O reformador João Calvino (1509-1564)

 

Foto: O Estandarte, São Paulo-SP, nº 10, Outubro de 1996, p. 1

“Nascido em Noyon, na Picardia, no dia 10 de Julho de 1509, Calvino achou-se, desde a infância, de posse de tudo quanto podia desenvolver-lhe o extraordinario talento. Foi creado e educado com os filhos da nobre família dos Mommors. Aos quatorze annos foi para Paris, matriculando-se no Collegio de la Marche, cujo director era Cordier, eminente homem de letras. Depois freqüentou o Collegio de Montaigu, dedicando-se ao estuda da philosophia e das línguas, em que progrediu notavelmente. Em breve se viu habilitado a estudar o Novo Testamento no original. Conhecia o latim a fundo, e o estylo das suas obras escriptas nessa língua tem sido geralmente admirado. Do hebraico sabia o sufficiente para comprehender as Escripturas do Velho Testamento. A conversão de Calvino foi rápida, e pode-se attribuir as tres causas: o estudo das Escripturas, a influencia de amigos que viviam em communhão com Christo, e o bom testemunho que muitos membros da Reforma deram ao ser-lhes movida a perseguição. Calvino havia sido o que se chama um bom catholico romano, e tanto por sua natureza, como devido á educação que recebera, acatava muito a auctoridade, e era pouco propenso a libertar-se daquillo que lhe havia sido imposto. Os acontecimentos, porém, tinham-lhe mostrado que a reforma da Egreja não podia ter logar dentro della. Ao mesmo tempo o seu espirito, esclarecido pela Palavra de Deus, não se sentia satisfeito com uma religião que constava principalmente de exterioridades. A luz que pelo céu foi acceza no coração do môço doutor, não tardou em adquirir um brilho intenso. Calvino aggregou-se aos lutheranos de Paris, e expoz nas suas assembléas a Palavra de Deus, que para elles tinha tanta novidade e era tão preciosa. Segundo a tradição, elle tinha por costume terminar todas as suas praticas com as seguintes palavras: ‘Se Deus é por nós, quem será contra nós?’. Uma das pessoas com quem elle tinha grande intimidade era Nicolau Cop, reitor da Universidade de Paris. Ora aconteceu que, chegada a epocha do anno em que o dito Nicolau tinha de fazer um discurso, alguns amigos de Calvino suggeriam-lhe a Idea desse discurso ser preparado por elle, Calvino metteu logo mãos á obra, expondo, pela bocca do reitor, a necessidade de reformar a egreja. O caso fez grande barulho, veiu a descobrir-se que o auctor do manifesto era Calvino, e este, para salvar a vida, viu-se obrigado a fugir. Foi desde então que ficou considerado o campeão da Reforma na França. Apoz uma serie de aventuras e de situações arriscadas, estabeleceu0se temporariamente em Basileia, que era naquelle tempo a Athenas da Suissa, a pátria da litteratura e da sciencia. Tornou-se nessa cidade amigo de Grynen, e do illustrado Capito, que o animou a prosseguir no estudo do hebraico, que tão útil lhe foi quando escreveu os seus commentarios aos livros do Velho Testamento. A primeira coisa que Calvino escreveu depois da sua conversão foi uma replica a uns certos herejes que affirmavam que a alma, em seguida á morte, dorme até ao dia do juizo. No mesmo anno em que este tratado appareceu, reviu elle a traducção da Biblia em francez por Olivetan, ajudando assim a tornar conhecida a Palavra de Deus por aquelles que fallavam a sua lingua materna. Foi em 1536 que Calvino publicou a grande obra, que constitue, por assim dizer, uma das etapes da historia da doutrina christã. ‘Os Estatutos da Religião Christã’, são uma encyclopedia theologica, superior á qual ainda nada appareceu até agora. O seu auctor tinha então vinte e seis annos. Não podia ser mais opportuna a publicação de aquella obra, pois que os inimigos do Evangelho apregoavam, mais do que nunca, que os reformadores eram fanáticos, que attentavam contra a estabilidade dos thronos, a ordem da sociedade, e a continuação do culto religioso. O seu trabalho em Genebra começou de uma forma original, e completamente inesperada. Dirigia-se ele para certa localidade, onde tencionava viver por algum tempo entregue aos seus trabalhos litterarios, e, desejando evitar a fronteira oriental da França, occupada então por dois exércitos em campanha, penetrou na Suissa, e chegou a Genebra, disposto a passar ali a noite e proseguir a viagem no dia seguinte. Havia quatro annos que Farel, o vehemente, o destemido Farel... o maior evangelista que o protestantismo francez tem produzido, se encontrava nessa mesma cidade de Genebra... Foi nesta conjunctura que Calvino appareceu em Genebra. Farel foi informado da sua presença, teve uma entrevista com elle, e ao cabo de muitas instancias conseguiu que elle fixasse residencia na cidade. Calvino começou a sua obra em Genebra explicando as Escripturas. Tomou muito a peito a educação da mocidade, nomeando Sammier, um dos seus amigos, inspector geral das escolas. Reformou o ceremonial dos casamentos, promoveu um maior uso dos Psalmos, combateu, por todas as formas, o vicio... Não tardou, porém, que se produzisse a reacção. Eram medias fortes de mais, aquellas, tratando-se de pessoas que ainda na vespera, por assim dizer, viviam immersas na ignorância, na superstição, na immoralidade. O partido contrario aos pastores era denominado dos Libertinos, que não se cançavam de insistir em que a cidade, naquela sua submissão a Calvino e Farel, calcava aos pés as suas antigas liberdades. Tanto prevaleceram sobre a população, que nas eleições em Fevereiro, de 1538, alcançaram a maioria, e ficaram no poder. Recomeçaram as desordens e os deboches, e, como os magistrados não oppunham a estes males uma forte repressão, os pastores começaram a pregar contra ellas. A situação tornou-se grave. As auctoridades expulsavam dos pulpitos os ministros que se recusavam a dar a communhão áquelles a quem reputavam indignos disso. Por fim, em virtude dos sermões que sobre esse assumpto pregaram Calvino e Farel no domingo de Paschoa de 1538, o Conselho houve por bem desterra-los. Calvino foi residir para Strasburgo, que Bucer chamou ‘a nova Jerusalem do protestantismo’. Ahi nessa cidade foi occupar o pulpito da egreja de S. Nicolau, estabelecendo na congregação a ordem e a disciplina presbyterianas, e excitando a admiração e a inveja dos allemães. Foi em Strasburgo que Calvino se uniu pelo matrimonio a Idalette Von Buren, em que encontrou uma fiel, dedicada e terna esposa.  A sua felicidade foi interrompida pela doença que a ambos acommetteu, e pela morte de seu único filho. Na cidade de Genebra reinava uma completa anarchia, e só havia um remedio para acabar com aquelle estado de coisas: chamar novamente Calvino. Em Outubro de 1540, o governo remetteu um officio ao grande reformador, rogando-lhe que viesse retomar a sua posição de outr’ora, e promettendo-lhe um decidido apoio em todas as questões. Calvino hesitou, mas, cedendo ás instancias dos seus amigos, resolveu acceitar o convite. Foi desde essa data que se estabeleceu o presbyterianismo nas egrejas de Genebra... Em 1562 a saúde de Calvino começou a declinar seriamente, mas durante seis annos o seu inquebrantavel espírito sustve-o, e elle pôde continuar a trabalhar. Em 27 de Março foi transportado á Camara do Conselho, e, com aquella placidez que sempre mostrou em tudo, propoz um reitor para a Universidade. Em seguida tirou o barrete e agradeceu aos senadores a bondade e consideração com que o haviam tratado sempre, terminando com estas palavras, que fizeram chorar a assembléa: ‘É esta a ultima vez que aqui venho’. O grande Reformador expirou no dia 27 de Maio de 1564, cobrindo-se toda a cidade de luto. Todas as classes o prantearam, pois que a sua morte representava uma verdadeira perda para Genebra. Conforme o seu desejo, teve um enterro muito modesto, e nem ao menos no local onde as suas cinzas repousam se levantou uma lapide.” 

Artigo "Quarto centenário do grande reformador de Genebra João Calvino" de autoria de João S. Canuto, publicado no jornal A Luz e Verdade, Ano VI, nº 11, Porto, Portugal, Agosto de 1909, p. 1-2


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