O caso da venda de Bíblias em Sergipe (1866)

 


Em 1866 a prisão de Torquato Martins Cardoso, vendedor de Bíblias, em Aracaju, Sergipe, teve grande repercussão na imprensa do Brasil Império. O Delegado Antero Cicero de Assis num completo ato de abuso de autoridade prendeu o colportor português por considerar que as Bíblias que o mesmo vendia eram “falsas”.  

O Ministro da Justiça Martim Francisco Ribeiro de Andrada (1825-1886) foi interpelado pelo deputado maranhense Belfort Duarte a fim de que levasse o caso ao Imperador D. Pedro II.

“A 17 de dezembro do anno passado chegou a Aracajú, capital da província de Sergipe o subdito portuguez Torquato Martins Cardoso; no dia seguinte despachou na alfândega volumes contendo Biblias e extrahio da thesouraria a competente autorisação para fazer acto de commercio vendendo-as; e apresentou0se afinal ao chefe de policia da provincia communicando-lhe o seu caracter de estrangeiro e a sua profissão, retirando-se da presença do magistrado conscio de que nada o pertubaria no exercicio desse direito incontestavel. Vendidos alguns exemplares e decorridos poucos dias após o vigario de subir ao pulpito, e dias após o da chegada de Torquato a Aracajú, teve o vigário de subir ao pulpito, e dahi proferio excommunhão contra todos os que lessem e possuíssem as Biblias de Torquato, por elle reputadas falsas.” (Diario de Pernambuco, nº 205, 7 de Setembro de 1867, p. 8).

“Publicada a excommunhão fulminada pelo vigário de Aracaju contra os que lessem as Biblias vendidas por Torquato, que não erão outras senão as do padre Antonio Pereira, publicadas em Londres, mandou o chefe do policia chama-lo á sua presença para advertir-lhe de que o espirito da população lhe era contrario, o que valia mais abandonar a capital e ir para o interior da provincia continuar a venda de seus livros. Torquato, protestando contra a excommunhão do vigario, que influia do modo a paralysar o seu negocio, aceitou o conselho do chefe de policia, o retirou-se para o centro da provincia, onde continuou a exercer a sua industria sem perturbação. Teve, porém, esse individuo necessidade de voltar a Aracajú,  e ahi estando a almoçar em um hotel foi sorprendido com a visita do subdelegado de policia que em nome do chefe lhe ordenava a não  continuação do seu commercio sob pena de processo, e intimava ao dono  do hotel que não consentisse na venda das Biblias em seu estabelecimento. N’esse mesmo dia lia-se um officio no jornal official, do chefe de policia ao presidente da provincia, declarando que prohibira a venda das Biblias  reputadas falsas pelo vigario de Aracajú! Contra tão insolita determinação protestou Cardoso em tres officios que enviou ao presidente da provincia, sem ter afinal a solução, unica possivel em face dos principios e da legislação que rege a materia, fossem ou não fossem falsas as Biblias de que se trata, quero dizer, uma solução favoravel.  O primeiro officio do  reclamante foi remettido pelo presidente ao chefe de policia, para que este  deferisse como fosse de justiça, verificando se erão ou não falsas as  Biblias. Lerei  á camara o despacho do chefe de policia, concebido nos seguintes termos: ‘Cumpro o respeitavel despacho supra, para aqui mesmo o indeferir ao  supplicante, que já foi advertido que a venda de seus livros, julgados falsos por autoridade ecclesiastica competente, seria a pratica do crime previsto no  art,  277 do código criminal, e hoje, depois de advertido, é mais o crime  do art. 128 do mesmo codigo, pelos quaes será immediatamente processado se continuar a espalhar taes livros na população, e o  supplicante, que já fez sua retirada desta cidade, o que deu lugar á demora  deste  despacho, mostrou estar convencido disto. Secretaria da policia do Sergipe, 28 de Fevereiro de 1867 — A. de Assis’ Privado assim Torquato do exercicio de uma prerogativa que a constituição politica e as leis do Estado a todos garantem, recorreu ao governo geral em data de 14 de Março, e juntando ao seu requerimento todos os documentos os depoz nas augustas mãos do imperador em audiencia de 30 do mesmo mez. A 12 de Abril entrárão os papeis para a secretaria da justiça, donde farão ao conselho de estado, e estão até hoje sem despacho!” (Annaes do Parlamento Brazileiro, Tomo IV, 1867, p. 13-14.

O despacho de Sua Majestade, o Imperador D. Pedro II, só veio em 1868, e foi favorável ao colportor Torquato Martins Cardoso: “Declara que a venda de livros sagrados, reputados contrarios á religião catholica, é permittida, por ser conforme a liberdade individual; salvo o procedimento criminal, por via de processo, nos casos expressos nos arts. 277 e 278 do Codigo Criminal. Rio de Janeiro, 4 de maio de 1868. Illm. E Exm. Sr. Foi presente a Sua Magestade o Imperador a representação de Torquato Martins Cardoso contra o acto desse presidencia e do chefe de policia dessa provincial, negando a licença para a venda de livros sagrados, por serem reputados contrarios ás doutrinas da Religião Catholica Apostolica Romana. E o mesmo augusto senhor, tendo ouvido a secção de justiça do conselho de estado, com cujo parecer se conformou por sua imperial e immediata resolução de 22 do mez proximo passado, houve por bem mandar declarar a V. Ex.: 1º que é do rigoroso dever dessa presidencia respeitar e manter a liberdade individual, consagrada no art. 169 §§ 1º, 5º e 24 da Constituição; 2º que o chefe de policia não podia proceder contra o reclamante senão nos casos expressos nos arts. 277 e 278 do Codigo, não arbitrariamente senão por via de processo criminal; 3º que não é licito a um delegado do governo imperial o dizer e sustentar o proposito de proceder arbitrariamente no caso de deficiencia das leis do paiz. O que lhe communico para sua intelligencia e devida execução. Deus guarde a V.Ex.  – Martim Francisco Ribeiro de Andrada. – Sr. presidente da provincia de Sergipe."

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