.
     Então Cristiana disse: “Alonga de mim a vaidade e as palavras de mentira.”
     Aquela oração tem sido negligenciada e até quase desconhecida, disse o Intérprete. “Não me dês as riquezas” são palavras raramente ouvidas. A palha, o cisco e a poeira são as coisas mais procuradas.
     Com isso Cristiana e Piedade choraram e disseram: “Ai, ai, tudo é muito justo.” Depois de lhes mostrar estas coisas, levou-os ao melhor aposento da casa, que era uma sala de bonita aparência, e disse-lhes que a olhassem atentamente, para ver se deparavam com alguma coisa proveitosa.
    Olharam-na, pois, mas nada viram, porque só havia uma aranha na parede, e não notaram isso. Piedade então respondeu: “Não, meu Senhor, nada vejo”; Cristiana, porém, conservou-se muda.
    O Intérprete disse-lhes: “Tornai a olhar”; ela firmou os olhos e disse: “Nada veio, senão uma aranha muito feia na parede”, ao que ele respondeu: “Crês que há só uma aranha em todo este grande quarto?” As lágrimas brotaram dos olhos de Cristiana, porque ela era muito sagaz, conheceu bem depressa as coisas, e disse-lhe: “Sim, meu Senhor, há mais aranhas, cujo veneno é muito mais ruim que o daquela.
    O Intérprete fitou-a com bondade, e disse-lhe: “Proferiste a verdade.” Piedade corou, e os meninos cobriram o rosto, porque adivinharam o enigma.
    O Intérprete continuou: “A aranha se sustenta nas suas mãos e mora nos palácios dos reis.” (Provérbios 30:28). O fim destas palavras é mostrar-vos que, ainda que estejais cheios do veneno do pecado, pela fé podeis firmar-vos e morar nos melhores lugares do palácio do Rei dos céus.
      Julguei que era esta a significação, disse Cristiana; mas não pude acertar tudo. Pensei que éramos como aranhas, criaturas muito feias, ainda que estivéssemos em moradas muito bonitas; mas que devíamos aprender desta aranha, tão feia e tão venenosa, a lançar mão da fé; não me veio à lembrança; contudo vejo que ela tem se segurado com firmeza e mora no melhor quarto da casa. Deus nada fez em vão.
     Ele os levou a outro quarto, onde havia uma galinha com pintos, e disse que os notassem. Um dos pintos foi à vasilha para beber e cada vez que bebia levantava a cabeça e os olhos ao céu. “Vede, disse ele, como faz este pinto e aprendei dele a reconhecer donde vêm as vossas mercês, olhai sempre para o céu.” Disse-lhes outra vez: “Tornai a notar”; olharam, e notaram o modo porque tratava a galinha os seus pintos. Ela tinha um modo comum de chamá-los, que sempre usava; um outro especial que usava quando os chamava para comer, e outro para se recolherem (Mateus 28:33) e além disso também soltava um grito especial. Agora, disse ele, comparai esta galinha com Deus, vosso Rei, e os pintos aos seus filhos obedientes, porque semelhantemente ele tem diferentes maneiras de tratar o seu povo. Usando da sua chamada comum, nada ele dá; a sua chamada especial significa que ele quer dar-vos alguma coisa; tem também uma voz de recolhimento para aqueles que estão abrigados sob suas asas, e um forte clamor quando está a chegar o inimigo. Mostro-vos estas coisas, meus amados, porque sois fracos, e elas são fáceis para entender.
Cristiana. – Pois tenha a bondade de mostrar-nos mais ainda.
    Ele levou-os então a um matadouro na ocasião em que um homem matava uma ovelha, que se conservava muda, sofrendo pacificamente.
Intérprete. – Deveis aprender desta ovelha a sofrer, a suportar as injúrias sem murmurações ou queixas. Eis como ela sofre a morte sem resistir. Vosso Rei vos chama as suas ovelhas.
   Depois levou-os ao jardim, onde havia grande variedade de flores, e disse-lhes: “Vedes estas flores?” Cristiana respondeu: “Vemos.”
“Todas são diversas, disse ele, não só na extensão das hastes que as levam a grande altura, como em qualidades, cheiro e virtude; também o jardineiro as tem colocado onde lhe apraz, e todas ficam nos seus lugares, sem brigar uma com outras.

Imprensa Evangelica, nº 47, 
21 de Novembro de 1878, p. 371-372

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