A viagem da Christiana com os seus filhos – John Bunyan (1628-1688)




Valente. – Com muito prazer, mas em primeiro lugar, tenho a dizer que aquele de quem falo não tem igual. Tem duas naturezas distintas com uma pessoa, e estas duas não se podem dividir. A cada uma dessas naturezas pertence uma justiça própria, essencial a essa natureza unidas, e não é uma justiça da divindade separada da humanidade, nem a da humanidade separada da divindade, porém uma justiça que é própria da união destas duas; a justiça convém àquele que foi constituído nosso mediador por Deus.
     Não tenho aquela justiça, ele cessa de ser Deus; não tendo esta, deixa de ser homem perfeito; participando-nos a terceira, ele nos faz conhecer aquela perfeição que o torna capaz de ser o nosso mediador. Tem uma justiça que é a sua obediência à lei revelada; esta, está imputada aos pecadores e cobre os seus pecados. Portanto ele diz: “Porque assim como pela desobediência de um só homem foram muitos feitos pecadores, assim também pela obediência de um só muitos se tornarão justos.”
Cristiana. – Pois aquela outra justiça não é útil para nós?
Valente. – Sim, porque, se bem que é essencial a sua natureza e ofício, não se pode comunicar aos outros, contudo é em virtude dela que a sua justiça de mediador torna-se-nos eficaz. Sua justiça divina torna eficaz a sua obediência, a justiça da sua humanidade torna valiosa a sua obediência para a nossa justificação, e a justiça própria destas duas naturezas unidas, habilita-o a operar a nossa salvação. Há, pois, uma justiça que Cristo, como Deus, não necessita, porque sem ela é Deus. Há também uma justiça que Cristo como homem não precisa, porque sem esta é homem perfeito. Ainda mais – há uma justiça de que Cristo, como Deus-homem, não necessita, porque sem ela é perfeito. Eis uma justiça que ele nos pode transmitir. Eis o dom de justiça!
   Jesus Cristo, sendo debaixo da lei, deve dar este dom da graça, porque a lei exige que se pratique não somente a justiça, mas também a caridade. Portanto, segundo a lei, o que tem duas túnicas (Mateus 10:10) deve repartir com aquele que não o tem. Nosso Senhor tem duas, uma para Si e outra para dar, por isso Ele dá de graça àquele que não tem. Deste modo, meus amigos, todos vós tendes o perdão pela palavra e pela obra de outrem. É Nosso Senhor Jesus Cristo que a operou e que dá o que ganhou a qualquer mendigo que precise. Ainda mais, para que perdoe por obra, Ele, que deve pagar alguma coisa como preço, a Deus, bem como preparar com quem nos cubra. O pecado tem nos entregado à maldição justa de uma lei santa; ora, é mister que sejamos justificados desta maldição pela redenção, sendo pago um resgate. Este resgate é o sangue que o Nosso Senhor verteu em nosso lugar, e pelas nossas transgressões. Deste modo resgatou-vos pelo Seu sangue e revestiu de justiça as nossas almas manchadas (Romanos 8:33) e assim Deus vos aceita, e não vos condenará quando julgar o mundo.
Cristiana. – Ó que bem! Agora vejo a significação de sermos perdoados por palavra e por obra, cara Piedade; esforcemo-nos por conservar estas coisas na memória; e, meus filhos, lembrai-vos delas também. Pois, meu Senhor, não foi isto que fez com que o fardo de Cristão lhe caísse das costas, por cujo motivo saltou de prazer?
Valente. – Sim, foi esta crença que o livrou do fardo, do qual não podia livrar-se de outra maneira, e era para dar-lhe uma prova disso que ele foi obrigado a levá-lo até a cruz.
Cristiana. – Assim supus, porque, se bem que estivesse antes cheia de prazer, contudo sinto-me agora dez vezes mais satisfeita. Estou persuadida que, se o homem mais sobrecarregado do mundo estivesse aqui e pudesse ver e crer, como eu, isto havia de encher-lhe de alegria o coração.
Valente. – A consideração destas coisas não somente dá-nos consolo, mas produz em nós um amor profundo, porque refletindo que a salvação vem, não só por promessa, mas também por obra, quem poderá deixar de pensar no modo e nos meios da redenção e também naquele que a operou?
Cristiana. – Assim é: doe-me o coração ao lembrar-me que ele verteu o Seu sangue por amor de mim. Ó Tu, que és amor! Tu, que és bendito. Devo te pertencer, porque Tu me compraste. Deus te pertence todo, porque pagaste mil vezes o meu resgate. Não é de admirar que isto fizesse meu marido verter lágrimas e o animasse a caminhar tão depressa. Estou certa que ele desejava levar-me consigo, mas eu, miserável que era, deixei-o ir só. Oxalá, Piedade, que teus pais aqui estivessem, e a Sra. Teimosa. Sim, desejava de todo o coração que madame Lascívia também aqui estivesse. Certamente os seus corações seriam tocados, nem o medo daquela, nem a concupiscência desta, podiam persuadi-las a voltar, recusando tornarem-se peregrinas.
Valente. – Falas agora inspirada pelos teus ardentes sentimentos. Será sempre assim? Ainda mais, tudo isso não é revelado a todos, mesmo àqueles que presenciaram a morte de Jesus Cristo. Havia algumas circunstâncias que viram correr o sangue do Seu lado e fizeram tão pouco caso disso que, em vez de O lamentarem, escarneceram Dele, e em vez de tornarem-se Seus discípulos, endureceram os seus corações contra Ele. Todo o entendimento que tendes das coisas que vos tenho explicado, minhas filhas, é uma graça especial. Lembrai-vos que eu vos disse que não é pelo cacarejar comum que a galinha chama os seus pintos para comer. Este entendimento é uma graça especial.
    Vi no meu sonho que chegaram ao lugar onde Inconsideração, Preguiça e Temeridade deitaram-se para dormir, quando Cristão ali caminhava, e eis que foram enforcados no meio do caminho.
     Piedade, pois, disse ao seu condutor: quem são estes três homens e por que razão foram enforcados?
Valente. – Eram homens de maus costumes, que não queiram ser peregrinos e, além disso, impediam os outros de o serem. Entregavam-se à preguiça e às loucuras, e procuravam conduzir os outros pelo mesmo caminho, persuadindo-os, contudo, que no fim haviam de sair bem. Dormiam quando Cristão passou por aí, e agora estão enforcados.
 
Imprensa Evangelica, nº 51,
19 de Dezembro de 1878, p. 403-404 

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