ANGELA OU O DIA DE NATAL - Mrs. O. F. WALTON (1849-1939)



Capa da 7ª edição, Livraria Evangelica, Lisboa, Portugal, 1929


“Sem dúvida nenhuma,” disse a cozinheira. 

“Não seria bonito deixá-las esquecidas. Essa que tem um olho deram lh’a hoje, não?”

“Deram; é um presente de anos do tio Henrique. Não é tão bonita? repara para os corações d’ela?”
“É linda quanto pode  ser!” disse a cozinheira. E como se chama ela?”

“Ainda não sei; tem me custado a acertar com o nome mais bonito. Que nome lhe punhas se ela fosse tua?”

“Rosa, talvez, ou Elvira, ou Aniceta, ou qualquer coisa parecida,” disse a cozinheira, rindo-se.
Esses nomes não me parecem muito bonitos. Gostava de que ela falaste um completamente novo, que nunca tivesse ouvido.”

“Não havemos de pensar n’isso. Agora tenho que tirar aquela roupa do cesto, e mandar aquelas crianças embora.”

“Quem é aquela pequena?”, perguntou baixinho a menina. 
               
“É filha da mulher que passa a roupa cá de casa pela calandra; agora trouxe ela uma porção n’aquele cesto.”
“Como se chama?”, disse a criança quase em segredo.

“Eu sei lá, meninas; o melhor é perguntar-lhe.”

“Pergunta-lhe tudo”, tornou ela a segredar.

A cozinheira voltou-se para as crianças, e perguntou-lhes pelos nomes.

“Aquele-se chama-se Thomé,” responde a pequenita apontando para o rapaz, que havia metido o dedo na boca, na atitude que as crianças tomam quando estão envergonhadas,” e eu sou Angela.
 
“Anjos!”, murmurou a menina da casa. “Oh, Bernarda, diz-lhe que nos deixe ver as asas. Tem-nas fechadas debaixo do xale? Anda, estou com imensa vontade de as ver.”
A cozinheira pôs-se a rir.

“Onde foste tu arranjar um nome tão exótico?”, disse ela, voltando-se para Angela.

“É por ser mais curto que me chamam Angela, ou Anjo.”, explicou a pequena. “Qual é então o seu verdadeiro nome?” 

 “Angelina. Minha mãe tirou este nome de uma história que leu em solteira. Angelina era uma senhora que morava n’um palácio, usava sapatinhos de ouro, e tinha uma carruagem puxada a seis cavalos.”

“Com efeito! Disse a cozinheira. Com que, então, a tua mãe pôs-te esse nome pagão, sem que tu tenhas sapatos de ouro, nem carruagem puxada a seis cavalos? Ora, não há!”
“Olha, Bernarda, disse Elza, a filha da dona da casa, parece-me que achamos um bonito nome: os anjos habitam no céu.”

“Este, pelo menos, está longe de habitar lá, coitadinha, disse com ar compassivo a cozinheira. Afirmo, sem medo de enganar, que a casa d’ela verá tudo, menos o céu. O pai anda sempre a cair de bêbado e a mãe vive rodeada de cinco filhos.”

“Ela gostará desses bolos que estás preparando para os meus anos,” disse a menina ao ouvido da criada.”

“É muito provável. Quer que lhe dê um?”

     E, com grande espanto de Angela, viu-se esta na absoluta posse de um passarinho, um peixe, uma estrela e um coração; e a Thomé sucedeu outro tanto.

As crianças ficaram tão contentes que mal se lembraram de agradecer.

“Bem, a roupa está rota, disse a cozinheira. Toma lá o dinheiro para levares à tua mãe.”
Angela e Thomé pegaram no cesto, e dispuseram-se a sair.

“Adeus, Anjinho!”, disse a menina timidamente;” “gostava imenso de que tivesse asas.”
“Não te parece, Bernarda, que Angelina era um bonito nome para a minha boneca?”, ouviram-n’a eles, disse quando iam descendo a escada.

“Como é tudo belo lá dentro!”, disse Thomé, quando regressavam à casa, caminhando ao longo das imensas, tristes e lamacentas ruas. Quem me dera ter um dia de anos!”
“Já tiveste algum?”, perguntou Angela.

“Eu já,” disse Thomé, “mas isso foi há muito tempo, e não tornei a ter outro.”
“O que vem a ser, afinal, um dia de anos?”, inquiriu Angela.

“É um dia magnífico!”, exclamou Thomé. Nesse dia ninguém nos bate, e todos nos dão presentes. Uma vez a minha mãe consentiu que eu tivesse um dia de anos.”

“Conta-me lá o que houve então nesse dia,” disse a pequena Angela.

“Ora, varreu-se a cozinha muito bem varrida, a minha mãe não ralhou uma única vez comigo em todo o dia, e tivemos ao jantar um pernil todo cheio de passas, não assou aqueles que costumamos ter aos Domingos, em que há uva passa em cada fatia. E o meu pai deu-me um vintém e um cartucho de figos, só para mim! foi esse o único dia de anos que tive. A minha mãe diz que não tem tempo agora para dias de anos.”

“Gostaria de saber se virei ainda a ter um dia de anos;” disse Angela, com um suspiro, ao começar mais uma vez a fazer girar a calandra.

II
QUEM É QUE BATE?

    A calandra manteve-se em constante movimento até altas horas da noite. Angelinha sentia doerem-lhe terrivelmente os braços e as costas quando, enfim, pode descansar, e foram sentar-se, ela e sua mãe junto do importante lume.

“Vai-te agora deitar, Agela;” disse a mãe.

“Deixe-me estar aqui mais um bocadinho ao pé de si, minha mãe. Ainda fica em pé?

“Ainda enquanto ele não vier,” disse a pobre mulher em tom de desalento laçado os olhos para o grande relógio que solenemente ia marcado os minutos a um dos cantos da pequena cozinha. “Ai, ai que desgostos vão por esse mundo!” 

O Evangelisador. Ano I, nº 12. Manaus-AM.  06 de Agosto de 1905, p. 3-4.

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